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    — Agora… — continuou Glorizelda, voltando para sua cadeira e cruzando as pernas — Você já se divertiu bastante… agora é hora de crescer e levar as coisas com mais responsabilidade. Porque sua última performance no trabalho foi tão espetacular que seu chefe mandou avisar que não precisa mais dos seus serviços.

    Paulo Costa, que havia permanecido calado até então, pareceu encolher ainda mais ao ouvir a menção do trabalho. Sua expressão era a de quem acabou de ver a conta de luz e perguntou em voz alta se por acaso não tava pagando o Maracanã sozinho.

    — E sabe de uma coisa? — continuou Glorizelda — Seu pai, que é um militar aposentado honrado e que se mata trabalhando para dar uma vida melhor para esta família, teve que passar vergonha com um amigo dele por sua causa!

    Paulo Costa acenou com a hesitação de quem sabe que não tem mais nada a oferecer além da própria presença física… e nem isso com muita convicção.

    — Ele organizou aquela equipe de segurança patrimonial para complementar nossa renda. — a voz de Glorizelda estava ganhando aquele tom dramático que indicava que o clímax do discurso estava se aproximando — E conseguiu que o amigo dele te desse uma chance! E o que você fez? Desapareceu por três dias! Três dias, Quintus! Deixou o lugar desprotegido, não avisou nada, fez seu pai passar vergonha, e ainda por cima o homem disse que não pode contar com alguém que não cumpre suas obrigações!

    O jovem Maximus sentiu cada palavra atingir sua autoestima já fragilizada com a precisão de uma pedrada certeira. Ele queria explicar sobre o Dr. Zaratustra, sobre os experimentos, sobre acordar em situações que não conseguia lembrar de que modo havia chegado, mas sabia que qualquer tentativa de justificativa seria interpretada tal qual uma desculpa esfarrapada.

    — Pai? — disse Sextus, quebrando o silêncio pesado que havia se instalado — Já que estamos no clima de acertos de contas, vamos fazer aquelas perguntas que todo mundo quer fazer mas tem medo?

    Paulo Costa congelou por um segundo, com a expressão de quem acabou de perceber que está sem carteira e o garçom se aproxima. E então lançou um olhar à esposa que misturava desculpa, pânico e esperança de misericórdia.

    — Pode falar! — disse Glorizelda, acenou majestosamente.

    — Você já fez um plano de vida? — perguntou Paulo Costa, usando o mesmo tom de quem não sabe se está dando um conselho ou pedindo socorro emocional disfarçado.

    — Como assim um plano de vida? — retrucou, com a expressão de quem foi traído pelo roteiro da própria família — Eu achei que a grande dúvida da mesa era se o Quintus era gay.

    — Nunca tive uma namorada, sim. Nunca beijei, verdade. Mas isso… pode ser só incompetência afetiva! Tem gente que demora! Eu tô esperando… talvez seja só uma fase. Tipo… uma fase longa. De quase dezoito anos. Mas isso não prova nada, ok?

    Paulo Costa olhou ao redor do quarto do filho, percebendo, com espanto silencioso, os sinais de uma existência construída no improviso. Passou a mão na nuca, incomodado, e soltou um suspiro meio engasgado.

    — Plano de vida… — repetiu Paulo com um riso cansado — O meu virou um rascunho rabiscado com pressa.

    — Claro que fiz! — soltou Quintus, usando o humor igual a um escudo, afundado entre travesseiros tortos, pôsteres de ídolos esquecidos e meias órfãs — Primeiro eu fico famoso. Depois rico. Aí eu viajo pelo mundo de patinete elétrico visitando todos os parques temáticos que existem.

    — Ué!? — disse Octavius, tirando o chiclete da boca para falar com mais clareza — E quando começa essa palhaçada toda? Porque pelo que eu saiba, você nem sabe andar de patinete normal, quanto mais elétrico.

    — Senhor… — murmurou Glorizelda, mão na testa e olhos fechados — Me dá paciência, porque se me der força, eu resolvo isso no tapa e meu filho vai ter a chance de testar essa teoria de reencarnação na prática.

