Índice de Capítulo

    Um guincho molhado ecoou do teto enquanto mais glutões despencavam, um após o outro. As gosmas colidiam com o chão, estalando num som pegajoso, se espalhando e se recompondo com um apetiche insaciável.

    — Almira, segura firme aí! — gritou Hazan, chutando um deles para longe.

    — Eu preciso de concentração e tempo! — retrucou a acolhedora, já começando a desenhar runas no chão com o dedo, a ponta brilhando com uma luz esverdeada.

    Aurora girou para o lado de Hazan, desviando de um glutão que pulou em sua direção. Ela fincou as duas adagas em um deles, acertando os olhos. O corpo da criatura estremeceu e se desfez na mesma hora.

    — O núcleo dessas coisas fica nos olhos! — gritou ela, puxando as lâminas cobertas por uma substância preta e viscosa.

    — Perfeito! — Hazan socou um dos olhos maiores que avançava em sua direção. A gosma explodiu em uma chuva escura que respingou em sua roupa. — Ah, que delícia de dia, cara!

    Duas criaturas se arrastavam pelas paredes laterais, buscando cercar Aurora. O lutador correu, deslizando pelo chão para empurrá-la para o lado com o ombro, fazendo os dois rolarem juntos.

    — Você tá bem? — perguntou, por cima dela.

    — Eu conseguia me virar.

    — Eu sei, só tava com vontade de bater no seu ombro — ironizou ele, estendendo a mão para puxá-la.

    Ela aceitou a ajuda, encarando a quantidade exagerada de glutões que não parecia ter fim.

    — Tsc, isso vai demorar. — A polariana tinha um misto de nojo e desprezo no rosto.

    As paredes pulsavam. Os olhos nas gosmas piscaram em descompasso, parecendo irritados com a resistência do trio. 

    Almira mantinha os olhos fechados, murmurando orações antigas. Suas mãos tremiam, mas a luz esverdeada que saía de seus dedos era firme. Círculos mágicos começavam a se formar, girando em torno dela.

    — Eu preciso de mais dois minutos! — gritou ela, concentrada.

    — É fácil dizer isso quando não é você lutando! — respondeu Hazan, socando uma criatura que se arrastava em sua direção.

    Aurora corria pelo campo de batalha, cortando e estocando freneticamente. Cada vez que acertava um olho, uma criatura caía. Mas para cada uma derrotada, mais três surgiam.

    — Essas coisas não têm fim?! — gritou Hazan, vendo duas gosmas colidirem e formarem uma criatura maior.

    Essa tinha quatro olhos dispostos em forma de cruz. Cada um se movia independentemente, analisando os alvos.

    — Aurora, distraia ele! Eu vou pular por cima! — gritou Hazan.

    — Não me dê ordens! — ela respondeu indignada, atirando uma adaga direto em um dos olhos.

    A criatura berrou, recuando. Hazan correu, pisou em uma pilastra caída e saltou, acertando um soco certeiro no olho superior. O núcleo brilhou em vermelho por um segundo antes de estourar com uma pressão interna que lançou gosma para todos os lados.

    Hazan caiu ajoelhado no chão, arfando, coberto da substância fétida.

    — Isso não vai sair nem com banho de sal grosso…

    — Falo menos, mata mais! — Aurora gritou, girando e arremessando sua segunda adaga direto em outra gosma que tentava escalar pela parede até Almira.

    O campo mágico em torno da acolhedora tremulou, como se sentisse o perigo. Mas ela não se moveu. Confiava na dupla que estava lhe protegendo.

    Hazan correu até ela, chutando as criaturas menores que tentavam se aproximar.

    — Não tô querendo te apressar, mas falta muito? 

    — Estou dando o meu melhor! — ela respondeu com um fio de suor escorrendo pela têmpora. — Isso aqui não é mágica de feirinha!

    As runas giravam em dois círculos concêntricos. Um símbolo em forma de estrela despontava no chão abaixo dos pés de Almira.

    — Tô quase!

    Aurora voltou para perto de Hazan, ambos agora lado a lado, encostando as costas.

    — Quantos você acha que já derrotamos?

