Capítulo 39 - Por que eu sou assim?
Pratos rangiam discretamente sobre a madeira envelhecida, conversas se calavam em sussurros, e todos os olhares pairavam sobre as duas figuras que se destacavam no centro.
Flint estava irritado. Não apenas pela estranha falta de reação do homem na sua frente, mas porque sua expressão trazia um sentimento que era difícil de explicar.
— O que foi? — começou o nobre com um sorriso provocador no rosto. — Agora que você levantou, já é tarde demais. Prefere apanhar aqui ou lá fora?
Slap!
Cambaleou violentamente para trás, atingindo uma mesa vazia que se partiu ao impacto. Um formigamento percorria pele boca e nariz, e o líquido quente escorreu até a ponta do queixo.
Merda, eu fui atingido…?
A visão, ainda embaçada, começava a focar na silhueta de Hazan. Ali, ele ajeitava as mangas arregaçadas de sua blusa, puxando o tecido para cima com um cuidado silencioso. Seus olhos estavam baixos, mas seu semblante era imperturbável. Quando terminou, estendeu a mão para frente e chamou Flint.
Seus soldados o ajudaram a se levantar, mas ele dispensou a ajuda, empurrando-os para trás. Posionou a mão no nariz deslocado e o colocou no lugar, os dentes cerrados de dor.
— Você… vai se arrepender disso!
Hazan não respondeu. Nenhum sorriso, nenhuma piada sarcástica.
Esse cara… Ele com certeza sabe artes-marciais. Suas pernas estão separadas na largura dos ombros, e apesar de não ter assumido uma postura, sua base contém equilíbrio. Quem é esse maldito? Um herdeiro de alguma casa rival?
Flint disfarçou o arrepio nas costas com um sorriso forçado.
— Devia ter me batido enquanto eu estava no chão, vai ser a primeira e última vez que consegue me atingir!
A tensão partiu do silêncio. Flint avançou, direto ao ponto, o punho indo em arco na direção do rosto de Hazan.
Slap!
O som seco de outro tapa estourou no salão. A cabeça de Flint virou bruscamente para o lado, cuspindo saliva e quase tropeçando sobre os próprios pés. Hazan não se moveu além do necessário. O braço já voltava à posição inicial.
Flint levou a mão à bochecha, vermelho de raiva. Os olhos queimavam mais de humilhação do que de dor.
Um tapa…? Ele nem está me atacando de verdade! Quem ele acha que é para me subestimar assim!?
Correu de novo. Hazan girou os ombros e, como se desenhasse um arco com o braço, acertou-lhe outro tapa do lado oposto. Flint recuou três passos, atordoado.
A plateia estava boquiaberta. Alice, ao lado do balcão, tampava a boca com a mão. Mirielle observava sem conseguir esconder a inquietação, e Darius parecia lutar contra a vontade de intervir. Os soldados da comitiva estavam tensos, mas Flint, ainda de pé, fez um gesto para que ninguém se metesse.
— Eu… — arfava Flint, o rubor subindo pelo rosto — Eu sou da Casa Ignis! Você sabe o que isso significa?!
Hazan inclinou a cabeça. — Não? — respondeu, com um misto de dúvida e falta de interesse.
Outro tapa.
Slap!
O impacto fez Flint cambalear de novo. O salão prendeu o fôlego.
Ele gritou e tentou uma sequência rápida de socos. Hazan os evitou com tédio, um passo curto para o lado, um giro de ombro, um leve recuo. E então, como um mestre corrigindo um aluno, mais um tapa. Desta vez, com as costas da mão.
Flint caiu de joelhos, ofegante. O sangue escorria do canto da boca e pingava no chão de madeira. Os cabelos ruivos desalinhados cobriam parte do rosto suado. Um zumbido pulsava em seus ouvidos, misturado com a respiração pesada e irregular. O maxilar latejava — aquela última bofetada ainda ecoava na sua cabeça.
— Por que… você só está me batendo assim? — cuspiu Flint, a voz rouca e trêmula. Tentou se erguer com os braços trêmulos, mas falhou.
O lutador permaneceu de pé. Soltou um longo suspiro, mas não de cansaço — e sim de decepção.
— Porque você merece.
Três palavras foram o suficiente para machucar.
Eu mereço…?
