Índice de Capítulo

    O caminho até a festa foi pontuado por silêncios constrangedores, olhares curiosos de estranhos e uma ou duas crianças perguntando se o urso fazia aniversário. 

    Vento Leste parecia tranquilo, como se atravessar a cidade com um brinquedo gigante fantasiado fosse apenas mais uma terça-feira qualquer. Quintus, por outro lado, sentia cada passo à maneira de quem caminha sobre um chão de concreto fresco, afundando um pouco mais a cada movimento.

    — Essa caminhada tá pika demais. — disse Vento Leste, enquanto remexia no bolso interno do blazer — Tô começando a considerar um pit stop etílico.

    O jovem Maximus franziu a testa, confuso, mas antes que conseguisse perguntar qualquer coisa, notou o olhar vago do colega, perdido em algum pensamento inclassificável.

    Vento Leste puxou uma garrafinha, contemplou-a tal qual se reencontrasse uma velha companheira de guerra, e então encarou Quintus, como se tentasse lembrar por que, afinal, estavam indo a uma festa. Não lembrou. Apenas deu de ombros, perdendo o interesse no assunto tão rapidamente quanto o havia adquirido.

    — Beleza então. — ele enfiou a mão no bolso interno do blazer e tirou mais uma garrafa pequena de bebida para substituir a que tinha esvaziado — Quer um golinho? Pra dar coragem.

    O jovem Maximus hesitou. Normalmente, ele evitava álcool por instinto de sobrevivência. Sempre que bebia, acabava fazendo alguma besteira digna de arrependimento instantâneo. Mas, depois de tantos infortúnios ao longo do dia, a ideia de um gole de coragem líquida ganhou um brilho perigoso.

    — Só um pouquinho. — respondeu finalmente, estendendo a mão livre enquanto equilibrava precariamente o urso com a outra.

    O equilíbrio, porém, era uma arte que Quintus ainda não havia dominado. No exato momento em que pegou a garrafa, o urso escorregou de seu braço, desequilibrando-o. 

    Num movimento digno de um malabarista bêbado, ele tentou recuperar o controle da situação, mas só conseguiu derrubar a garrafa, que se estilhaçou no chão com um barulho cristalino de oportunidades desperdiçadas.

    — SANTA PIKA! — exclamou Vento Leste, olhando horrorizado para os cacos de vidro — Era a última garrafa da coleção especial do meu pai!

    — Desculpa! — gaguejou, sentindo-se ainda mais miserável, se é que isso era possível — Eu… eu compro outra.

    — Essa era da safra de 62, custou um rim do meu avô. — explicou parecendo verdadeiramente desolado por um momento, antes de sua expressão mudar subitamente para um sorriso largo — Tô zoando, mano! Comprei por quinze pikas no posto. Mas agora vamos ter que achar outro lugar pra comprar mais, a noite ainda é uma criança!

    Quintus olhou para o céu estrelado, perguntando-se que divindade ele havia ofendido em uma vida passada para merecer tal castigo. 

    A ideia de continuar aquela aventura surreal com Vento Leste na condição de companhia não estava exatamente no topo de sua lista de desejos, mas ele também não estava em posição de recusar ajuda, mesmo que fosse uma ajuda potencialmente mais desastrosa que o problema original.

    — Tá certo. — concordou finalmente, reajustando o urso em seus braços e prometendo a si mesmo que assim que reabastecessem a bebida do parceiro, ele chamaria o Uber e evaporaria dali — A conveniência fica ali na esquina da padaria. Bora.

    — ISSO! — o jovem fantasiado de gato bateu palmas entusiasticamente — Que a pika nos guie nessa jornada!

    E assim, os dois, ou três, contando com a Senhora Ursula Pelúcia, partiram com Quintus arrastando seu urso e suas esperanças cada vez mais reduzidas de chegar à festa com alguma dignidade intacta.

    Enquanto caminhavam, ou no caso de Vento Leste, tropeçavam alegremente pela calçada, o jovem Maximus notou que seu colega embriagado olhava repetidamente para o urso com uma expressão que misturava curiosidade e admiração.

    — Sabe, você é um cara honorável. — declarou Vento Leste subitamente — Carregando sua acompanhante mesmo ela estando, digamos… indisposta. Muitos caras abandonariam uma mina bêbada, mas você não. Você é pika, mano.

