Capítulo 40 - Confiança.
Folhas de hortelã tremulavam sob uma brisa suave, e o som leve de risadas e bufos infantis quebrava a quietude junto ao de pássaros distantes.
O sol da tarde banhava o orfanato com uma luz dourada e morna, pousando com delicadeza sobre a pequena horta nos fundos do terreno. O cheiro da terra aquecida subia do chão junto ao aroma fresco das ervas, trazido por lufadas de vento brandas.
Liara estava agachada, observando uma raiz exposta numa pequena horta no terreno do orfanato, os cabelos castanhos claros presos num longo rabo de cavalo. Usava um macacão com suspensório e uma blusa branca manchada de terra. Às vezes, o sol fazia a cicatriz de queimadura na bochecha pinicar, um pequeno preço a se pegar por cuidar de casa.
Ela passou a ponta dos dedos sobre a terra ao redor da planta, delicadamente.
— Ela deve estar seca por dentro… — murmurou, sem tirar os olhos do solo.
Suas mãos se estenderam e um pequeno círculo mágico azulado surgiu, regando a raiz com uma água gentil.
Apesar disso, as tentativas de retirar a raiz falhavam sempre com bufos de frustração e punhados de terra lançados para os lados. Estava à beira de declarar derrota, até que o som ritmado de passos interrompeu seu esforço.
Hazan surgiu pelo caminho de terra, o suor escorregando da testa e a respiração levemente ofegante. Seu andar era pesado, quase arrastado, como quem tem pesos nos pés.
Usava uma camisa linho marrom, típica de camponeses e pessoas humildes, mas carregava uma mochila que era digna de um desbravador experiente. O cabelo, desarrumado pelo vento, balançava com suavidade.
— Porcaria de rotina maldita… — falou, sem esconder a irritação.
— Ah… Senhor Hazan, como vai você? — A garota o cumprimentou com um aceno tímido.
— Só “Hazan” está bom.
Ele se aproximou e abaixou ao lado dela com a naturalidade de quem pertence àquele cenário. Fitou a raiz com uma expressão pensativa e, com uma fungada brusca do nariz, falou:
— Chega pra lá.
Liara, apesar da surpresa, obedeceu.
Ele envolveu a raiz com firmeza. Suas mãos — mãos de lutador, mãos de cozinheiro — sabiam o quanto de força aplicar. Girou o pulso com técnica precisa, e em um estalo seco, a raiz se soltou, levantando uma pequena nuvem de terra junto com ela.
— Você faz isso parecer fácil… — murmurou Liara, afastando uma mecha do cabelo do rosto.
— Não é — ele respondeu seco, sacudindo a raiz e a jogando para o lado. — Mas fica menos difícil de lidar com o tempo. Igual todo o resto.
Apesar da expressão carrancuda, Liara notou que ele não deixava aquilo vazar para ela. Por conta disso, se encheu de coragem e arriscou:
— O mesmo vale para as pessoas?
Hazan arqueou uma sobrancelha, curioso. Liara hesitou um instante, mas seus olhos vagaram pela cerca que separava a horta do quintal, onde havia um balanço em que Aspen e Lunna costumavam usar bastante.
— Você tem um minuto? — perguntou ela, mais tímida agora, puxando as mangas da blusa.
— Se for rápido.
Ela indicou um banco de madeira sob a sombra de uma grande árvore. Ele hesitou por um segundo, depois seguiu até lá, se sentando com um leve estalo nos joelhos.
Antes de dizer qualquer coisa, puxou as botas e as largou no chão com um suspiro abafado.
Liara desviou o olhar por reflexo, mas seus olhos caíram inevitavelmente nos pés dele: feridas, bolhas rompidas, sangue seco, rachaduras nas laterais dos calcanhares. Alguns dedos estavam enfaixados com tiras de pano encardido.
— Por que seus pés estão assim…?
— Nem tá tão ruim — disse com um sopro de ar pelo nariz. — Hoje não teve rasgos na sola dos pés, eu tô no lucro.
— Isso n-não é p-perigoso…? — Liara ergueu as sobrancelhas com espanto.
Ele riu, seco, sem humor.
— O perigo sou eu, menina. Enfia isso na sua cabeça.
A garota apertou as mãos no colo, engolindo em seco.
