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    A família de Quintus desapareceu do quarto, à maneira de fantasmas cumprindo a cota diária de sustos e indo embora em paz, e o jovem Maximus permaneceu deitado na cama, encarando o teto e contemplando a magnitude da missão impossível que havia acabado de aceitar. 

    Já o relógio piscava com a frequência exata para lembrar o rapaz de cabelo eternamente bagunçado que o fracasso seria cronometrado.

    O ponto no ouvido estava quieto, mas sua quietude era pior que sermão: era expectativa. O jovem Maximus já sabia que, a qualquer momento, sua consciência seria invadida por Zaratustra com a delicadeza de uma auditoria surpresa. 

    E sua mente fervilhava com a consciência crescente de que sua vida havia oficialmente se tornado um reality show onde ele era o único participante que não conhecia as regras.

    — Olá, Quintus! — a voz do Dr. Zaratustra surgiu de repente, cortando os pensamentos do jovem feito um estalo metálico, amplificando seus maiores receios e deixando-os nus sob a luz fria da tecnologia.

    — Você achou que teria uma noite de paz? Ingênuo. — disse com uma ironia leve, entre risos que não prometiam misericórdia.

    — Fala o que você pretende com tudo isso? Esse equipamento também grava minhas imagens? — disse, ajeitando o cabelo como se aquilo bastasse para parecer no controle, mesmo sentado de pijama torto na cama.

    — Não grava, para isso temos todas as câmeras da rua, dos locais privados e até das câmeras escondidas espalhadas por todos os lugares. Vamos direto ao que interessa você. — respondeu o Dr. Zaratustra — Fique tranquilo. A partir de agora, só haverá contato se você apertar o botão vermelho. É sua escolha. Você decide quando e se quer me ouvir. Nem eu, nem minha equipe vamos interromper seus devaneios, pesadelos ou séries no streaming.

    — Sei que esse ponto no ouvido parece um implante alienígena. — houve um intervalo breve, com o cuidado tenso de quem se prepara para uma invasão verbal calculada — Amanhã mandarei entregar um fone mais moderno, discreto, algo que um jovem normal usaria. E não, ele não pisca.

    — Isso tudo é para seu bem. — a voz vinha embalada em veludo, mas o tom ainda tinha cheiro de algema disfarçada — Você precisa de ajuda. Sua família quer respostas. Eu quero entender o que causa seus apagões. E vamos fazer isso com calma, sem drama. Só monitoramento. Leve. Suave. Invisível.

    — Encerrando comunicação. De agora em diante, só você pode me chamar. Respire. Até breve. Tchic! — o som seco cortou o ar, e Zaratustra já não estava mais lá.

    Quintus se reclinou, ainda sentindo o peso da voz de Zaratustra ecoar no ponto de ouvido. Ele deixou que os últimos conselhos caíssem no silêncio do quarto, e então um turbilhão de preocupações tomou conta da sua cabeça.

    “Dois dias para escolher um curso que não seja inútil, um mês para encontrar uma namorada que não seja imaginária, três meses para passar no ENEM e uma vida inteira para descobrir como diabos eu vou fazer tudo isso sem ter um colapso nervoso.” — pensou, fechando os olhos na esperança vã de evaporar dali.

    “E ainda tem o emprego?” — continuou pensando Quintus, tentando parecer sério enquanto se embrulhava nos lençóis com a firmeza emocional de uma lasanha mal montada — “É o único item sem prazo. O que, vindo da minha mãe, significa que a cobrança pode cair a qualquer momento, tipo auditoria surpresa da Receita. Melhor deixar por último… e dormir com um olho aberto.”

    “Escolher curso em dois dias… minha mãe deve achar que vocação é tipo delivery: pedem hoje, entregam amanhã!” — riu amargamente — “Minha única revelação vocacional foi descobrir que trabalhar cansa e que dinheiro não nasce em árvore, insights revolucionários que nenhuma faculdade ensina.”

    “Mas tudo bem, marco qualquer curso mesmo.” — ele riu amargamente — “É tudo pegadinha do malandro! Pago uma fortuna para sentar 4 anos ouvindo gente que nunca trabalhou me explicar como é o ‘mundo real’. É igual a pedir dica de relacionamento para um monge… Os cursos são horóscopos caros: falam tudo e não dizem nada, mas todo mundo acredita.”

    “E o mais genial é que é autossustentável!” — continuou, agora achando graça da própria desgraça — “Estudantes endividados pagam professores que só sabem ensinar outros a virarem professores, criando uma cadeia alimentar acadêmica onde ninguém produz comida de verdade. É tipo aqueles esquemas de pirâmide, só que com diploma no final para pendurar na parede e impressionar a sogra. Tá decidido! Fecho os olhos e marco qualquer coisa. Afinal, toda profissão hoje é só atuação com salário. Se colar, colou.”

    Não se moveu. Nem precisava. O peso da expectativa materna já o pressionava contra o colchão tal qual um tijolo emocional. Encarou o teto, esperando que alguma rachadura escrevesse a resposta em letra cursiva.

    “Crescer é uma pegadinha cósmica!” — a conclusão veio com a força de quem já tinha desistido de argumentar com o universo — “Prometeram liberdade, mas cobram até pela minha respiração e ainda querem produtividade máxima.”