Cerrou os punhos com força, os dedos tremendo. As palavras o cortaram mais fundo que qualquer soco. A aura começou a subir do chão em formas de chamas, ondulando o ar ao seu redor. Centelhas amarelas começaram a se formar ao redor de seus braços.
O calor se espalhou de repente, forçando os clientes mais próximos a recuar, empurrando cadeiras, arrastando bancos, abrindo espaço.
— Finalmente… — rosnou Flint, erguendo os olhos, onde brilhos escarlates reluziam nas íris — Chega de brincadeira!
Mas antes que pudesse dar um passo sequer, a madeira rangeu sob o peso de armaduras em movimento. Dois soldados da Casa Ignis surgiram no meio da multidão, atravessando a fumaça densa de tensão que pairava sobre o salão. Um deles agarrou Flint pelo ombro direito, o outro segurou o braço esquerdo com firmeza.
— Senhor Flint, por favor! Controle-se! — gritou o mais velho, com suor descendo pela lateral do rosto. — A última taverna que destruiu ainda está em reconstrução!
— Soltem! — urrou Flint, tentando romper o controle dos guardas, mas as chamas em seus braços hesitaram. Sua respiração estava falha. E, acima de tudo, ele sabia que estava prestes a cruzar uma linha que não poderia mais desfazer.
Foi então que a voz de Darius cortou o ambiente como uma lâmina bem afiada. Ele apareceu atrás dos soldados, alto, rígido, com os olhos fixos em Flint e depois em Hazan.
Com os cabelos dourados penteados para trás e a expressão severa, não existiam resquícios de paciência em seus olhos.
— Já chega.
Houve um silêncio.
— Flint… — começou Darius, o tom baixo, mas incisivo — Você pode ser filho de uma marquesa, mas agir como uma criança mimada não muda o fato de que perdeu. E agora quer incendiar uma pousada inteira porque seu ego não aguenta apanhar na frente de meia dúzia de pessoas?
Flint arregalou os olhos, como se tivesse levado outro tapa.
— D-Darius…
— Fique calado — cortou ele. — Da próxima vez que quiser provar alguma coisa, vá treinar.
Houve um murmúrio contido entre os clientes, chocados com a frieza das palavras.
Darius se virou para Hazan, que ainda permanecia em silêncio, como se nada daquilo fosse novo para ele.
— E você — continuou Darius, os olhos afiados pousando sobre o rapaz — Saiba que agredir um nobre pode ter consequências graves, mesmo quando o nobre age como um idiota. Não cometa o erro de subestimar o poder de uma casa nobre. Principalmente… se quiser continuar andando pelas ruas.
Hazan balançou a cabeça e apontou na direção de Flint, e depois na direção de Darius.
— Tanta falação e nenhuma ação — começou erguendo levemente o queixo e chamando os dois com o indicador. — Da próxima vez que quiserem problema, venham os dois de uma vez.
A declaração deixou todos em choque. Darius franziu as sobrancelhas, claramente irritado, mas não disse nada. Torceu os lábios em desprezo e se afastou, mas sem antes lançar um olhar perfurante na direção do lutador.
Sua hora ainda vai chegar, seu bárbaro maldito.
Os soldados puxaram Flint de pé, agora sem chamas, sem fala, com os olhos vazios. Havia vergonha. Raiva. E uma pontada de algo mais fundo. Algo que doía mais que qualquer bofetada.
O silêncio foi substituído por cochichos, respirações aliviadas e o som dos bancos voltando aos seus lugares.
Flint tremia, o fogo ainda pulsando nos punhos. Olhou em volta — todos estavam olhando. Vendo. Julgando. Encarou seus soldados, e notou que partes dos seus braços haviam sofrido queimaduras de primeiro grau depois que interviram a luta. Nojo revirou seu estômago.
E Hazan ainda parado, com os olhos fixos nele.
O nobre estalou a língua e empurrou os soldados com os ombros.
— Tsc… Que seja.
Virou-se, o orgulho ferido vazando em cada passo. Darius e Mirielle o seguiram, os soldados formando uma barreira até a saída.
Depois que a porta se fechou atrás de Flint, o salão permaneceu em silêncio por alguns instantes, como se todos esperassem que algo mais acontecesse. Mas aos poucos, os murmúrios recomeçaram — desta vez, com um tom bem diferente.