    Quintus abriu a boca para explicar novamente que estava carregando um objeto inanimado e não uma mulher inconsciente, mas desistiu. A explicação anterior claramente não havia penetrado na névoa alcoólica que envolvia o cérebro de seu colega, e repeti-la parecia um exercício em futilidade.

    — Obrigado, eu acho. — respondeu simplesmente.

    — Pera, pera, pera! — interrompeu Vento Leste, parando de repente no meio da calçada e apontando para a esquerda com os olhos brilhando — Acabei de lembrar de um lugar pika pra gente comprar a bebida.

    — Mais pika que uma loja de conveniência a um quarteirão da festa?

    — Irmão, lá é preço de gente honesta, variedade de respeito e os caras têm uma cachaça artesanal que parece ter sido feita por monges bêbados no Himalaia. Além disso, conheço os donos. Eles me devem umas.

    — E é longe? — murmurou Quintus, com o olhar de quem já previa o arrependimento.

    — Só um desviozinho besta. — garantiu Vento Leste, já tomando a dianteira — Vai por mim. Vai valer cada passo. Confia.

    À medida que avançavam, o jovem Maximus começou a perceber que estavam se afastando cada vez mais da rota direta para a festa da Illusia. Na verdade, ele nem tinha certeza de onde exatamente estavam.

    — Vento, você tem certeza que este é o caminho? — perguntou após eles virarem na terceira esquina consecutiva que parecia levá-los para longe de seu destino.

    — Confie em mim, mano! — respondeu Vento Leste, com aquele brilho irresponsável no olhar. Para Quintus, a resposta transmitia a mesma confiança de quando o Google Maps manda entrar numa viela suspeita.

    — Conheço essa cidade igual a palma da minha mão! — proclamou, inflando o peito por dentro do terno possivelmente alugado à semelhança de um herói felino de fantasia e erguendo a mão em demonstração.

    Passou os olhos por ela com ar desconfiado, à maneira de quem percebe algo pela primeira vez.

    — Eita, essa linha é nova… — disse, e então riu — Tô zoando, relaxa. Sei bem pra onde a gente tá indo.

    Antes que Quintus pudesse retrucar, Vento Leste parou de repente, e ele acabou esbarrando nas costas do amigo. O urso quase voou de seus braços, já moles de tanto carregá-lo.

    — Olha só aquilo! — exclamou o jovem fantasiado de gato, apontando para algo na outra calçada.

    Seguindo a direção do dedo cambaleante, o jovem Maximus avistou uma vitrine de loja com um manequim feminino exibindo uma peça de lingerie. Seu estômago afundou ao perceber o brilho nos olhos de seu companheiro.

    — Vento, nem pense…

    Mas era tarde demais. Vento Leste já havia atravessado a rua em uma diagonal imprecisa, ignorando completamente o tráfego escasso, e agora estava parado em frente à vitrine, com os olhos arregalados na condição de quem enxerga pela primeira vez aquilo que o coração sempre procurou.

    Quintus respirou fundo e o seguiu, prevendo o desastre iminente mas incapaz de impedi-lo, tal qual um espectador de um acidente de trem em câmera lenta.

    — Olá, belezura! — sussurrou para o manequim, pressionando as mãos contra o vidro da vitrine — Você é tímida, né? Mas eu sou paciente… e gostoso.

    O que se seguiu foi uma das cenas mais constrangedoras que Quintus já testemunhara, e considerando sua própria história recente, isso dizia muito. Vento Leste iniciou um monólogo romântico para o manequim, incluindo declarações de amor eterno, promessas de aventuras pelo mundo e ao menos três propostas de casamento.

    — Seus olhos são como dois lagos… sem água… e sem reflexo… mas profundos! — declarava ele, gesticulando dramaticamente — E seu silêncio… ah, seu silêncio diz mais que mil discursos!

    — Vento, é um manequim. — tentou intervir, olhando nervosamente ao redor para garantir que ninguém estava testemunhando aquela loucura.

    — Shhhh! Não estou interrompendo você e sua senhora ursa, estou? — repreendeu Vento Leste, antes de voltar sua atenção ao manequim — Não ligue para ele, meu amor. Ele não entende o que temos.