    — Muitos — respondeu Hazan, olhando para a massa ondulante à frente. — Mas nem perto do suficiente.

    Um rugido baixo ecoou do altar principal.

    Os olhos na parede começaram a se unir. A massa principal vibrava. Lentamente, uma forma mais sólida emergia do centro: uma criatura maior, com olhos por todo o corpo, alguns fundidos, mas um olho enorme se destacava no centro.

    — Aurora… — começou o lutador.

    — Já tô vendo — respondeu ela, posicionando-se ao lado dele. — Vamos nos dividir. Eu vou pelos flancos, você pela frente. Precisa acertar o olho central. Aquele ali, no peito.

    — Só um olho?

    — Não vacila.

    Os dois correram.

    Hazan se esquivou de um tentáculo de gosma que tentou agarrá-lo. Saltou, correu pelas costas de um banco partido, desviando de uma rajada de gosma que corroía a madeira.

    Aurora girava pelos flancos, jogando sua adaga para cima. Pulou, pegou-a no ar e cravou num dos olhos laterais da criatura, forçando-a a virar para o lado.

    — Agora, Hazan!

    O jovem se lançou com tudo.

    Pés firmes no chão molhado, saltou com brutalidade, um sorriso se formando involuntariamente em seu rosto.

    [Joelhada Voadora!]

    A criatura berrou. O olho vibrou, brilhou — e então rachou como vidro.

    Nesse instante, Almira abriu os olhos.

    Os círculos mágicos se espalharam num clarão verde, envolvendo os glutões em poucos segundos.

    Os olhos estouraram em sincronia. O barulho e grunhidos constantes não existiam mais. Somente a respiração pesada do trio se fazia presente.

    Hazan caiu sentado no chão, ofegante, lambuzado da cabeça aos pés.

    — Me lembra de recusar as próximas missões do sacerdote…

    Aurora limpava o rosto com a manga da roupa, fazendo uma careta.

    — Isso entrou na minha boca…

    Almira apoiou as mãos no chão, exausta, mas viva.

    — Vocês foram incríveis…

    — Você também, laranjinha — respondeu Hazan.

    — Laranjinha…? — ela indagou, curiosa.

    Hazan sorriu e apontou para as mechas do cabelo dela.

    — N-não me chame assim, é embaraçoso! — A garota reclamou, jogando um pedaço de gosma nele.

    — Ei, isso é postura pra uma aprendiz da igreja? — O lutador perguntou, tirando a gosma do rosto e fingindo seriedade.

    Ela se encolheu, ficando mais tímida.

    — I-isso…

    Mas Hazan deu de ombros.

    — Eu tô zoando. Não me importo — finalizou ele com um sorriso debochado.

    A acolhedora cerrou os punhos de indignação, mas não havia nada que pudesse fazer.

    Os três aproveitaram o silêncio e a estranha paz que envolvia aquele lugar, apesar das ruínas e dos resquícios de gosmas escuras.

    Aurora olhou para Hazan.

    — Você ouviu algo… antes disso tudo começar?

    Hazan hesitou. Lembrou-se do sufocamento, das vozes ancestrais, do pânico, e dos sussurros esquisitos.

    — Nada de mais — respondeu, encolhendo os ombros. — Talvez só meu estômago roncando.

    Aurora estreitou os olhos, mas não insistiu. Havia algo nos olhos dele… um peso, uma sombra que não estava ali antes. Ele estava se esquivando de suas perguntas há um tempo, mas ali não parecia o momento certo para confrontá-lo.

    — Acho que vou ficar aqui mais um tempo — comentou, olhando em volta, como se procurasse algo no ambiente. — Treinar um pouco. Tô precisando.

    — Você acabou de lutar com um bando de olhos gosmentos assassinos e quer… treinar? — Almira indagou, com os olhos arregalados.

    — É o jeito que eu relaxo. 

    Aurora soltou um suspiro, deu dois passos até ele e bateu levemente no ombro do rapaz.

    — Tá bom, lunático — disse ela, com um tom compreensivo na voz. — Só não demora muito. — A advertência veio com um sinal que só eles entendiam.