— Aquilo foi… — começou um dos clientes, ainda segurando o caneco no ar — …o suficiente pra valer minha diária de um mês nessa espelunca!
Risadas explodiram. Uma senhora de cabelos grisalhos, sentada perto do balcão, ergueu o copo e brindou com quem estivesse por perto.
— Que garoto corajoso! Enfrentar um dos herdeiros da Casa Ignis com tanta frieza…!
— Se fosse comigo, já tinha mijado nas calças! Vocês viram aquelas chamas!? — comentou outro, arrancando gargalhadas.
Um a um, os frequentadores começaram a rir, brindar e conversar com mais animação. A tensão foi se dissolvendo em uma alegria estranha — o tipo de euforia que vem após o caos, quando todos ainda estão vivos para contar história.
Algumas pessoas se aproximaram de Hazan. Batiam em seu ombro, elogiavam sua coragem, ofereciam canecos cheios e até pediam para ver de novo “aquele golpe que desmontou o nobre mimado”. Hazan, como de costume, apenas sorria de canto, desconfortável com o alvoroço.
Não havia sentido em destratar aquelas pessoas, elas não eram a fonte de sua raiva. Limpava o suor da testa com o dorso da mão, como se nada daquilo fosse grande coisa.
Foi então que Randolf surgiu entre as pessoas, de braços cruzados, a expressão carrancuda. O silêncio voltou em segundos.
O velho pousadeiro andou com passos firmes entre as mesas bagunçadas, observando as cadeiras viradas, manchas de chão queimado, a poça de sopa derramada, uma rachadura na madeira do chão, e, claro, a mesa que estava destruída no meio.
Parou em frente a Hazan, os olhos semicerrados.
— Ahn… — começou Hazan, coçando a nuca, olhando de lado. — Eu… acho que as coisas saíram um pouco do controle.
Randolf não respondeu.
Hazan engoliu em seco. Olhou ao redor, notando a destruição que tinha causado. Mesas e cadeiras quebradas, copos de madeira e pratos de comida esparramados pelo chão.
Acompanhou de perto o trabalho e o carinho que Randolf e Alice tinham por aquela humilde pousada, tornando a raiva do homem justificável.
Ele tinha desrespeitado o sustento de uma família.
Ao perceber seu erro, curvou-se na mesma hora, abaixando a cabeça em sinal de respeito e arrependimento.
— Não precisa me pagar a diária de hoje. E se precisar, eu cubro os estragos. A culpa foi minha — disse, o tom honesto e direto, ainda que meio seco. — Não queria transformar sua pousada numa arena.
Houve um silêncio pesado.
Até que Randolf, lentamente, descruzou os braços.
Deu um passo à frente… e puxou Hazan para um abraço forte e desajeitado, quase esmagador.
— Não devia abaixar sua cabeça pra qualquer um, garoto! Você me dá trabalho, hein?! — disse entre risos roucos. — Mas aquele mimado já causou mais confusão por aqui do que você em mil vidas!
Hazan arregalou os olhos, surpreso, mas acabou sorrindo. Bateu de leve nas costas do velho, como se dissesse “tá bom, tá bom, me solta”.
— Você viu o jeito que ele apareceu aqui, Randolf? — comentou uma cliente, rindo. — Expulsou alguns clientes de seus lugares e simplesmente começou a beber!
— Humpf! — grunhiu Randolf, voltando a encarar o salão. — Aquele pirralho já destruiu duas portas minhas antes. Se quiserem cobrar alguma coisa, mandem a conta pra mãe dele!
Mais risadas estouraram.
Notou que Alice o encarava no canto da sala com um sorriso tímido, no qual devolveu com um aceno.
No fundo da sala, alguém puxou o alaúde. O som das cordas soou hesitante no início, mas logo embalou em uma melodia animada. Os canecos voltaram a se erguer, e um novo brinde foi feito — dessa vez para Hazan. Pela coragem, pela luta, e, claro, por ter colocado Flint no lugar dele.
A noite seguiu viva e barulhenta, com o calor humano superando o calor das brasas do início do confronto. Entre gargalhadas, música e pratos quentes sendo levados e trazidos, a pousada de Randolf voltou a ser o coração palpitante da rua principal.
