Capítulo 49 - David confundiu Whalien com Jesus
A esperança, para Quintus Maximus, era um tipo específico de loucura: aquela que insiste em florescer mesmo depois de ele ter caído de cara no chão da dignidade pela terceira vez na mesma noite.
Ainda assim, ele continuava ali, firme feito um cabo USB sendo inserido do jeito errado pela milésima vez, tentando parecer que fazia parte daquele momento.
Ou pelo menos parecer que se encaixava, já que estava travado entre um extintor de incêndio e uma planta de plástico, tentando manter a pose de quem sabia exatamente o que estava fazendo. Não sabia. Nem remotamente.
Durante toda a apresentação, seus olhos não desgrudaram do telão. Aquilo não era apenas uma cerimônia de coroação, era a última chamada emocional para um trem que ele sempre perdia.
A cada novo nome anunciado, sentia-se como um sortudo premiado em um sorteio onde nunca havia se inscrito, mas cujo prêmio era sempre para outra pessoa com nome parecido.
— Podia ser um bug do sistema. Uma falha estatística. Um erro divino. Qualquer coisa. — murmurava para si mesmo, entre um gole e outro de ansiedade líquida.
Lá dentro, escondido entre a esperança tola e o realismo ácido. E no fundo, bem no fundo, ele tinha fé que sua sequência ininterrupta de fracassos o tornava elegível, ao menos, para uma menção honrosa por persistência vergonhosa.
Quintus não era exatamente um guerreiro da popularidade. Era mais um escudeiro da vergonha alheia, era o tipo de pessoa que tropeça no cabo do telão, o tipo que acidentalmente abre o microfone durante uma crise de soluço, o tipo que já tinha sido confundido com garçom três vezes só naquela noite. Mas ainda assim, acreditava.
Acreditava porque a vida tinha lhe ensinado que, mesmo depois de vomitar dentro do próprio sapato em um churrasco, ainda podia existir redenção. Ele tinha razões. Como aquela vez que ao tentar entregar uma carta de amor anônima, acabou reenviando o boletim completo do semestre por engano. E mesmo assim, sobreviveu.
Mas havia algo dentro dele. Talvez orgulho, talvez delírio, talvez só gases. Ainda assim, ele acreditava que seria chamado. Que sua vez viria. Afinal, ele já tinha entregado tudo: um carisma acidental, uma presença um tanto desajeitada e até um momento de nudez parcial involuntária com um e-mail enviado para a professora Nimsay.
“Você não é o herói que essa festa merece!” — cochichou sua consciência — “Mas talvez seja o que ela consegue bancar.”
E agora, naquele palco de caos iluminado, entre estatísticas desnecessárias e urnas emocionais, seu nome podia surgir. Podia. Era estatisticamente improvável, claro, mas nada é impossível quando se é o protagonista de uma comédia divina.
— Ok… calma… respira. Não é como se todos estivessem te ignorando propositalmente. É só azar. É só o destino rindo da tua cara.
Nesse momento, o telão fez um zoom aleatório em um casal dançando de forma questionável. Quintus sorriu e fez um aceno educado, mesmo sem estar na tela, por precaução. Nunca se sabe quando é filmado na vida. Ou na morte social.
Atrás dele, duas meninas comentavam sobre o ‘menino do vibrador acidental’. Uma delas disse:
— Ele é fofo. Me lembra um pinguim ansioso.
Quintus fingiu não ouvir. Mas ouviu. E absorveu. E adicionou à lista mental de identidades involuntárias que vinha colecionando desde os 14 anos.
Tentando mudar o foco, ele levantou o copo para brindar com um rapaz ao lado. Não era bebida. Era molho de espetinho. E escorreu direto na manga da camisa.
— Tudo sob controle… — sussurrou, tentando fingir que era moda.
Quando a luz azul do telão começou a mudar para vermelho, a cor oficial do momento de impacto narrativo, ele ajeitou a postura, quase chocando-se com um colega ao seu lado.