    — Só não fica com a minha parte das recompensas — respondeu com um sorriso torto.

    — Vou usar pra comprar sabonetes. Você tá fedendo.

    — E você também. E eu tenho que lidar com isso o tempo todo — retrucou Hazan, rindo com uma careta.

    Aurora revirou os olhos, e Almira, mesmo cansada, esboçou um pequeno sorriso ao ver a cena. Então, as duas começaram a se afastar pelo corredor que levava de volta à entrada das ruínas, seus passos ecoando entre colunas quebradas e sombras persistentes.

    Hazan esperou alguns minutos, apenas para ter certeza de que estava sozinho. Olhou para as manchas negras no chão, respirou fundo e se sentou de pernas cruzadas no centro da sala. Um desconforto crescia no fundo do peito. Como uma presença que observava… mas não se mostrava. Ele virou o rosto para os lados, tentando encontrar algo, mas tudo o que viu foram os restos da batalha e a luz mortiça filtrando-se por entre rachaduras no teto.

    — Aparece logo, porcaria de sistema.

    Foi então que um som conhecido ressoou, metálico e etéreo em sua mente.

    [Missão secundária concluída: “Investigue as ruínas do templo de Unitas.”]
    [Notificação especial: O Arconte aprova suas ações. Deseja iniciar uma missão pessoal?]

    Hazan franziu o cenho. Seu corpo se enrijeceu como se um instinto o alertasse para perigo iminente. O nome “Arconte” brilhava na notificação, mas não dizia qual. O sistema raramente se manifestava de forma tão direta… e aquilo não era só mais uma missão aleatória.

    [Aceitar missão pessoal do Arconte?]

    [Aceitar] [Rejeitar]

    — Que merda é essa agora… — murmurou, massageando as têmporas.

    Tinha sido forçado a seguir ordens do sistema desde que chegou naquele mundo. Se falhasse, se recusasse a missão, tudo poderia levá-lo à morte.

    [Penalidade por falha: O Arconte perderá o interesse em você.]

    Hazan estreitou os olhos.

    — Então não tem morte dessa vez…?

    Era estranho. Mas ao mesmo tempo, a ausência de penalidade fatal tornava aquela proposta tentadora. Era como se fosse um convite. Um teste. Uma oportunidade para conseguir novas informações.

    Nem fodendo que eu vou perder essa chance.

    Lentamente, clicou em “Aceitar”.

    A notificação mudou imediatamente.

    [Você aceitou a missão pessoal do Arconte!]

    [Título: “Sede Inabalável”]
    [Descrição: Prove ao Arconte sua obsessão. Sustente o peso de quem você já foi, e de quem deseja ser.]

    [Duração: 30 dias.]
    [Recompensa: ???]
    [Penalidade por falha: Perda total de interesse do Arconte.]

    Hazan leu duas, três vezes.

    — Sustentar o peso de quem eu já fui?

    As palavras estavam impregnadas de algo mais profundo. Algo que não era muito bom em interpretar.

    Mas sentiu aquele olhar invisível.

    Tinha o mesmo peso de quando estava imerso na maldita névoa, quando as vozes disseram que ele era um Arauto. 

    Talvez fosse loucura. Mas se quisesse respostas para todas as perguntas que tinha, precisava arriscar.

    — Beleza — disse, erguendo-se. — Essa é a primeira vez que me animo com esse sistema maluco!


    As vielas do subúrbio se enroscavam, veias desgastadas, estreitas e rachadas. O cheiro de óleo e carne salgada pairava no ar, enquanto crianças descalças corriam entre barris e lençóis coloridos pendurados em varais improvisados.

    Seus pais observavam com sorrisos sinceros, apesar de viverem de maneira humilde.

    Hazan mantinha o ritmo firme da corrida, o suor traçando caminhos pelo pescoço, até se perder na gola da camisa encharcada. 

    Alguns dias se passaram desde a missão para a Igreja. Como esperado, a dupla recebeu quatro poções abençoadas, o elixir curativo de mais alto nível que conseguiriam naquela cidade. Ainda não tinham decidido o que fariam com elas.