    — Mãe… — tentou Quintus, percebendo que tinha dado a resposta errada para a pergunta errada na hora errada — Eu estava sendo sarcástico…

    — Sarcástico? — ela abriu os olhos e o encarou com uma intensidade que fez o jovem Maximus se perguntar se reencarnação era realmente uma opção viável naquele momento — Está na hora de você saber uma coisa: conseguimos uma vaga para você na Universidade Illusia!

    A informação atingiu Quintus tal qual uma ligação dizendo “Seu voo parte em uma hora” — e só depois percebeu que o destino era um curso universitário que ele nunca escolheu.

    A Illusia, até então uma escola de elite conhecida por seus corredores esterilizados e pelo refeitório que servia trufas, estava agora abrindo sua primeira turma de ensino superior. E aparentemente, ele era parte do experimento-piloto. Uma cobaia com mochila.

    — Como assim… conseguiram como? Vocês conhecem alguém no MEC? — perguntou Quintus, com a expressão de quem já sacou que estava prestes a ouvir que um primo do Detran estava no meio.

    — Como assim, como assim?! — rebateu Glorizelda — Seu pai e eu desembolsamos uma fortuna para garantir essa vaga! Vendemos o carro, pegamos empréstimo, eu até considerei vender um rim no mercado negro, mas conseguimos! Agora você só precisa escolher o curso.

    — Qualquer curso? — a voz saiu meio contida, em tom de quem teme que um milagre se desfaça ao ser falado.

    — Qualquer curso. — confirmou ela, antes de acrescentar com um dedo apontado diretamente para seu rosto — Desde que não seja uma dessas opções inúteis como Administração de Empresas, História ou Letras.

    — Por que esses são inúteis? — perguntou Quintus, genuinamente curioso sobre os critérios acadêmicos de sua família.

    — Administração… — explicou Sextus, com a didática de quem dá uma aula — É para gente que não sabe fazer nada específico, então aprende a mandar nos outros fazendo nada.

    — História… — continuou Septimus — É só para maconheiro que quer uma desculpa intelectual para ficar discutindo sobre coisas que já aconteceram e não podem ser mudadas.

    — E Letras… — finalizou Octavius — É para gente que acha que vai ganhar dinheiro analisando poemas e corrigindo vírgula dos outros.

    — Vocês têm uma visão muito preconceituosa do ensino superior! — exclamou Quintus, mesmo sem argumentos definidos. Mas bastava olhar para os sorrisos satisfeitos de Sextus, Septimus e Octavius para perceber que aquilo não era um debate. Era uma coreografia familiar ensaiada há anos, e ele estava dançando fora do ritmo.

    — Preconceituosa? — Glorizelda inclinou levemente a cabeça, com o olhar de quem acabou de ouvir um crime contra a lógica — Filho, preconceito é acreditar que vão te pagar pra explicar como a Era Vargas enterrou o futuro do país com cimento e hino nacional. Quer estabilidade? Vira engenheiro. Quer ser ouvido? Vira médico. Quer ter razão? Vira advogado. Agora, poeta e historiador… só em mesa de bar.

    — Isso se sobrar vaga… — disse Sextus com desdém — Porque as que existem vão ser disputadas no tapa.

    — E entender metáfora, infelizmente, não vai te livrar de morar com a mãe até os quarenta. — emendou Septimus, com um sorrisinho de quem falava por experiência indireta.

    O silêncio que se seguiu teve o peso de uma dívida vencida. Sextus e Septimus, especialistas em blefar, desviaram o olhar com a urgência de quem descobre um padrão fascinante na textura da parede. A piada do ‘tapa’ cutucara um nervo que a família fazia questão de ignorar: o futuro estava mais instável que Wi-Fi de repartição pública.

    — Olha só quem fala! — disse Glorizelda, virando-se diretamente para Sextus — O homem que conseguiu ser dispensado de um estágio que nem pagava. Vai colocar isso no LinkedIn como ‘aprendizado disruptivo’?

    Quintus sentiu o ponto de ouvido vibrar, e a voz de Dr. Zaratustra sussurrou:

    — Dinâmica familiar interessante. Deflexão de pressão através de ataques laterais. Continue observando como a tensão se redistribui.

    O jovem Maximus permaneceu imóvel, sem saber se o mais perigoso ali era o sarcasmo da mãe ou o fato de Zaratustra estar anotando tudo.

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