Ele é um pouco estranho, mas não parece ser uma pessoa ruim…
Abriu um espaço tímido entre os lábios.
— Eu… tenho pensado em como ser melhor — disse, abaixando a cabeça e crispando os lábios. — Mesmo sendo a mais velha, às vezes sinto que o Aspen e a Lunna são mais respeitados que eu.
Hazan apenas olhou. A cara continuava fechada, mas o olhar era atento.
— Eles são inteligentes, falam bem, parecem saber o que querem… Eu só… quero ajudar. Só isso. Quero que fiquem bem. Mas… às vezes, tenho medo até de abrir a boca. Me sinto pequena.
Ela não esperava uma resposta. Mas Hazan falou, direto:
— Isso que você sente… não é só seu. Todo mundo que tenta fazer algo certo já se sentiu assim. E quer saber? O mundo não tá nem aí.
Liara piscou várias vezes.
— O quê?
— O mundo não para pra te ouvir. Ninguém vai segurar sua mão e dizer: “vai lá, Liara, você consegue.” Você tem que ir mesmo assim.
Sabia exatamente do que estava falando. Toda maldita madrugada, a cabeça implorava por mais cinco minutos.
“Posso descansar hoje e ninguém vai perceber.”
Faltar um treino, adiar uma tarefa, deixar para depois.
Um sussurro constante empurrando para mediocridade. E todo santo dia, mandava esse filho da puta calar a boca. Não porque queria, mas porque precisava. A verdade é que, se cedesse uma única vez, acabaria cedendo sempre.
E ao contrário do incentivo que precisava, as pessoas ao seu redor sempre diziam para descansar. Randolf, Alice, Aurora, os contratantes das missões de esforço físico, todos eles traziam sombras diferentes nos olhares, mas um único sentimento era mútuo: confusão.
Não entendiam o porquê ele se esforçava tanto, e por isso o encorajavam a parar.
Mas quem espera estar pronto nunca sai do lugar. E eles não precisavam entender os seus motivos.
Liara ficou em silêncio. A brisa trouxe o cheiro de hortelã.
— Você não precisa ser a mais confiante. Precisa só aparecer. Estar lá. Se importar de verdade.
Ela encarou o chão.
— Mas… e se meus irmãos não me ouvirem? E se o que eu falar não for importante para eles?
— Eles ouvem — ele disse, firme. — Fingem que não. Ignoram. Testam. Mas ouvem. Principalmente quando sabem que você tá ali por eles.
Liara ergueu o olhar. Os olhos brilhavam, mas sem lágrimas.
— E o que eu faço com esse aperto no peito…? Esse medo de tentar?
— Vai continuar. Só que você vai continuar também. E um dia, vai perceber que ele já não manda em você.
Ela levou um tempo antes de responder.
— Você… é diferente do que eu pensava. Sempre ouvi todo mundo dizendo que os tahtorianos do sul eram bárbaros que só sabiam lutar, mas… você é sábio.
Ele a encarou, os dentes subindo em um arco alegre.
— Sábio? Eu? Pft, eu sou só um idiota teimoso.
Havia um brilho leve no olhar dela agora. Como quem entende o peso de cada palavra.
— Obrigada, Hazan. Eu… acho que precisava ouvir isso.
Ele não respondeu. Apenas recostou no banco, fechando os olhos por um instante, sentindo o calor do sol na pele suada e as bolhas pulsarem em seus pés. Então, uma ventania refrescante se fez presente, proporcionando um alivo momentâneo.
— Um dia, vou ser que nem você — disse ela, sorrindo de leve.
— E isso vai te trazer muita dor — respondeu.
Ela riu, abafando com a mão.
— É só eu não deixar ela mandar em mim, né?
O lutador assentiu, exibindo um sorriso de soslaio.
— Você é mais forte do que pensa, Liara. Não deixa ninguém te convencer do contrário. Nem você mesma.
Ela assentiu, tocada de forma sincera. Havia algo no jeito de Hazan. Algo brutal, direto, mas sem máscaras, que trazia segurança. E, estranhamente, esperança.
— Vou cuidar das hortas. E… de mim também — disse, levantando-se.
— Faz isso. E vê se não perde para as plantas dessa vez.
Ela riu de novo, se afastando. O lutador ficou ali, com os pés descalços, olhando para o céu com a testa franzida.
