Capítulo 53 - A cicatriz de Arcos
JOUCI “NÃO-NOMEADA”
Dava vontade de me dar tapinhas nas costas pela ideia que dei a Thermon. As Asas-de-Gelo eram incríveis!
Voávamos alto, longe das vistas dos desavisados.
Lá de cima, o vento frio era um alívio para nós três.
Era um pouco difícil respirar, mas bastava Thermon diminuir a velocidade, e ficávamos bem.
Após cinco ciclos, quando o sol estava a pino, decidimos descer para almoçar e dar um descanso a Thermon.
Assim que o zumbido em nossos ouvidos diminuiu — resultado da forte ventania que nos acertava constantemente —, perguntei a Regi:
— Tem alguma ideia de onde estamos, sogro? — Perguntei, enquanto usava minha pederneira para acender a fogueira.
— Sim, se meus cálculos estiverem corretos, mais seis ciclos voando chegaremos à fronteira do domínio dos humanos.
— Espera, isso significa que já teremos saído da parte do continente Aurora sob controle dos elfos… Se fizermos as contas, com uma margem de erro baixa, é possível atravessar do sul ao norte deste continente em menos de três dias!
Falei com certa surpresa. Sabia que Aurora era menor que o Sáfaro, mas cruzar o continente em três dias ainda seria surpreendente.
Onde paramos era como um bosque. Eu sabia que, pelo tempo relativo, mensurado por Regi, deveríamos estar no meio da floresta Galho-Perpétuo, mas não parecia o caso.
— Pelas suas estimativas, pai, não deveríamos estar no meio do domínio élfico? Não vejo a floresta por aqui — Thermon pareceu ler minha mente ao perguntar isso.
— A floresta deles não cobre toda a extensão de seu domínio. Na verdade, Galho-Perpétuo preenche cerca de um terço das terras que eles controlam. Como estamos mais perto do litoral, não veremos a floresta élfica.
Regi viajou o mundo quando era apenas um assassino de Vanir. Ele sabia como “se encontrar” apenas olhando a paisagem.
Lembrei, pela décima vez nesta viagem, que, sem sua ajuda, seria impossível salvar Thermon no meio do deserto.
Assim que nosso acampamento improvisado estava pronto, começamos a preparar o almoço, usando bastante carne seca.
Sentamos para comer e olhei para Thermon. Percebi como ele havia recuperado o peso perdido, durante o mês que ficou preso. Estava menos pálido e mais forte.
Isso me deixou feliz. Meu coração até ficou quentinho com isso… Se bem que não é uma coisa boa, um elfo-de-gelo estar com o coração quente.
Voltando ao presente, Thermon havia feito uma proteção de gelo acima de nossas cabeças, como um toldo de gelo fosco. Assim não teríamos que nos proteger do sol do meio-dia.
— Se as minhas estimativas estiverem corretas, perto do anoitecer encontraremos a primeira cidade humana, Arcos. Foi lá perto que Alvo enfrentou, e aniquilou, os mil e quinhentos magos dos elfos — Regi falou com um pesar na voz, como se parte daquilo fosse culpa dele. Claramente não era.
— Esse massacre hediondo foi o que motivou minhas viagens fora do polo sul, ao lado de Baru e Jouci.… Sei que é um assunto encerrado entre os próprios elfos e humanos, mas ainda me pesa o coração lembrar disso.
Thermon focava a visão nas pedras aos seus pés.
— E aqui estamos nós, atravessando o planeta para pedir ajuda de alguém que matou tanta gente… Às vezes acho que os deuses riem da nossa cara — tentei dizer em um tom de brincadeira, mas nem Regi nem Thermon pareciam estar no clima para tal.
— Algo me diz que sim, o Escolhido dos humanos vai nos ajudar, mas parte de mim não quer sua ajuda. Sei que não sou eu quem define isso, mas a sensação não sai do meu peito só por eu saber disso…
A fala de Thermon me deixou pensativa.
Feridas causadas por guerras, geralmente, são ignoradas após o final das batalhas, quando o vencedor define como a história será contada. Seus “heróis” são condecorados, e, seus crimes, perdoados.