“Ok, agora sim…” — pensou, ajeitando a roupa — “Minha hora chegou…”
Inesperadamente, o terceiro feixe de luz caiu sobre uma parte da plateia em que Quintus estava, na borda, mas ainda dentro do círculo mágico de atenção, enquanto o foco ainda se movimentava, titubeando, em busca de um rosto que merecesse o centro da atenção.
O jovem Maximus arregalou os olhos, ainda com um fiapo de esperança agarrado ao peito, do tipo que sobrevive por teimosia emocional ou falta de noção mesmo.
Por um segundo, seu olhar brilhou com a intensidade de quem acredita que, enfim, será notado. Mas esse brilho durou menos que um stories de Instagram.
E então, o feixe de luz revelou uma figura em uma fantasia de vampiro: David C.O.
Ele estava encostado em uma parede, bebendo algo que definitivamente não era suco de uva, enquanto observava a festa com olhos que brilhavam com uma intensidade que não passaria no antidoping emocional.
Assim que o vampiro apareceu no feixe de luz, Quintus apenas balançou a cabeça em silêncio e levou o copo à boca. Deu apenas um gole no molho de espetinho, à maneira de quem toma veneno sabendo das consequências: sem se importar com o sabor, a repercussão ou o que aquilo podia causar.
Foi nesse exato momento, quando até a esperança parecia ter pedido licença para sair, que os alto-falantes explodiram com uma batida de funk:
♪♪♪ Fui coroinha, sim, mas não pensem besteira,
O padre me testava em toda quarta-feira.
‘Resista à tentação’, dizia em tom de sina…
Hoje eu tenho pavor de olhar pra uma batina! ♪♪♪
— SENHORAS E SENHORES! — Val Ferri se sobrepõe à música — Apresento-lhes o guerreiro David C.O.
— UUUUUHHHHH! — a plateia fez um coro de reconhecimento.
O telão tremeu como se fosse possuído por um espírito dramático de fogo. Dele emergiram fênix holográficas do tamanho de caminhões voando em looping dramático, se entrelaçando em torno de letras flamejantes:
“DAVID C.O., O COROINHA SOBREVIVENTE – MESTRE SUPREMO DA ARTE MARCIAL DO ‘PAI NOSSO QUE ESTAIS NO CÉU, ME DEIXA EM PAZ!”
— DAVID! DAVID! DAVID! — a plateia começou a cantar o nome, num coro desesperado que lembrava salvação coletiva. Alguns batiam no peito, outros levantavam as mãos para o alto e outros apenas riram.
O telão não teve piedade explodindo em luz indicando que mais revelações passadas seriam divulgadas. Dellos, o arqueólogo do caos, havia vasculhado cada instante registrado pelas câmeras escolares, drones paroquiais e até confetes inteligentes que armazenavam dados.
E assim, os flashbacks começaram: David sendo ungido com óleo, fugindo sorrateiro do retiro de silêncio, enfrentando noviços, com a resignação de um mártir em missão divina. Tudo narrado com a solenidade de uma lenda de cultivo, mas contada por monges que já perderam a fé.
— Naquele dia sagrado… — entoava o locutor, enquanto surgia na tela David, aos 12 anos, ajoelhado da mesma forma que alguém que já carregava pecados que nem cometeu — Sob o olhar de padres que já sabiam demais sobre ‘testes espirituais’, nascia não apenas um coroinha… mas um sobrevivente. Um sobrevivente de uma guerra santa que ele não sabia que já estava perdida desde o primeiro: ‘venha à sacristia, meu filho’.
A cena seguinte o mostrava na sacristia, três meses depois, calculando rotas de fuga como um especialista em sobreviver a ambientes hostis.
— DAVID, MEU FILHO! — a voz do padre ecoou pelos vitrais com uma solenidade celestial maligna.
A expressão do jovem ex-coroinha dizia tudo: ‘Se o Padre Ferdinando aparecer sem batina de novo, vou sair correndo antes que a tentação seja minha.’
— PRECISO TESTAR SUA RESISTÊNCIA À TENTAÇÃO! TIRE A ROUPA! — concluiu o padre Ferdinando, com um brilho espiritual absolutamente suspeito no olhar.
