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    Vinigo era o autoproclamado crítico de estética da escola, conhecido nas aulas virtuais por sempre interromper para comentar sobre a ‘composição visual inadequada’ dos slides dos professores.

    — Me tira dessa simulação, por favor… — sussurrou Quintus em pânico existencial — É o Vinigo! O crítico de design de feira de ciências  que me deu zero numa aula sobre leis de Newton porque ‘meu fundo verde limão causava instabilidade gravitacional no olhar’.

    Enquanto observavam o crítico em ação, duas garotas extravagantes aproximaram-se da porta VIP, causando um rebuliço instantâneo. A primeira usava uma saia tão minúscula que mais parecia uma faixa para cabelo.

    A outra, uma loira platinada com curvas tão exageradas que pareciam desafiar tanto a física quanto a anatomia humana. Seu salto plataforma era tão absurdamente alto que ela precisou da ajuda de dois seguranças para descer o minúsculo degrau da calçada.

    — Confia no pai. — disse Vento Leste puxando o blazer pra frente como se fosse capa de super-herói de boteco — Esse tipo aí derrete quando vê estilo de macho alfa com brilho próprio.

    O jovem fantasiado de gato mal tinha dado um passo em direção ao duas musas seminuas quando Quintus agarrou seu braço, agindo por instinto, segurando o blazer do amigo feito quem puxa um cachorro prestes a atravessar a rua no sinal vermelho.

    — Nem tenta! — falou rispidamente com os dentes cerrados, o olhar fixo nas mulheres volumosas que pareciam ter sido esculpidas com whey, laser e muita raiva — Por favor, não mete essa agora. Você já causou vários apocalipses hoje. Eu tô a três confusões de te deixar aqui e ir pra casa abraçar meu fogão desligado.

    Vento Leste olhou para o braço agarrado, depois para Quintus, e ergueu uma sobrancelha tal qual se tivesse sido ofendido por um mortal inferior.

    — Ahhh… entendi. — disse, puxando o braço devagar à maneira de quem estivesse lidando com uma criança ciumenta — É inveja. Tá na cara. Você ainda não tá pronto pra iluminação pika. Fica tranquilo, mestre ainda vai continuar te guiando.

    Vento Leste afastou-se dois passos, dramaticamente, temendo que o jovem Maximus estivesse contaminado por alguma doença espiritual dos não-iluminados. Sem aviso, sacou outra garrafinha do bolso interno do casaco, deu um gole solene e murmurou, com os olhos fechados:

    — A ignorância alheia bagunça meu campo vibracional todinho.

    Se é que tudo já não estava absurdamente surreal, um cheiro repentino de terra molhada cortou o ar, trazendo junto uma pitada de cemitério e aquele perfume suspeito que o chão exala quando resolve tomar banho.

    Atrás deles, um homem com uniforme de coveiro impecavelmente limpo, exceto por manchas de terra nas mãos, oferecia a estranhos uma pitada de terra em um saquinho de veludo, com a mesma reverência de quem serve rapé refinado.

    — Esta aqui veio direto do túmulo da minha ex. — explicava ele com orgulho, cheirando um punhado, numa atitude digna de um sommelier avaliando um vinho raro — Sente esse aroma de rancor com notas de traição e um final suave de ‘eu fiquei com seu melhor amigo’? Safra 2024, excelente ano para términos catastróficos.

    Quintus não sabia ao certo se aquilo era parte da festa ou uma instalação artística com críticas ao amor moderno. O fato é que um pequeno tumulto começou quando um homem perguntou se havia ‘terra de sogra também’. 

    O coveiro disse que isso custava o dobro e vinha com efeitos colaterais espirituais. Um DJ de chapéu de palha tentou cheirar o saquinho e desmaiou poeticamente. 

    O caos ganhava uma espécie de charme cínico conforme a entrada se aproximava, e lá estava Vinigo, iluminado por uma luz que parecia brotar diretamente do ego dele, numa cena em que seu orgulho parecia ter refletor próprio.

    Toda desordem precisa de alguém fingindo que tem um plano, e Vinigo cumpria esse papel com maestria. Com um tablet em mãos e olhar clínico de curador de exposição esotérica, ele avaliava cada pessoa na fila, numa solenidade de quem julga um desfile espiritual.