    Apesar de serem bairros humildes, eles também estavam animados para o Fertival do Despertar que começaria em dois dias. Algums moradores deixavam flores em jarros enfeitando suas casas, e crianças usavam pedaços de giz para desenhar no chão.

    Se acostumou a enxergar a realidade daquelas pessoas. Todos os dias, fazia o mesmo trajeto, começando pelo centro da cidade e percorrendo os subúrbios.

    Uma vez ou outra, elas o cumprimentavam, reconhecendo os esforços do lutador em cumprir os pedidos que enviavam para a guilda.

    Os últimos quilômetros ainda o separavam do seu compromisso na cozinha de Randolf, mas não era a distância que o testava. Era o que carregava.

    Nas costas, uma mochila de couro escuro balançava a cada passada. Não era como a anterior, aquela que cedeu durante a luta contra o maior predador dos Campos Bestiais. Desta vez, investiu sem piedade em qualidade. Fivelas reforçadas, costura dupla, revestimento interno contra rasgos. Uma mochila feita para aguentar o tranco.

    E era exatamente isso que exigia dela.

    Em vez de provisões ou mantimentos, encheu o interior com as escamas do Korgar. Cada placa tinha o mesmo peso de uma pedra de rio. Sozinhas, já eram pesadas. Juntas, formavam uma maldita pressão sobre seus ombros.

    A cada passada, o peso o arrastava um pouco mais para o chão, punindo joelhos, tornozelos e lombar. O joelho esquerdo ainda protestava uma vez ou outra, mas a dor já não era novidade. Com o tempo, aprendeu a conviver com ela.

    Apesar do caos, havia dignidade naquele bairro. Vendedores latiam seus preços. Ferreiros limpavam o suor com panos imundos. Crianças riam alto, mesmo com os pés feridos. Era triste, mas honesto e real. Uma realidade que contrastava com a beleza do centro da cidade.

    Então veio o som.

    Um estalar de madeira se quebrando. Logo depois, um grito abafado.

    Ao dobrar a esquina, viu o caos tomar forma em silhuetas. Quatro homens com armas diferentes esmurravam as janelas de uma ferraria recém-aberta. Cacos de vidro tilintavam contra o chão de paralelepípedos. A placa da loja, com pintura recente, balançava solta, presa por um único prego torto, coberta de fuligem.

    — Você com certeza trapaceou, seu desgraçado! — vociferou um dos invasores, estourando a maçaneta da porta com um golpe bruto de um bastão de ferro.

    De dentro da oficina, um jovem surgiu. Cabelos pretos trançados em fileiras paralelas como os de Aurora, olhos amarelos e rosto suado. Ele segurava uma tora de madeira com firmeza e a cravou nas costas de um dos agressores com um estalo seco.

    — Tirem as mãos da minha ferraria! Eu ganhei aquela partida de vocês, joguei limpo! O dinheiro foi justo! — disse ele com determinação, limpando a fuligem do rosto e passando no avental de couro.

    — É… — respondeu outro, rindo com desprezo — mas o patrão começou a dar azar depois que você levou a aposta. E azar, meu caro, é a única coisa que a Confraria da Sorte não perdoa.

    Sem aviso, um dos brutamontes agarrou o ferreiro pelo colarinho e o puxou para perto. Um joelho ergueu-se como um martelo e se cravou no abdômen do rapaz. Ele desabou, tossindo, de joelhos sobre os cacos e a sujeira.

    — O que vocês estão fazendo com o meu ferreiro?

    Todos pararam.

    Quatro cabeças se viraram em sincronia, surpresas por ver alguém que não recuava. 

    — Esse ferreiro falido tem mesmo um cliente? — disse um deles, num tom sarcástico.

    — Se não quiser perder alguns dentes, é melhor seguir o seu caminho, moleque! — ameaçou outro homem.

    Hazan soltou um suspiro. Estalou o pescoço e testou a mobilidade do corpo, flexionando os joelhos com mini-saltos. Estava se aquecendo.

    — Preferem ameaçar que nem mocinhas ao invés de partirem pra cima? Já vi bandidos melhores.