    O que aconteceu a seguir foi tão rápido que Quintus mal teve tempo de registrar. O jovem fantasiado de gato aparentemente decidindo que era hora de selar seu amor com um beijo, lançou-se contra a vitrine com entusiasmo excessivo.

    Com um estrondo espetacular, Vento Leste desapareceu para dentro da loja, levando consigo o manequim e parte da decoração da vitrine. O alarme da loja começou a tocar instantaneamente, um som estridente que parecia gritar ‘INTRUSO IDIOTA! INTRUSO IDIOTA!’ repetidamente. 

    Quintus assistiu horrorizado enquanto seu colega emergia dos escombros da vitrine, com o manequim firmemente agarrado à maneira de um troféu de guerra. 

    — Calma, amor! — aparentemente interpretando o alarme como se fosse um grito de socorro da sua ‘amada’ — Vamos resolver isso que nem adultos… ou igual a dois amantes fugindo de um destino cruel!

    — ESTAMOS FERRADOS! — o jovem Maximus gritou indignado com a despreocupação de seu amigo e olhando freneticamente em todas as direções à procura de seguranças, policiais, ou qualquer figura de autoridade que certamente apareceria a qualquer momento. 

    Em uma daquelas ironias do destino, o universo parecia ter decidido que Quintus não havia sofrido o suficiente, pois ele avistou um segurança virando a esquina, atraído pelo barulho do alarme.

    Era um homem corpulento, com uma expressão que sugeria que ele havia esperado a vida inteira por uma oportunidade de perseguir criminosos incompetentes. 

    — CORRE! — berrou para Vento Leste, que ainda lutava para se libertar dos destroços da vitrine com seu ‘amor’ plástico nos braços. 

    — Não sem a minha princesa! — rebateu, demonstrando uma lealdade admirável, ainda que completamente deslocada. 

    O segurança, agora a apenas alguns metros, sacou um cassetete com a fluidez de quem pratica o movimento diariamente no espelho. 

    — PARADOS AÍ! 

    Foi então que o instinto de sobrevivência de Vento Leste finalmente superou sua paixão súbita. Largando o manequim, ele se lançou para fora dos destroços da vitrine com uma agilidade surpreendente para alguém tão embriagado. 

    — RETIRADA ESTRATÉGICA! — gritou, passando por Quintus tal qual um furacão e agarrando-o pelo braço — VAMOS, TRAGA SUA URSA! 

    O jovem Maximus sentiu o bolso traseiro da calça vibrar com uma notificação, mas no exato momento em que tentou pegar o celular, Vento Leste o puxou com força sobre-humana. 

    O aparelho deslizou de seus dedos feito um segredo mal guardado, descrevendo uma trajetória desenhada pelo acaso até estalar com um ‘crack’ aos pés do manequim abandonado.

    — MEU CELULAR! — Quintus gritou em pânico, esticando o braço livre dramaticamente.

    — ESCOLHA! O TELEFONE OU SUA VIRGINDADE TRASEIRA! — berrou Vento Leste, apontando para o cassetete do segurança que se aproximava rapidamente. 

    A tela do celular ainda brilhava alegremente entre os cacos de vidro, exibindo uma foto de Quintus sorridente ao lado de sua mãe e as palavras ‘Identificação de Proprietário: Quintus Maximus. 

    Qualquer pessoa com meio neurônio funcional saberia que fugir era absolutamente inútil com uma evidência dessas no local do crime, mas neurônios funcionais eram um recurso escasso naquela dupla sob efeito de álcool e adrenalina. 

    E assim, os dois dispararam pela rua, com o jovem Maximus atirando o urso de pelúcia no ombro lembrando um soldado desajeitado em fuga, enquanto era praticamente arrastado pelo seu colega de classe virtual. 

    O único pensamento coerente que conseguia formular em meio ao caos era uma lamentação profunda e existencial: sem seu precioso celular, estaria condenado a suportar a companhia de Vento Leste até chegarem à festa, em vez de simplesmente chamar um Uber e terminar aquela odisseia urbana o quanto antes. 

    “Se eu sobreviver, vou processar o fabricante desse bolso!” — resmungou em pensamento enquanto corria, numa atitude que sugeria que o verdadeiro vilão fosse o alfaiate de sua calça. 

    Atrás deles, o segurança vinha furioso, brandindo o cassetete e gritando ameaças criativas sobre o que faria quando os alcançasse.

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