Na tela, a iluminação dramática capturava o exato instante em que David entendeu: vocação religiosa não é só fé, é um pacto silencioso com o trauma não verbalizado. Seus ombros desceram, com a leveza trágica de quem purgou toda a culpa medieval numa única sessão.
— Não, padre… eu acho que Deus não quer isso… — ele murmurou, engolindo seco, com uma lágrima tímida e a expressão de quem sacou tarde demais que o seminário não oferecia saída de emergência.
— CALA A BOCA, DAVID! — gritou o padre, abrindo os braços enquanto deixava a batina cair — EU VOU TOMAR SOBRE MIM A TENTAÇÃO DO MUNDO!
— AAAAWWWW! — a plateia fez em coro, numa mistura de compaixão e horror sagrado.
— COITADINHO! — gritou uma senhora.
— ELE TÁ CHORANDO! — apontou outra.
— CHAMA A POLÍCIA! — berrou alguém do fundo.
O salão, já em estado de choque emocional, começou a borbulhar em sussurros e gritos indignados. Afinal, aquele deveria ser um momento de celebração dos finalistas com vídeos que exaltassem suas conquistas, carisma ou, no mínimo, algo menos traumatizante do que abusos velados e crises existenciais gravadas em HD.
Mas Val Ferri parecia ter confundido ‘homenagem’ com ‘exposição pública de feridas abertas com edição cinematográfica’.
A transmissão do passado se dissolveu no telão tal qual um pesadelo dando lugar a outro. Mas, se para a plateia aquilo fora quase um funeral emocional, para Val Ferri era só mais uma transição de cena. Ele não se importava.
Enquanto algumas pessoas choravam, outras se perguntavam se era crime transmitir aquilo sem consentimento. Val ajustava a luz dramática da próxima sequência com brilho nos olhos, encantado com sua própria obra, como se fosse um maestro conduzindo uma sinfonia de traumas.
E então veio o novo clímax: ao vivo, em tempo real, a festa exibia seu momento mais insano. David, completamente bêbado, mergulhado num flashback visceral, aproximava-se de Whalien por trás igual a um vampiro desorientado que achou que estava caçando o Padre Ferdinando.
— PADRE! — gritou, agarrando Whalien pelo pescoço — AGORA SOU EU QUEM VOU TE TESTAR! VOU MORDER VOCÊ COMO VOCÊ TENTOU ME MORDER!
E então, da mesma forma que se fosse puxado por uma força sobrenatural chamada ‘trauma religioso não resolvido’, ele mordeu o pescoço de Whalien com a fúria de décadas de terapia represada.
— ELEEEEE MORDEU! — gritou a plateia em êxtase total.
Whalien reagiu com um gesto automático, típico de qualquer pessoa normal ao ser mordida por um vampiro bêbado em crise existencial: desferindo um soco.
— DEMÔNIO DISFARÇADO DE FREIRA! — gritou David ainda caído, tentando arrancar a urna das mãos de Whalien — ESSA URNA CONTÉM AS CINZAS AMALDIÇOADAS DO COROINHA E COMPANHEIRO DE SOFRIMENTO SCHOLA!
— TÉCNICA PERFEITA! — anunciou Val Ferri, quase chorando de tanto rir — DAVID EXECUTOU COM MAESTRIA A HABILIDADE LENDÁRIA: “TRANSFORMAR TRAUMA EM ENTRETENIMENTO PÚBLICO”!
A plateia explodiu em aplausos e gargalhadas que ecoaram por todo o salão.
— DAVID! DAVID! DAVID! — cantaram em coro.
— SANTO PADROEIRO DOS EX-COROINHAS! — completaram em coro sagrado.
Enquanto os aplausos ainda sacudiam o salão, Quintus olhou para o molho de espetinho em sua manga e murmurou, encarando o molho:
“Talvez… talvez ainda tenha chance para mim.”
Mas ao fundo, Val Ferri já ajeitava o microfone com um sorriso cruel nos lábios. E a pergunta pairava no ar, como uma maldição:
“Quem seria o próximo… contemplado? Ou melhor, sacaneado da noite?”
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.