    O maior deles, um homem largo, com braços marcados por cicatrizes e uma corrente girando preguiçosamente entre os dedos, estreitou os olhos.

    Balançou a corrente no ar e a jogou em sua direção. Hazan aguardou até o último instante, desviando com um movimento ágil para o lado. Em um só gesto, agarrou a corrente e a puxou com força, trazendo o agressor para perto.

    Seu punho cerrado acertou em cheio o tórax do homem, e o som seco de costelas se partindo ecoou no ar. O impacto o lançou contra uma parede de tijolos, onde colidiu com um baque surdo.

    Eles não esperavam aquela força absurda, e o segundo bandido agiu mais pelo medo do que por raiva.

    — Seu desgraçado! — gritou, correndo até o lutador com uma adaga curta.

    A lâmina quase tocou o tecido da camisa.

    Hazan girou o quadril e desviou. A mão esquerda se fechou num gancho perfeito, acertando o maxilar do bandido. Os dentes voaram no ar. O homem desabou como um saco de farinha.

    O terceiro, armado com uma barra de ferro, hesitou.

    — Vamos lá, grandalhão — disse o jovem, batendo os punhos um contra o outro.

    O homem atacou em um golpe diagonal. Hazan bloqueou com o antebraço, desviou para o lado e entrou no alcance do bastão, mirando o plexo solar.

    [Joelhada!]

    O capanga desabou no chão com um baque surdo, ofegante, as mãos agarrando o próprio abdômen como se tentasse impedir o corpo de desligar.

    A joelhada de Hazan não havia sido apenas forte, tinha sido precisa. Direta no plexo solar.

    Golpear esse ponto é como apertar o botão de emergência do corpo. O plexo solar, ali no centro da base do esterno, é um feixe de nervos responsável por controlar parte da respiração e funções involuntárias. 

    Um impacto ali causa mais do que dor: tira o ar dos pulmões, paralisa o diafragma, afunda o corpo num instante de pânico e sufoco.

    Não importa o quão forte alguém seja, se esse golpe entra do jeito certo, até o maior dos brutos vira um amontoado de músculos tremendo no chão, tentando lembrar como é que se respira.

    O bandido ainda se contorcia, olhos arregalados, mas já não era mais uma ameaça. Hazan apenas o contornou, ajeitando a postura. Já estava procurando o próximo.

    O último bandido — o que segurava o ferreiro antes — deu dois passos para trás.

    — E-eu… só tava fazendo meu trabalho…

    — Então é hora de se aposentar. — Hazan avançou um passo.

    Foi suficiente para afugentar o agressor.

    O jovem ferreiro se ergueu com dificuldade, limpando o canto da boca com o dorso da mão.

    Hazan ofereceu ajuda, ajudando-o a se levantar.

    — Valeu pela ajuda. Se não fosse por você, eu estaria em pedaços. Milo, prazer!

    Hazan não respondeu. Observava os estilhaços, a porta quebrada, as ferramentas jogadas no chão.

    — Eles fizeram uma bagunça — murmurou, ignorando as apresentações.

    — Vai levar uns dias pra consertar tudo… — Milo sorriu, ajeitando um banco tombado antes de sentar, ofegante. — Mas nada que um bom ferreiro e um pouco de teimosia não resolvam.

    Caminhou até um banco virado, colocou de volta no lugar e sentou-se, buscando estabilizar a respiração.

    — Eles são capangas da Confraria da Sorte. Ganhei uma aposta grande. Usei cada moeda pra abrir isso aqui. Meu sonho. Mas, aparentemente, a casa não gosta de perder.

    Hazan arqueou uma sobrancelha.

    — E agora querem o dinheiro de volta, mas você já gastou até a última moeda.

    — Cada centavo! — afirmou ele com orgulho.

    Esse cara é maluco. E a Aurora vai gostar de saber como a Confraria atua. Vou me lembrar disso.

    Milo sorriu, mas logo franziu a testa. — Ei… Geralmente, eu deixaria isso passar, mas meus velhos hábitos me perseguem… Eu posso ser sincero? 

    — Sempre. 

    — Essas suas botas… e essas luvas. São boas, mas você parece o tipo de cara que briga frequentemente. 