Respirou fundo, como se aquele ar — aquele lugar — lavasse algo dentro de si.
— Que visita inesperada — disse uma voz firme atrás dele.
Virou-se devagar. Cassandra observava da sombra da varanda, sentada em uma cadeira, os braços cruzados e o semblante sempre sério, mas havia um leve sorriso se formando no canto de sua boca, algo raro, quase precioso. Em seu colo, havia um pequeno caderno com capa de couro batido.
— O bom filho a casa torna — respondeu, limpando as mãos na calça.
Calçou as botas e caminhou até ela em passos firmes. Retirou da mochila sua clássica camisa preta. Estava limpa, mas rasgada em várias partes.
— As costuras que fez da última vez aguentaram bastante. Mas, sabe como é…
— Você é um ímã para confusão — comentou, com um meio sorriso. — O que foi agora?
— Como era mesmo o nome da fera? Hã… Corar? Vulgar? Kor…gar?
A última palavra fez com que Cassandra arregalasse os olhos.
— Enfrentou um Korgar?
— Na verdade, ele que me enfrentou — respondeu como se não fosse nada de mais. — Enfim, pode dar um jeito nisso?
Ela pegou a camisa, esticou o tecido com os dedos experientes. Após analisar por alguns segundos, balançou a cabeça.
— Não. Boa parte do material já foi substituído por outros tipos de tecidos.
Os olhos de Hazan perderam uma parte do brilho, embora estivesse oculto por uma expressão calma.
— Entendo, é uma pena.
Os olhos da mulher deslizaram brevemente até Liara, que murmurava uma canção enquanto trabalhava na horta. A garota parecia mais alegre do que o normal.
— Mas conheço alguém que consegue.
Cassandra abriu o caderno no colo. Pegou um lápis escondido entre as páginas, escreveu algo, arrancou a folha e entregou junto da camisa.
— Você não parece do tipo que faz as coisas esperando aplausos. Ainda assim, merece reconhecimento.
Seus olhares se encontraram, e havia um brilho de respeito nos olhos dela.
— Lumélia me deve um favor. É dona de uma alfaiataria. Só entregue isso e diga que fui eu quem mandou. A camisa… vai deixar de ser um problema.
Enquanto dobrava o papel, o olhar do lutador escorregou para o caderno aberto ao lado. Desenhos. Rabiscos que reconheceu de cara. Aspen e Lunna, mas com traços elegantes, bem mais detalhados e expressivos.
Os irmãos estavam de costas, brincando entre si como sempre faziam. Lunna puxava a orelha de seu irmão, e Aspen puxava os chifres dela, ambos numa competição infantil.
— Isso é bem a cara deles.
Ela seguiu o olhar dele, e no instante em que entendeu o que ele vira, fechou o caderno com uma leve batida, quase embaraçada.
— É só um passatempo. Nada demais.
— E os dois pestinhas do seu “nada demais”? Onde estão?
Cassandra o observou por um instante, como quem pesa algo que está prestes a dizer. Então, com um tom mais suave, completou:
— Saíram junto com os irmãos. Treinar, segundo eles. Todo dia agora, na mesma hora. Não gosto muito… mas não posso apagar esse fogo.
Ela disse aquilo como quem estava dividida entre a preocupação e o orgulho, os olhos se perdendo por um momento.
— Coração de lutadores — murmurou Hazan, olhando para o horizonte, além da cerca. — Dá pra sentir de longe.
Cassandra ficou em silêncio, como quem pensa antes de falar. Quando falou de novo, foi mais baixo, mais lento. Um tom que só usava com quem confiava.
— Às vezes, acho que foi você quem acendeu essa chama.
O vento passou mais forte entre os dois, levantando o cheiro de hortelã e balançando as folhas secas do jardim.
— Quer que eu vá atrás deles? — perguntou, com naturalidade.
Cassandra hesitou, encarando o rapaz que mantinha o olhar firme no céu.
— Apenas se não tomar muito do seu tempo…
Ele assentiu e foi, sem se despedir. Uma atitude típica. Seguiu em direção ao portão dos fundos, onde o mato crescia mais livre e a trilha se perdia nas sombras.
A viela era estreita, as paredes de pedra cobertas por sujeira e cartazes rasgados de pessoas desaparecidas. O chão de terra batida misturado a paralelepípedos exalava um odor forte de terra.