E, no centro disso tudo, Hazan apenas respirou fundo. Observava o salão movimentado, os rostos sorrindo… e permitiu a si mesmo um raro pensamento:
Se algum dia eu tive um lar… então eu quero acreditar que era assim que ele me fazia sentir.
A porta da hospedaria se fechou com um estrondo, mas a fúria de Flint não ficou do lado de fora. Os passos pesados reverberavam no chão de pedra da rua enquanto ele bufava, ajeitando a camisa e observando seus guardas feridos.
— Por que interviram se sabiam que iam se machucar? — cuspiu Flint, os olhos faiscando. — Peguem algumas poções do alojamento quando voltarmos pra mansão, não quero Edwyn reclamando no meu ouvido!
Os soldados se entreolharam, tensos. Nenhum ousou responder. Sabiam que qualquer palavra só pioraria o estado do jovem mestre da Casa Ignis. Eles assentiram, demonstrando um misto de gratidão e medo.
— Onde estão Marcan, Baelor e Edrin? — perguntou, tentando mudar de assunto e desviar sua mente da humilhação que ainda ardia em sua bochecha.
Um dos soldados hesitou. — Mestre Flint… Eles… Eles estão em coma. Foram atacados por um indivíduo não identificado quando estavam patrulhando pelos suburbios…
A raiva sumiu por um momento. Flint parou, os olhos arregalados. — O quê?
— Ainda não acordaram — confirmou o outro soldado, evitando o olhar do mestre. — Os curandeiros dizem que talvez nunca mais…
Flint não deixou o homem terminar. Deu-lhe um empurrão violento no ombro e saiu andando. O mundo pareceu mais silencioso de repente. Marcan, Baelor e Edrin eram mais do que soldados. Eram seus companheiros desde o início de sua formação. Tinham rido juntos, sangrado juntos. Eram os únicos que olhavam para ele como um homem de verdade, não apenas como “o filhinho da marquesa”.
A raiva agora não era só por Hazan. Era por tudo.
— Que droga… — murmurou, socando uma parede no caminho.
— Flint, espere! — Darius apareceu no beco, ao lado de Mirielle. Os dois o haviam seguido discretamente.
— Se vierem me zombar, juro que—
— De forma alguma — disse Mirielle, com um sorriso gentil demais. — Queremos conversar. Ajudar.
Darius se adiantou, passando um braço pelas costas de Flint como um velho amigo. — Escute, aquele cara… o Hazan. Ele é um farsante.
— Um farsante com tapas potentes. — Flint cuspiu um pouco de sangue ainda preso nos dentes.
— Aqueles golpes só te acertaram porque você está bêbado — disse Darius, reconfortante. — Sabe… nós tentamos trabalhar com ele numa missão anterior. Eu, Mirielle e Tannor, que Unitas o tenha.
— Tannor morreu? — Não conseguia acreditar. O bastardo era irritante, adorava se envolver com várias mulheres, mas nunca tinha o desrespeitado. Não era alguém que merecesse morrer.
— Sim. Morto porque Hazan quis bancar o herói. Ele se diz um tahtoriano — Mirielle arqueou uma sobrancelha — e vive se gabando de suas artes marciais. Não deviamos ter acreditado nele…
— E por que não? O que aconteceu?
— Pegamos uma missão de caça aos Bronthir, só para ver se ele conseguia acompanhar — começou Darius, com desprezo. — Não vou dizer que a culpa é totalmente dele, um Korgar foi atraído por causa do cheiro dos Bronthir, mas… Ele tentou lutar.
— Contra um Korgar? — O nobre ergueu a sobrancelha.
— Mesmo com o meu pedido para recuar. Tannor correu pra ajudar. Morreu por causa dele. — Darius fingiu uma expressão de raiva e tristeza. — Tivemos que fugir depois disso. Não havia escolha. Ele nos deixou sem saída.
Flint cerrava os punhos, a raiva voltando, desta vez com um toque de vergonha por ter perdido publicamente para alguém assim.
— E ele ainda teve a audácia de te provocar — disse Mirielle, com doçura venenosa. — Mas… você é o herdeiro Ignis. Todos te conhecem. Ninguém vai lembrar disso como uma derrota sua. Apenas um tropeço. Afinal, ele nem teria vencido se você estivesse sóbrio.
Flint respirou fundo, mais firme. — Têm razão. Obrigado… Obrigado mesmo.