    Hazan enrugou a testa. 

    — Eu sou o tipo de cara que preza pela paz. 

    — Claro, claro — Milo abanou as mãos, ignorando a loucura de seu salvador. — De qualquer forma, elas não vão durar muito. Não sei onde as comprou, mas a qualidade é de terceira categoria. 

    Ele não acabou de dizer que eram boas?

    Hazan olhou para as mãos. A costura das luvas já estava desgastada nos dedos. As botas, apesar de confortáveis, tinham o couro rachando nas solas. 

    — Eu ia procurar algo melhor. 

    — Então você já achou. 

    O pardo cruzou os braços, franzindo as sobrancelhas, mas não disse nada. 

    Milo continuou, ainda otimista. 

    — Qual é, sabe-se lá o que teriam feito comigo se não fosse por você! Além disso, você pode ter certeza que sou o melhor ferreiro daqui! O mais bonito também.

     — Você é confiante, eu gostei disso. — Hazan estendeu a mochila para frente. — Sendo sincero, eu não fazia ideia do que fazer com isso.

    Dentro, escamas negras, irregulares, com reflexos rubros e metálicos.

    Milo arregalou os olhos.

    — Isso é… escama de Korgar!?

    Hazan assentiu.

    — Com isso, eu posso te fazer botas e luvas que aguentariam até um Pujante Experiente! Um mês e estarão prontas!

    — E o preço?

    — Preço? Isso já está pago.

    Hazan olhou ao redor, a oficina destruída.

    — Acha que dá conta sozinho?

    — Não toque em nada! — Milo ergueu a mão, firme. — Um bom desafio me mantém vivo.

    — Tudo bem. Duas semanas.

    — Ué, eu disse um mês…

    — Não é um desafio se você não tiver medo de completá-lo.

    Milo pegou as escamas com cuidado, como quem segura promessas.

    — Tá certo. Mas quando voltar, me traga uma boa história… e uma bebida decente.

    — Ser exigente faz parte do serviço?

    — Ei, nunca se sabe o que a ferraria do destino está forjando pra gente!

    Hazan riu, balançou a cabeça e partiu.

    — Boa sorte, Milo.

    Enquanto se afastava, pensou no quanto aquela cidade parecia partida. Mas também no quanto ela ainda guardava faíscas de humanidade.

    No fim da rua, encontrou Aurora encostada na parede, braços cruzados, expressão fechada como quem esperava há horas — embora ele soubesse que não tinha passado de cinco minutos.

    — Você demorou — rosnou. — Eu disse que ia acompanhar seus treinos, não te seguir como uma cadela de rua.

    — Nossa, boa tarde pra você também. Isso tudo é mal-humor?

    — Anda logo.

    Ele exibiu um sorriso tão malicioso que algumas pessoas que passavam por perto tiveram a impressão errada.

    — Tava esperando você dizer isso.

    Ergueu a mão, e ela hesitou — como sempre. Mas no fim, bufou e retribuiu o gesto. As palmas se chocaram com um estalo seco. A mão de Aurora ardeu com o impacto, mas ela sequer piscou.

    Era um ritual estranho, mas que passou a acontecer diariamente. Esse era o método para garantir que não teriam problemas pelo resto do dia. Desde que tivesse algum tipo de interação física, a maldição parecia não piorar, como se só quisesse saber que eles ainda estavam por perto.

    É claro, eles ainda não podiam se afastar demais. Com os testes que fizeram nos dias posteriores a missão da igreja, perceberam que cerca de dois quilômetros de distância era o limite, conforme os cálculos de Aurora.

    — Pronto. Ligação estabilizada — resmungou ela, sarcástica.

    — Como uma verdadeira dupla — respondeu ele, já caminhando ao lado dela.

    — Cala a boca.

    Seguiram juntos pela rua, sem dizer mais nada, com Aurora apressando os passos como se quisesse se afastar de Hazan. Ele avançou alguns passos, chutou a perna dela e correu, fazendo-a tropeçar no chão. Ela cerrou os dentes e sacou suas adagas.

    O imbecil definitivamente não sairia impune.

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