E no meio daquele corredor, duas crianças mais novas observavam Aspen na tentativa medíocre de realizar uma única flexão. Lunna estava ao seu lado, com os braços cruzados e um sorriso convencido.
— Vai, Aspen, você consegue! — disse Rashid, erguendo o punho para cima. — Só mais uma!
— Hihi, eu disse que a Lunna era mais forte! — disse Zara, imitando o mesmo sorriso da dragoniana.
Com um esforço desesperado, Aspen se ergueu, completando uma repetição. O suor escorria dos braços, e os dentes estavam trincados de tanta força. Após completar a tarefa, ele caiu com a barriga para o chão, deixando escapar um resmungo abafado.
— E com isso, você fez um total de três flexões, enquanto eu fiz dez — provocou Lunna com uma voz calma. — Mas não fique triste, você aumentou duas repetições desde a semana passada!
— I-isso é um absurdo… — protestou o meio-elfo, sentando com os braços apoiados no chão. — Você é uma dragoniana! É óbvio que me venceria em um teste de força! Essa aposta não valeu!
— Hã? — Lunna franziu as sobrancelhas. — E quem foi que aceitou a aposta, sabendo que poderia perder, hein? — Ela se aproximou, as mãos apoiadas na cintura, encarando seu irmão enquanto tentava fazer um rosto assustador. — Foi você, não foi? Cumpra com a sua palavra!
As crianças começaram a rir. Aspen buscou ajuda no seu pequeno parceiro, mas ele deu de ombros com um sorriso sem graça, balançando a cabeça. O meio-elfo desviou o olhar.
— Tsc… Tá bom…
— Tá bom o quê?
— Tá b-bom, irmãzona…
Lunna se aproximou ainda mais, fingindo que ainda não tinha ouvido.
— Hein? O que disse? Você está falando baixo demais!
— Eu disse… Tá bom, sua balofa chifruda! — disse Aspen, pegando um punhado de terra e jogando na cara dela.
Os gêmeos se encararam, uma gota de suor escorrendo pelas bochechas, como quem já sabiam o que estava por vir. Lunna travou por um momento, uma sombra tomando conta de seu rosto.
— Ora, seu… Orelhudo desgraçado! — Com os dentes cerrados, ela avançou, agarrando e puxando as orelhas de seu irmão.
Os dois entraram numa disputa como gato e cachorro, enquanto as duas crianças riam desajeitadamente.
Após se divertirem o suficiente com aquele teatro habitual, Zara e Rashid separaram os irmãos com dificuldade.
— Vamos… a gente tem que voltar para casa, prometemos ajudar a Liara com a horta depois do treino! — relembrou Zara, afastando Lunna.
— Maninho, eu tenho certeza que você vai se sair melhor da próxima vez! — disse Rashid, afastando o meio-elfo.
O grupo já se afastava da viela onde haviam treinado, com o som das risadas ainda ecoando. Mas Ariasken era traiçoeira. Suas ruas sabiam sorrir e, ao virar a esquina, cravar os dentes.
Um silêncio estranho tomou conta. Não havia vozes, não havia passos, só o som do vento arrastando papéis amarelados por entre as pedras irregulares do chão.
Aspen sentiu primeiro — uma pontada no estômago. Lunna notou em seguida, seu corpo enrijecendo como o de um animal farejando perigo. Rashid e Zara ainda tagarelavam, sem entender a súbita tensão.
— Olha só, olha só… — disse uma voz debochada.
Duas figuras saíram de trás de uma carroça tombada. Emerik, com um sorriso malicioso, abriu os braços como quem reencontra velhos amigos. Ao lado dele, Bargo, o brutamontes que tentou roubar Aspen na semana passada.
— Que bonito. Família unida. A lagartixa de saia, o bastardo fracote e duas criancinhas no pacote. Vocês deviam posar pra um quadro — provocou Emerik.
Aspen puxou Rashid para trás, quase por instinto. Lunna se posicionou na frente de Zara. Os olhos cor de esmeralda dela brilhavam de tensão.
— P-parem de incomodar a gente! — disse Zara, apesar de estar com medo. — Vocês são malcriados!
Emerik soltou uma gargalhada baixa.
— Ui, que medo. A garotinha aprendeu a latir. Mas não se preocupa, princesa. A gente tá mesmo é interessado em conversar com o meio-sangue aqui — ele apontou o queixo para Aspen — e dar um… trato especial nessa dragoniana metida.