É injusto, mas é assim que as coisas são.
Após o silêncio tomar conta de nosso acampamento improvisado, um estalo veio em minha mente:
— Regi, o que você sabe sobre essa cidade, Arcos?
— Sei que, por algum motivo, é uma cidade bastante populosa. Tem cerca de vinte mil habitantes.
— Obviamente não estou do lado dos humanos, mas faz sentido Alvo ter causado tanto sofrimento aos elfos… — Thermon me olhou, com certa incredulidade. — Ele não podia se dar ao luxo de deixar nenhum mago passar, certo? Imaginem o massacre que seria se os elfos atacassem esta cidade? — Esperei a pergunta decantar em suas mentes. — Não é um exercício que quero repetir, mas, se nos colocarmos no lugar de Alvo, o que faríamos nessa situação?
Thermon franziu o cenho, ainda olhando em minha direção, mas não focando em meus olhos. Regi cruzou os braços, pensativo.
— Não acho que seja um bom exercício a se fazer… — Thermon não parecia contente com a ideia.
— Mas pense bem, Thermon, e se fosse o contrário? Se Elfos, ou quaisquer que fossem os inimigos, estivessem atacando as aldeias do polo sul, o que faria? — Regi colocou outra possibilidade na mesa.
— Bem… — A voz morreu em sua garganta.
— Vanir não vai atacar nossa terra sozinho. Teremos que ser mais incisivos ao nos defender. Assim como Alvo foi em Arcos… Não é algo que quero, mas será necessário! — Expus o motivo de ter trazido o assunto à tona.
Thermon olhou em meus olhos, com uma expressão preocupada.
— Você mudou bastante neste mês em que estivemos separados — em sua voz um pesar quase palpável. Meu companheiro parecia um pouco triste.
— Creio que seja este o motivo pelo qual fui “escolhida” para esta missão. Talvez, só talvez, eu seja a elfo-de-gelo que mais tenha mudado sobre essas questões “delicadas”… Não vejo mais a morte como um tabu. Sei bem como nossa cultura abomina assassinatos, mas isso não me impediu de matar…
Thermon me olhava com descrença. Regi apenas abaixou a cabeça.
— Jou? Você… Matou!? — Thermon franziu o cenho e olhou em volta, procurando algo para se apoiar, mas o apoio que ele queria não era físico. — Quando? Como?
— Foi para me defender. Regi, eu e Tala estávamos atacando uma base de Vanir na floresta, e um soldado veio em minha direção. Enfiei uma lâmina em seu pescoço… Pensei tanto nisso… Me machucou tanto lembrar da sensação que tive, quando percebi o brilho em seus olhos sumindo… — Respirei fundo e olhei para o chão, não conseguindo sustentar o olhar de Thermon. — Mas hoje entendo que foi necessário. Era matar ou morrer.
— É minha culpa, filho. Ela precisou se defender por que fui ingênuo, e ataquei a base cegamente. Por favor, não a culpe — Regi disse, com firmeza.
— Eu… Eu… Preciso pensar. Vamos comer e seguir viagem logo.
Thermon quase enfiou o rosto em seu prato enquanto comia. Nem eu nem Regi falamos com ele o restante do almoço.
Voamos por tanto tempo que o céu já estava ficando laranja, devido ao fim da tarde.
Ao longe estava Arcos, uma cidade encravada em uma planície vasta e bonita. Nunca pensei que veria algo tão interessante.
Poucos quilômetros à minha direita estava o mar. À minha esquerda, bosques e plantações de trigo. À nossa frente, uma cidade fundida com a paisagem. Só conseguimos ver tudo isso devido a altura em que estávamos.
Poucas construções de Arcos eram altas a ponto de serem chamadas de prédios. Parecia que a maioria das estruturas da cidade eram voltadas à moradia de seus habitantes, o que tornava o lugar bastante horizontal.
Mas nem tudo era beleza e admiração. Havia uma cicatriz nessa paisagem, maculando a visão.
Bem à esquerda da cidade havia uma região enegrecida pelo o que parecia fogo e sangue. Devia haver centenas de metros quadrados marcados por essa mancha escura.