    Para cada um, fazia uma pausa dramática, analisava o figurino dos pés à cabeça, consultava o tablet com o cenho franzido e então declarava:

     — Composição harmônica aceitável, equilíbrio de cores mediterrâneo com toques neo-impressionistas. PODE ENTRAR.

    Ou:

    — Paleta monocromática sem contraste, silhueta sem narrativa, ausência total de conceito. NUNCA VAI ENTRAR. Nem em mil reencarnações desta dimensão material.

    Ou ainda:

    — Tentativa confusa de minimalismo com execução barroca. ESPERAR NA FILA DE REDENÇÃO ESTÉTICA.

    Quem era barrado recebia uma pulseira oficial da vergonha, com frases como: ‘Sofri um Look Sob Investigação’ ou ‘Interditado Temporariamente pelo Bom Senso’. 

    Era então direcionado a uma fila lateral, uma espécie de purgatório fashion que funcionava numa lógica de repescagem para quem ainda nutria a esperança absurda de um milagre estilístico que lhes permitisse entrar.

    Quintus sentiu suas pernas fraquejarem. Com seu conjunto básico de camisa e calça social, acompanhado de um urso de pelúcia gigante, suas chances pareciam nulas.

    — Estamos condenados. — sussurrou para Vento Leste, o olhar fixo na criatura avaliadora da porta. Ninguém havia mencionado que haveria um teste, uma seleção, uma triagem visual para entrar na festa do colégio Illusia. Se soubesse disso, teria ficado em casa, bem longe de qualquer chance de humilhação pública.

    — Deixa comigo! — o jovem fantasiado de gato ajustou a postura, bebeu mais um gole de sua garrafa e avançou confiante, arrastando seu colega de classe e o urso. No caminho, no entanto, parou abruptamente ao avistar uma jovem na fila paralela, usando um vestido que parecia feito de páginas de livros antigos.

    Antes que Quintus pudesse impedir, Vento Leste já havia se inclinado na direção dela com seu sorriso mais charmoso.

    — Ei, gata, você tá esperando ônibus? — disse com a energia de um tiozão no Natal depois da quinta cerveja e zero noção de vergonha — Porque você tá no ponto!

    Um burburinho de indignação percorreu a fila. O jovem Maximus tentou se esconder atrás do urso, mas era tarde demais.

    — Assédio! — gritou alguém.

    — Violência! — exclamou outro.

    — Apropriação de linguagem rodoviária em um contexto pós-moderno! — berrou um terceiro, causando mais confusão do que indignação. 

    Logo estavam cercados por pessoas com olhar de quem já deu três palestras sobre masculinidade tóxica antes do café da manhã e vinha armada com dados estatísticos, pedaços de paus e sede de justiça performática.

    — Fique para trás, Quintus! — disse Vento Leste, avançando com a postura de quem treinou kung fu vendo videoclipe com cenas de animes no YouTube às três da manhã — Eu vou defender nossa honra com meus conhecimentos marciais milenares adquiridos entre um gole de catuaba e cem capítulos de ‘Punho da Alma Dragão’!

    O jovem Maximus o encarou, perplexo, se perguntando se era a bebida que dava aquela coragem ou só mais um efeito colateral de seu cérebro já dissolvido por hentai e fanfics.

    Vento Leste girou no próprio eixo com a confiança de quem já tinha visto esse movimento funcionar num tutorial ao som de Rasga Tanga.

    O chute, no entanto, foi um fracasso completo, atingindo no máximo vinte centímetros de altura. Foi uma elevação tão simbólica quanto inútil, suficiente apenas para desequilibrá-lo. 

    Fazendo-o tropeçar nos próprios pés e desabar com um estrondo sobre uma das pessoas que os cercavam.

    Quintus, ainda sem acreditar no que via, correu para ajudar, mas foi recebido com uma bolsa artesanal feita de tampinhas de refrigerante no ombro, lançada por alguém que aparentemente estudava design de armas improvisadas.

    O pandemônio escalou quando um copo voador de bebida colorida cortou o ar em trajetória de míssil desgovernado, errando os dois completamente e aterrissando direto no tablet de Vinigo, que observava tudo da fila com a expressão de quem acabara de ver seu TCC ser deletado ao vivo.