O meio-elfo deu um passo à frente.
— Vocês n-não vão f-fazer nada.
— E quem vai nos impedir? — disse Bargo, rindo alto. — O seu “irmãozão” da última vez? Saiba que eu só perdi pra ele porque estava distraído!
Lunna sibilou, um som gutural, involuntário, como se um instinto mais primitivo tomasse conta. Estava tentando manter o controle — e falhando.
— Vocês têm até três segundos pra dar meia-volta. — disse ela.
— Um… — zombou Bargo. — Dois… Três. E agora?
Lunna seria a primeira a se mover, se Aspen não pensasse mais rápido.
Ele puxou uma pedra do chão e atirou na direção de Emerik. O projétil atingiu o ombro dele, mas apenas o irritou. O capanga rosnou e se lançou sobre ele. O meio-elfo tentou esquivar, tentou lembrar os movimentos de Hazan durante sua luta contra Edgard… mas tudo saiu errado. Um soco veio direto na bochecha. Outro nas costelas. Aspen caiu, rolando pelo chão com os cotovelos em carne viva.
Zara começou a chorar.
Emerik ignorou Aspen no chão, passando por cima dele e agarrando os cabelos de Lunna.
— Você vem comigo, sua monstrinha!
— Me solta, seu pervertido!
Ela ergueu a perna em um chute, acertando o estômago do rapaz — que cambaleou. Mas o impacto não foi forte o suficiente. Ele se recuperou e a empurrou com brutalidade contra a parede. A cabeça de Lunna ricocheteou contra a pedra, e ela caiu de joelhos, os chifres lascando o reboco.
Rashid tentou correr para ela, mas Bargo o agarrou pela gola.
— Solta ele! — berrou Aspen, mesmo com o sangue escorrendo pelo nariz. Com esforço, se lançou novamente. Dessa vez, conseguiu enfiar uma cotovelada no flanco do brutamontes, que soltou Rashid com um grunhido.
Mas a vitória durou pouco.
Aspen foi segurado pelo colarinho e lançado contra o chão, onde Bargo o pisou no ombro com força suficiente para fazê-lo gritar. A diferença de peso era brutal.
Lunna cambaleou, tentando levantar, as mãos sujas de sangue e poeira. Zara correu para o lado dela e a abraçou.
— Para… para, por favor! — implorou a menina.
Emerik agarrou Lunna pelos cabelos e ergueu o punho.
Ela reagiu com selvageria: arranhou o rosto do agressor, mordeu seu braço, tentou qualquer coisa que o fizesse soltá-la. E conseguiu.
Correu até Bargo, atingindo com uma ombrada que o fez cair no chão. Lunna pegou na mão de Zara, e Aspen pegou na mão de Rashid.
— PEGA ELES!
O grito rasgou o ar feito chicote, ecoando pelas vielas retorcidas dos subúrbios.
Os quatro correram o mais rápido que conseguiam. Saltavam sobre caixas quebradas, deslizavam por poças de água fétida, mal escapando dos buracos traiçoeiros entre os paralelepípedos. Cada esquina parecia mais apertada, mais suja, mais sem saída.
O som dos passos atrás deles — pesados, implacáveis — se aproximava a cada batida dos corações transtornados.
Aspen chutou uma tábua caída na passagem estreita. A madeira voou, batendo no chão com estrondo, mas um segundo depois, Emerik apareceu pulando por cima com agilidade que combinava com o corpo esguio.
— Corre, corre, lagartixa! — zombou ele. — A garota vai ser minha, meio-elfo! E você vai assistir tudo enquanto estiver no chão!
Aspen mordeu a língua. O gosto de sangue se misturou ao medo.
Correr.
Era tudo que conseguiam fazer.
Zara tropeçou. Um grito curto escapou de seus lábios antes de cair de joelhos. Lunna a puxou num movimento brusco, erguendo a menina no colo sem parar.
Rashid chorava baixo, soluçando como se implorasse para as pernas não falharem. Mas corria. Corria, porque não sabia o que poderia acontecer se parasse.
Aspen olhou pra trás. Um erro. Um segundo perdido. E quase não viu a parede estreita à frente.
Viraram à direita. Mais uma curva. Mais um beco.