Darius sorriu, vitorioso. — Precisamos resolver algumas coisas agora, mas… espero que tenha um bom retorno.
Ele não respondeu. Balançou a cabeça e passou pela dupla, deixando seus guardas para trás. Eles entenderam isso como um claro sinal de que não deveriam seguí-lo.
Os passos ecoavam secos nas calçadas de pedra, como se o mundo inteiro fizesse questão de lembrar que estava sozinho. Andava com a cabeça baixa, a mão direita pressionando a bochecha que ainda pulsava depois do último tapa.
O calor do impacto parecia se impregnado ali, insistente, irritante, humilhante. O céu escuro e sem estrelas parecia combinar com o que ele sentia: vazio, perdido, cansado. Ótimo. Até o clima zombava dele.
A cena na pousada passava em looping na cabeça. Os tapas, os olhares, a primeira piada… Chama de vela. Ainda dava para ouvir as risadas. Ninguém nunca tinha feito piadas com sua altura antes, mas sabia o quanto as pessoas o subestimavam por isso.
Os Ignis eram conhecidos por serem altos e fortes, mas ele só parecia ter herdado a última caracterísica.
Por mais que a raiva ainda queimasse no fundo do peito, aquela fúria quente que sempre aparecia quando alguém o diminuía —, havia outra coisa grudada por dentro. Algo mais denso, mais difícil de arrancar. Vergonha. Uma que não dava pra engolir com uma garrafa de vinho cara ou disfarçar com uma piada sarcástica.
Não precisava olhar pra ninguém. Sentia os olhares. Sentia os cochichos, os sorrisos de canto, o jeito como as pessoas atravessavam a rua antes que ele se aproximasse demais.
Já estava acostumado. Era sempre assim. Ele era “Flint, o falso herdeiro”, o arruaceiro mimado, o erro de uma linhagem nobre. Aquele que todos comentavam, mas ninguém respeitava. “A centelha apagada dos Ignis”. Era quase um título oficial, não?
Ainda assim, aquilo incomodava. Talvez porque, no fundo, tivesse começado a acreditar em tudo isso.
A mão suava, apertando com cuidado o pequeno buquê de flores brancas. A moça da floricultura — que parecia mais uma criança apavorada do que uma vendedora — tinha dito que aquelas flores representavam luto e respeito.
Uma escolha bonita, ela dissera, quase gaguejando. Não que ele soubesse dessas coisas. Nem ligava muito pra flores. Mas quando bateu os olhos naquelas ali… bom, parecia certo. Era isso.
Não foi gentil com a moça. Só pegou as flores, pagou e saiu. Ela mal o olhou nos olhos. Estava com medo. Como se ele fosse fazer alguma coisa horrível só porque respirava perto dela.
Por um segundo, quis gritar com ela. Mas estava cansado. O tipo de cansaço que não vem do corpo, e sim do que sobra da gente depois que o orgulho vai embora.
A primeira casa era simples, feita de madeira escura com janelas pequenas e cortinas floridas. A esposa de Marcan abriu a porta com um olhar desconfiado, segurando a mão de uma garotinha de cachos escuros.
— O que você quer aqui, jovem mestre? — a mulher perguntou, o tom duro, a voz firme como uma muralha.
Flint respirou fundo.
— Vim prestar minhas condolências. Soube que Marcan… — engoliu seco — …que ele está em coma.
A garotinha olhou para ele com olhos grandes e sérios.
— Idaí!? Para de fingir que se importa! — a acusação cravou no peito como uma flecha. — Você estava sempre levando o papai pra lugares perigosos!
— Nara! — repreendeu a mãe, puxando a filha para trás, com pressa.
Flint não respondeu. Apenas estendeu as flores com um gesto lento.
— Me desculpe — murmurou, sem encarar nenhuma das duas.
A mulher pegou o buquê com hesitação e fechou a porta devagar. O clique da madeira se encaixando na moldura pareceu mais alto do que deveria.
A segunda casa era maior, com um jardim malcuidado e uma varanda onde dois meninos brincavam com espadas de madeira. Quando viram Flint se aproximar, pararam imediatamente. O pai de Baelor abriu a porta. Um homem de meia-idade, com olhos fundos e expressão cansada.
— Senhor Ignis — disse com um aceno seco.