    As responsabilidades saltavam à sua frente igual a um vírus com força total. Namorada, curso, ENEM, emprego de gravata e planilhas… Cada pensamento sobre o futuro fazia-o afundar no colchão, sob o peso acumulado dos anos de negação da vida adulta.

    Foi quando seu celular vibrou, interrompendo sua sessão de autocomiseração. A notificação veio do grupo ‘3 Mosqueteiros e Nenhum Juízo’, nome que Leon havia escolhido numa época em que achava que ser honesto sobre a própria burrice era uma forma de filosofia aplicada.

    Leon: “Galera, recebi dois convites extras para um evento com bebida e petisco grátis. Alguém topa?”

    Quintus travou por um instante, surpreso com o corte brusco na trilha dos próprios pensamentos. Comida e bebida grátis soavam igual a um milagre econômico em tempos de ultimato familiar, mas sua energia estava tão baixa que até pensar em sair de casa parecia um projeto de engenharia complexa.

    Quintus: “Não tô no clima, pessoal. Família me deu um ultimato que parece mais um contrato com o diabo.”

    Leon: “Curioso agora… que tipo de ultimato?”

    Quintus: “Versão resumida: arrumar um emprego e uma namorada. Até o fim do mês.

    Leon: “Drama nível cena de divórcio no Ratinho! Mas real: tu precisa espairecer. Cola com a gente, vai ser top.”

    Gustavo: “A Mirela vai estar lá também…Vai que ela tropeça, cai no teu colo e decide que amar é isso mesmo.”

    A mensagem de Gustavo atingiu o jovem Maximus tal qual um raio certeiro no centro da sua zona de conforto. Mirela. O nome piscou na tela do celular, fazendo seu coração acelerar de zero a cem numa velocidade que deveria ser ilegal para órgãos internos.

    “Merda!” — pensou, sentindo o destino rir da sua cara mais uma vez — “É como se o universo tivesse um cronômetro para me ferrar no momento exato em que eu mais preciso de paz.”

    Mas então, uma fagulha de lógica desesperada se acendeu em sua mente. Se ele precisava de uma namorada, e se Mirela estaria lá, talvez fosse a oportunidade de enfrentar o dragão de uma vez por todas. 

    Receber o ‘não’ que sabia que viria, sentir a humilhação que já esperava, e quem sabe assim seu coração burro pararia de bater descompassado toda vez que alguém mencionasse o nome dela.

    Além disso, ele precisava sair de casa. Era isso. Uma última escapada antes do regime de estudos forçados. Sua mãe tinha lhe dado um ultimato: três meses para passar no Enem. E dado o nível do seu ‘estudo’, que envolvia mais rolagem de tela do que leitura, sabia que teria que se trancar no quarto e dizer adeus à diversão por um bom tempo.

    Quintus: “Tá bom, eu vou. Mas me diz logo o horário antes que eu me arrependa.” 

    Leon: “Ótimo! Às 19:30. Só uma exigência: tem que ir com roupa de luxo. Lembra daquele terno que você usou na festa da Illusia? Perfeito!”

    Gustavo: “É isso aí! Vai ser épico!”

    Quintus olhou para o armário onde o terno pendurado o encarava com expectativa silenciosa. A peça, que havia secado e parecia ter encolhido um pouco, já não tinha o mesmo charme da última noite em que usara na festa da Illusia. Agora parecia mais uma fantasia mal ajustada, carregada de todas as inseguranças que vinham junto.

    O jovem Maximus suspirou, resignado. Não havia mais volta. Entre ficar em casa remoendo suas angústias existenciais ou enfrentar o mundo lá fora com todas as suas incertezas, a segunda opção pelo menos oferecia a possibilidade de mudança. Mesmo que fosse para pior.

    Vestiu o terno com a mesma determinação de alguém que calça uma armadura antes da batalha, checou o endereço mais uma vez no celular e saiu de casa, sem imaginar que o ‘evento sofisticado’ que Leon havia prometido reservava surpresas que desafiariam até mesmo sua capacidade de lidar com situações absurdas.

    Mas antes de sair, algo o fez parar. Uma sensação estranha, à semelhança de quem se aproxima de uma linha invisível prestes a ser cruzada. Voltou ao quarto e puxou um caderno velho da gaveta da escrivaninha.

    Na primeira página em branco, escreveu com letra firme: “NÃO SOU GAY – OPERAÇÃO NAMORADA”

    Hesitou por um momento, a caneta suspensa sobre o papel. Então, num gesto que selava um acordo invisível com o destino, escreveu apenas um nome: Mirela.

    Olhou para o nome no papel. Era patético, mas real. Anos de devoção resumidos em seis letras tortas numa página em branco. Sua última tentativa seria aquela noite. Se não conseguisse falar com ela, se não conseguisse pelo menos tentar… então riscaria aquele nome para sempre.

    Fechou o caderno, guardou-o na gaveta e saiu de casa. Sabia que o ‘não tentar’ era igual a seguir ex no Instagram: você até finge que superou, mas continua clicando, sofrendo e se perguntando onde errou.

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