O mundo encolheu.
O beco era um poço de pedra, apertado, cercado por muros altos e rachados. Sem saídas. Sem escadas. Sem brechas.
— Não… não, não… — murmurou Aspen, os olhos correndo pelas paredes como um animal encurralado, buscando qualquer rota.
Nada.
Lunna ofegava, os braços ainda em volta de Zara, que tremia em silêncio. Rashid segurava a lateral da blusa do irmão, escondendo metade do rosto.
Os sons atrás deles cessaram por um instante. E então, os passos. Lentos, barulhentos. Como predadores saboreando a aproximação da presa.
Emerik surgiu primeiro, girando os ombros como um lutador de rua prestes a começar o espetáculo. Bargo ficou ao seu lado, bloqueando qualquer tentativa de fuga.
— Acabou o passeio, família feliz — disse Emerik, com um sorriso de dente faltando.
— Vocês correm como ratinhos assustados — disse o brutamontes, estalando os dedos num gesto ameaçador
Emerik apontou o queixo para Lunna.
— Você e a largatixa vem com a gente. Os dois palitinhos vão ficar aqui e aprender o que acontece quando se metem onde não devem.
Estava com medo.
Medo do que fariam com eles. Medo do que seria forçado a suportar. Pensamentos covardes, antigos companheiros, sussurravam em sua mente: “E se vocês apenas pedissem desculpas?” Talvez, se convencesse Lunna, e até Rashid e Zara a se ajoelharem, a implorar por perdão, tudo acabasse ali. Talvez ririam, humilhassem um pouco… e então os deixariam ir.
Era uma mentira.
Doce, confortável e traiçoeira.
A velha promessa de que abaixar a cabeça traria alívio. De que fingir submissão afastaria a dor. Que bastava ser pequeno o suficiente para se tornar invisível.
No passado, teria acreditado.
No passado, teria feito exatamente isso.
Mas algo dentro dele havia mudado. Silencioso no início, como uma faísca tímida… agora uma brasa persistente.
Desde a fortaleza, desde que seus olhos viram Hazan encarar horrores que pareciam grandes demais para um só homem. Desde que percebeu — com desconforto e admiração — que aquele forasteiro de olhar cansado nunca parecia se curvar.
Mesmo machucado.
Mesmo sozinho.
Mesmo quando o mundo inteiro parecia contra ele.
Os rumores só intensificavam aquilo que Aspen já sabia: que Hazan enfrentara uma masmorra ao lado da enigmática Aurora. Que voltava sempre sujo, arranhado, com sangue nos punhos ou poeira nos ombros, como se vivesse cada dia à beira do fim. E mesmo assim, voltava.
E agora, diante do medo que apertava seu peito, não havia apenas pavor. Havia uma sombra de vergonha. Uma pontada de orgulho ferido. A ideia de se ajoelhar parecia mais amarga do que a própria dor.
Porque se ajoelhar agora seria trair não apenas a si mesmo, mas a promessa silenciosa que fez quando começou a treinar. Quando decidiu tentar. Quando quis, pela primeira vez, mudar.
Respirou fundo.
Seu corpo ainda tremia, mas não tanto quanto antes. Os joelhos ainda hesitavam, mas não cederam.
E, mesmo com o coração batendo alto, ele deu um passo à frente.
Pequeno.
Mas firme.
Os olhos azuis, antes tão medrosos, agora refletiam algo novo. Como águas que, apesar de calmas, escondem correntezas profundas.
Ainda era frágil. Ainda era inexperiente. Mas, naquele instante, decidiu não ser pequeno.
Pela primeira vez, o corpo magro se colocou à frente. As pernas firmes, ainda que trêmulas. O peito arfava. O rosto estava suado, sujo, e o medo brilhava nos olhos, mas havia algo a mais ali. Ergueu os punhos cerrados, mesmo com o ombro latejando, e usou os ombros para protegerem o queixo. Separou as pernas na largura dos ombros e flexionou levemente os joelhos.
Por algum motivo, a postura e os ataques de Hazan estavam mais claros do que nunca em suas memórias. E ele queria tentar mais uma vez.
Mesmo que falhar significasse tomar uma surra e ver seus irmãos sofrerem. Ao menos, enfrentaria a situação de frente.
— Se quiserem machucar a gente… vão ter que passar por mim primeiro!
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