— Só Flint — corrigiu o jovem, desviando o olhar. — Vim… pelo Baelor.
Houve um silêncio. Os olhos do homem analisaram o rosto machucado de Flint, e então, suavemente, ele disse:
— Entre.
O interior da casa tinha cheiro de chá e ervas secas. A mãe de Baelor estava sentada perto da lareira, tricotando. Quando viu Flint, seus dedos congelaram.
— Trouxe flores — ele disse, estendendo o novo buquê. A mãe aceitou, em silêncio.
— Ele… adorava trabalhar para você — murmurou ela, quase para si mesma.
Flint baixou a cabeça, os olhos fixos no tapete puído.
— Eu vou pagar uma compensação pelo que aconteceu — disse, a voz embargada. — Quanto vocês querem?
O pai de Baelor travou. Sua mandíbula tensionou, e os olhos cansados ganharam vida.
— Por favor, saia dessa casa. Não precisamos dos seus cuidados.
Flint arregalou os olhos. Ele queria ajudar, então porque estava sendo tratado dessa forma? Uma raiva subiu pelo estômago, uma vontade de colocar aqueles plebeus em seu maldito lugar. Cerrou os dentes, os punhos, mas… não fez nada. Encolheu os ombros, assentiu e se despediu, deixando o buquê de flores em cima de uma mesa antes de sair.
A última casa era a de Edrin. Ou melhor, o que restava dela.
A porta da frente estava entreaberta. Flint bateu levemente, mas ninguém respondeu. Entrou devagar, como se invadisse um santuário abandonado. Havia poeira sobre os móveis, pratos ainda na pia, cartas empilhadas num canto da mesa. Era uma casa vazia, solitária.
— Ele não tinha família? — Flint murmurou para si mesmo, andando até o pequeno altar improvisado com um medalhão de soldado. Ao abrir, notou duas pessoas numa foto envelhecida, com o papel desgastado e sem cor. Lembrou das histórias que Edrin contava sobre seus pais na época em que eram desbravadores.
Pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se pequeno. Menor que a imagem forte que tinha criado de si mesmo. Menor que o escudo da Casa Ignis que ostentava em seu quarto. Um vazio tomou conta do peito. Era isso que restava dos que confiavam nele?
Saiu sem dizer palavra, as mãos cerradas. O vento gelado lhe cortava o rosto, mas sequer sentia.
A mansão onde vivia ficava afastada do centro, isolada por colinas de paralelepípedos e cercas de ferro forjado ornamentadas com detalhes em cobre vermelho-queimado.
Duas sentinelas da guarda da Casa Ignis postavam-se à entrada principal, imóveis como estátuas, os elmos reluzindo sob a luz tênue dos lampiões. Carregavam lanças longas demais para simples decoração e olhares afiados demais para serem apenas simbólicos. Não era proteção. Era um aviso.
Logo além dos portões, estendia-se o jardim principal, onde centenas de roseiras vermelhas se alinhavam em fileiras quase militares, simétricas e impiedosas, como tudo que a marquesa Beatrice considerava belo.
As pétalas eram espessas, de um tom profundo que lembrava sangue seco sob o luar. Um perfume adocicado e quase sufocante tomava o ar.
No centro do jardim, uma fonte de pedra negra moldada na forma de uma chama eterna jorrava água tingida por alguma essência avermelhada — puro capricho estético, é claro — e no pedestal da estrutura, entalhado em detalhes minuciosos, o brasão da Casa Ignis: uma centelha de fogo estilizada, envolta por espinhos e um brasão em ouro escurecido.
A mansão em si se erguia logo adiante, feita de mármore escarlate e colunas altas de granito fumê. Em cada esquina da estrutura, tocheiros mágicos mantinham-se acesos mesmo sob a chuva ou o vento, lançando sombras dançantes nas paredes como se o próprio fogo observasse os que ousavam se aproximar. As janelas eram longas, com cortinas pesadas de veludo, e cada detalhe da fachada gritava poder e elegância.
Os passos de Flint ecoaram pelo mármore polido da entrada, reflexo perfeito de alguém que havia sido criado para brilhar, mas que só via sua imagem distorcida no chão. O som ritmado dos próprios sapatos o lembrava do vazio. Da rigidez. Do silêncio.
A porta se abriu antes mesmo que ele pudesse tocá-la. Como sempre. O mordomo já o esperava.