Regi gritou por cima da barulheira do vento em nossos ouvidos:
— Acho que ali aconteceu a batalha entre Alvo e os elfos. Pelo tamanho da marca que ficou na terra, a luta foi bem mais brutal do que eu imaginava.
Thermon e eu ficamos em silêncio. Na verdade ele estava calado desde o almoço, mas não o pressionamos a falar. Eu sabia o que se passava em sua mente.
Segurava firme em sua cintura, pois não havia onde me apoiar nas Asas-de-Gelo — e, naquele momento, apertei com ainda mais força. Eu sabia que ele percebeu este toque repentino.
— Eu sei, Jou. Eu sei…
Pelo jeito não era só eu quem conseguia saber o que se passava na mente do meu companheiro.
Queria chorar ou dar explicações sobre o que aconteceu na viagem, mas estava óbvio que não seria necessário. Ele entendia.
Voamos mais um tempo e estávamos muito próximos de Arcos.
— O que faremos: vamos tentar contato com os humanos, ou seguimos em frente? — Cortei o silêncio.
— Voto por passarmos por cima da cidade e acampamos mais ao norte. Quero evitar possíveis conflitos com os humanos nesse começo de viagem. Eles tendem a ser muito passionais… — Regi falou.
— Entendo. Faremos dessa forma então — Thermon decidiu.
Como voávamos a mais de um quilômetro de altura, acreditávamos que não podiam nos ver.
Estávamos errados.
Assim iríamos passar por Arcos, percebemos pontos escuros abaixo de nós, vindo muito rápido em nossa direção.
— Isso não deve ser coisa boa… — Thermon comentou.
Não tínhamos como ignorar o pelotão de magos humanos que nos interceptaram, flutuando em redemoinhos. Eram cinco.
Usavam armaduras escuras, espadas e escudos.
Paramos abruptamente, a menos de dez metros de distância dos magos.
— Alto lá! O que desejam aqui? Acham mesmo que vão passar por nossa cidade sem serem notados? — O mais velho deles falou.
— Bem, na verdade pensamos nisso sim… — Thermon foi desaforado.
Não foi uma boa ideia. O soldado pareceu extremamente irritado.
Cutuquei as costas do meu companheiro com um pouco mais de força que o normal, e ele contraiu com a dor.
— Ai…
— Fique quieto, você não serve para esse tipo de coisa… — Limpei a garganta com duas tosses forçadas e comecei. — Olá, senhores. Peço desculpas, pelo o que meu amigo aqui falou. Me chamo Jouci, este bobalhão é Thermon e este outro senhor atrás de mim se chama Regi. É um prazer conhecê-los.
O soldado franziu ainda mais o cenho, nos medindo.
— Nem tentem nos bajular, azulões. Não vamos deixar vocês passarem por aqui sem autorização! — O soldado parecia ainda mais irritado com o que eu disse.
— E como conseguimos esta autorização, meu nobre senhor? — Talvez eu tenha soado um pouco sarcástica demais, mas parece ter surtido efeito nele.
— Precisam de uma permissão, emitida pela nossa prefeitura. Mas só se conseguirem provar que não são uma ameaça para a raça humana, o que acho bem difícil de fazerem… — A fala beirava a rispidez, mas não chegava a tanto.
— Pois bem, podem nos levar à prefeitura? A última coisa que queremos é a inimizade de sua raça.
A fala pareceu fazer bastante efeito no guarda. Ele olhou para os outros quatro guerreiros à sua volta. Eles assentiram, aprovando o nosso pedido.
— Nos sigam. Mas nem pensem em tentar fugir de nós. Somos os magos voadores mais rápidos do reino humano!
Ainda querendo evitar conflitos, respondi:
— Estamos à sua disposição, senhor. Peço que nos mostrem o caminho.
“Era óbvio a todos nós que aquilo era um ataque suicida. Quando vimos um brilho rasgar a noite, como se o sol tivesse nascido errado, sabíamos… O escolhido dos humanos estava ali. E a morte estava com ele.”
Eladon, falecido soldado élfico
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