    Ele soltou um grito abafado, abraçando os restos molhados do aparelho tal qual se tentasse impedir a fuga da alma digital ali contida, enquanto ao redor o caos seguia firme: com gritos, tropeços, e alguém iniciando um jogral espontâneo sobre limites pessoais.

    — INTERRUPÇÃO DA HARMONIA COMPOSICIONAL! — trovejou Vinigo, sua voz ecoando acima do tumulto — CESSAR IMEDIATAMENTE ESTA EXPRESSÃO CAÓTICA NÃO AUTORIZADA!

    Impressionantemente, todos pararam. Vinigo, com seu tablet pingando algum líquido roxo brilhante, avançou tal qual um juiz do apocalipse estético.

    — Se mais alguém ousar perturbar o equilíbrio visual deste evento, NINGUÉM MAIS ENTRA. Entenderam? Transformarei esta festa em uma instalação artística sobre ausência e vazio existencial!

    A multidão recuou imediatamente. No meio da confusão, Quintus percebeu com horror que o urso tinha desaparecido de seus braços.

    — Senhora Ursula! — exclamou desesperado, olhando ao redor — Onde está o urso?

    — Cara, alguém sequestrou sua ursa! — disse Vento Leste, agora com o blazer rasgado, o cabelo apontando em direções impossíveis e extraindo o celular do bolso com a mesma dificuldade de um parto cesáreo improvisado — Isso é crime, mano! Vou ligar para a polícia agora mesmo. Sequestro é pika negativa da mais alta ordem!

    — Deixa para lá. — suspirou derrotado — Os fortes sempre acabam fazendo a lei.

    — Como assim ‘deixa para lá’? — disse parecendo genuinamente indignado — Isso é um sequestro!

    — De um urso de pelúcia, Vento!? Você pretende explicar de que jeito para a polícia que precisa de recursos de emergência para recuperar um brinquedo?

    O jovem fantasiado de gato considerou a questão por um momento, o dedo pairando sobre o teclado do celular.

    — Bom argumento. — disse, com o dedo parando no ar, congelando no instante exato de uma decisão perigosa. Depois de um segundo dramático, bloqueou a tela e enfiou o celular no bolso, num ato que lembrava alguém enterrando uma tentação. 

    Os dois se olharam, finalmente processando sua situação. Estavam machucados, sujos, sem o urso-acompanhante, e sob o olhar fulminante de dezenas de pessoas esteticamente conscientes.

    — Minha fantasia! — lamentou, levando as mãos à cabeça e percebendo que sua máscara de gato estava agora rasgada. 

    — Sabe… — Quintus não conseguiu se impedir de comentar — Era melhor com a máscara. Pelo menos cobria parte do seu rosto.

    — Ei! — Vento Leste pareceu ofendido por meio segundo antes de dar de ombros. 

    O jovem Maximus olhou para seu convite, depois para o relógio. A festa já havia começado há quase uma hora, e agora estava sem seu plano B de acompanhante falsa.

    — Estou sem companhia para entrar — murmurou — Todo esse trabalho por nada.

    O jovem fantasiado de gato também encarava seu próprio convite, triste.

    — E eu sem fantasia decente. — falou Vento Leste que também encarava seu próprio convite, triste —  Acha que posso dizer que estou fantasiado de ‘vítima de um apocalipse Zumbi?’ Ou melhor, de ‘mendigo com PhD em filosofia pika?’

    Foi quando uma ideia terrível começou a se formar na mente desesperada de Quintus. Uma ideia tão absurda que só poderia funcionar na lógica torta daquela noite.

    — Vento, você tem um convite e precisa de uma fantasia. Eu tenho um convite e preciso de uma companhia.

    — Você está sugerindo…

    — Que você seja minha companhia e entremos juntos, sim.

    Vento Leste ficou anormalmente quieto por três segundos inteiros, um recorde pessoal.

    — Isso seria a coisa mais pika que já fizemos hoje! — finalmente exclamou, jogando os braços para cima.

    — Não tenha tanta certeza. — Quintus suspirou, resignado — Vamos, antes que eu recupere meu bom senso.

    Quintus trocou um olhar com Vento Leste, que tinha enfiado a cabeça em um saco de pães, esburacado na altura dos olhos e posava como se fosse um herói mascarado saído da padaria da loucura. 

    “Maravilha!” — pensou — “a única coisa que falta é a ursa sequestrada voltar grávida e exigir pensão.”

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