Um homem alto, de cabelos grisalhos perfeitamente penteados para trás, a barba aparada em linha reta. A aparência era severa, postura ereta demais para um velho comum. Mas os olhos — vívidos e cheios de energia — ainda carregavam algo que lembrava… humanidade. Uma centelha de carinho discreto, escondida sob décadas de disciplina.
— Jovem mestre, está ferido — disse ele, com a voz firme, porém baixa. Formal, mas nunca indiferente. Tirou do bolso um lenço, estendendo-o para Flint.
O nobre soltou um suspiro, esfregando a mão no rosto como quem tenta apagar a dor junto com a humilhação.
— Edwyn… não preciso disso. Obrigado.
O mordomo não sorriu, mas os olhos brilharam por um breve segundo. Depois, com um leve movimento de cabeça, abriu caminho.
— Sua mãe o espera na sala de chá. Vou acompanhá-lo, jovem mestre.
É claro que espera…
Cruzazaram os corredores internos com seus espelhos dourados, vitrais com chamas estilizadas e tapetes que engoliam os sons dos passos.
Parou diante de enormes portas duplas de madeira maciça, pintada com detalhes em vermelho e preto. Antes de entrar, ajeitou a gola da camisa e engoliu em seco.
Beatrice aguardava sentada em sua poltrona, vestida num robe carmesim, os cachos vermelhos impecavelmente arrumados, um cálice de vinho numa mão e um leque de penas na outra. Quando viu Flint ferido, seus olhos se arregalaram e ela levantou-se imediatamente.
— Meu tesouro! — exclamou, correndo até ele. — Quem ousou fazer isso com você?!
Ela segurou o rosto dele com as mãos, examinando os hematomas com olhos brilhando de preocupação.
— Eu devia ter mandado mais guardas com você. Isso é inaceitável! Você se feriu… oh, minha joia preciosa — murmurou, puxando-o para um abraço apertado. — Você finalmente é liberado da sua reclusão, e é assim que volta para casa? Sua mãe já não é tão jovem, sabia?
Flint se deixou abraçar por alguns segundos, mas depois se afastou. Não merecia tanto carinho.
— Foi uma luta justa. Eu… eu perdi, mãe.
Beatrice congelou, depois recuou com suavidade, analisando-o.
— Para quem?
— Um cara estranho. Alto, pele bronzeada… não sei de onde veio, mas os rumores dizem que é um tahtoriano.
Beatrice ficou em silêncio. A expressão que antes era de afeto e comoção se endureceu por uma fração de segundo. Mas apenas por um segundo. Logo, voltou a sorrir.
— Um tahtoriano? Que inesperado — comentou, como se fosse irrelevante. — E por que ele o atacou? Foi um duelo?
— Eu arrumei problema com alguém disposto.
Ela acariciou novamente o rosto do filho.
— Ninguém tem o direito de encostar um dedo em você. Ninguém. — Beatrice virou-se para Edwyn. — Mande uma mensagem ao Capitão da Guarda Escarlate. Diga que há um homem perigoso nas ruas de Ariasken. Quero que o tragam até mim para… esclarecimentos. — Ela olhou para Flint e sorriu com ternura. — Preciso garantir que não o machuquem mais.
— Como desejar, minha senhora — respondeu Edwyn, desaparecendo no corredor.
Flint a observou com o cenho franzido.
— Você vai mandar prendê-lo?
— Claro que não, querido. Só quero conhecê-lo melhor. Se ele é forte como você diz… pode ser útil. Ou perigoso demais para se manter à solta.
Ela se aproximou novamente, abraçando Flint pelos ombros.
— Prometa que vai ficar na mansão por uns dias. Só até eu garantir que você está seguro.
Flint suspirou.
— Tá bom.
Mas seus pensamentos estavam distantes. Hazan era intenso, mas não parecia ser perigoso. Com os efeitos do alcóol passando, percebeu o quanto havia provocado alguém que só queria paz.
Enquanto subia as escadas para seu quarto, com o rosto ainda latejando e o coração mais ainda, se deu conta de que aquela humilhação tinha sido necessária.
Beatrice, por sua vez, ficou sozinha no salão, olhando para o fundo do cálice como se visse um espelho.
— Hazan… — murmurou. — Então você sobreviveu.
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