Capítulo 381: Vossa Majestade (II)
— Nós queremos conversar — respondeu Nero para os pedidos dos navios. — Gostaríamos de uma audiência com a Rainha do Norte. A bordo do navio está…
Houve uma imensa sombra que os engoliu de uma só vez. O céu se tornou escuro. Nero e Nekop prenderam a respiração, mas quando recuaram um passo, eles se assustaram pela sombra que se apresentou no meio do navio.
Eles giraram juntos, para então, ver um homem travado no meio do convés, Vestia um manto negro pesado, o tecido coberto por runas sutis que tremeluziram sob a chuva. O símbolo da Carpa Amarela serpenteava pelas mangas e costas, quase como se nadando na escuridão da túnica. Ele ergueu uma mão, puxando lentamente o capuz para trás. O movimento foi quase teatral, mas ninguém ousou interromper.
Quando o rosto apareceu, houve um arrepio coletivo.
Era fino, pálido, com traços profundos e marcados pelo tempo — ou pela ausência dele. Os olhos eram negros como breu, mas com um brilho que os fazia parecer vazios e infinitos ao mesmo tempo.
Ninguém se moveu. Nem Nero. Nem Nekop. Nem os Capitães à distância.
Então, ele falou.
— A Rainha fala através de mim. E eu falo para aqueles que entram nas zonas que a ela pertencem.
A voz dele era como um eco dentro de uma caverna submersa — profunda, ressonante, carregada de um eco que não vinha da boca, mas das próprias palavras.
Ele abriu os braços.
E nesse gesto simples, algo mudou. Uma aura rubra, quase invisível, se espalhou ao redor de seu corpo. Vermelha como sangue à luz de uma fogueira, mas gelada. Ela os envolveu, os tocou, e muitos deram um passo para trás. Alguns caíram de joelhos sem saber o motivo. Um dos marinheiros mais jovens começou a chorar em silêncio, sem entender por quê.
— Senhores dos mares… ou aqueles que se dizem ser… — continuou ele, sem elevar a voz, mas fazendo cada sílaba pesar toneladas. — Quem fala com vocês agora é a única pessoa que governa o céu, a terra e o mar ao norte.
Silêncio.
— Vocês invadiram nossas águas. Trouxeram uma tempestade consigo. Carregam em seus porões o eco de uma guerra antiga… e o cheiro das Pedras que dividem o mundo.
Ele deu um passo adiante, e o convés inteiro pareceu ranger sob seu pé.
— A Rainha não mata sem antes ouvir. Mas ouvir, para ela, é o mesmo que ver a alma. E se a alma estiver podre… — ele inclinou a cabeça, como quem avalia carne no açougue — ela não hesita em lançar os culpados ao fundo do mar.
Kamitase cerrou os punhos.
Gladius avançou meio passo, tentando esconder o tremor no punho.
Nero, por fim, falou:
— Estamos com Dante. Ele sobreviveu a uma Pedra Solar. Lutou contra o Bastardo. Não buscamos conflito, apenas aliança.
O arauto o encarou com olhos abissais.
— Dante… — ele repetiu o nome como quem saboreia um gosto raro. — Aquele que sangra o impossível. Aquele cuja morte se recusa a chegar. A Rainha o conhece. Duncan informou sua chegada antes mesmo da batalha, e espera por ele, mas… apenas por ele.
Houve novamente um pequeno silêncio entre eles, mas ninguém ousou dizer uma palavra.
— E o que a Rainha gostaria com o Capitão? — Nekop apareceu mais uma vez, mostrando sua grandiosidade mesmo na pequenez. — Nós também precisamos de refúgio. Temos outros feridos.
— A Rainha não se importa com os seus enfermos, Anão. — O homem lançou um olhar aos demais. — Ela está entregando a chance de seu Capitão viver. Então, sua oportunidade é única. Ter uma pessoa viva e partir para cuidar dos demais, ou morrer aqui com todos os outros, inclusive seu senhor. Não tem mais do que minuto para decidir.
Os murmuros começaram ao redor. Não só da parte da Vanguarda, mas dos Técnicos e Curandeiros também. Eles encaravam a si, o tempo passando mais rápido do que gostariam. A chance que tinham era apenas uma: manter o capitão vivo.
Nekop notou a hesitação de Nero e dos demais. Eles queriam lutar, queriam uma chance de manter o Capitão, ou poderia ser isso. O Anão tinha certeza de que eles teriam problemas. Nokia não tinha tantos buracos, mas a mão de obra inteira estava presente no convés.
As vozes aumentavam mais e mais. Os tripulantes queriam uma resposta, uma decisiva. Miatamo e Porto, mesmo com feridas da última batalha, já tinha um tom ameaçador, prontos para lutar contra qualquer um que quisesse.
São seis navios do outro lado. Nós somos poucos.
Nekop fechou os olhos por um instante. Ainda ouvia seu nome sendo chamado por trás, vozes conhecidas e esperançosas, aumentando em volume como uma corrente que se recusava a cessar. Estavam todos ali por causa dele — e agora era ele quem estava à frente. Pela primeira vez, precisava ser, nem que fosse por um momento, o homem que todos esperavam que ele fosse.
Tomar decisões em meio ao caos já era difícil. Mas fazê-lo sem pessoas em quem confiar ao redor… era apavorante.
— Dez segundos — declarou o homem à sua frente, com voz firme, quase impaciente. — Vão lutar… ou morrer aqui?
Nero deu um passo à frente, girando sobre os calcanhares, e fez um gesto com a mão, pedindo calma aos demais. Os olhos estavam arregalados, a respiração pesada, e ele os lançou diretamente a Nekop, esperando — ansiando — por uma decisão. Qual seria a resposta do anão? Morte? Guerra?
— Seu tempo acabou — o homem anunciou com frieza, erguendo a mão lentamente. — A Rainha considera sua decisão como…
— Calado, French.
A interrupção fez o silêncio despencar sobre o convés como uma lona pesada. O homem, surpreendido, virou-se na direção da voz. Os tripulantes também. Ela vinha de trás, mais afastada, e carregava uma autoridade que ninguém ousaria contestar.
Sentada sobre um caixote, com dois ajudantes ao lado, estava Sinora. Ainda segurava panos ensanguentados sobre a costela, o ferimento maltratado pelas horas anteriores, mas sua postura era imponente. Os olhos atentos, firmes. Nekop abriu os olhos ao ouvir a voz, e seu rosto se virou imediatamente.
French franziu o cenho ao vê-la. Sua expressão endureceu.
— Capitã… Sinora — murmurou, curvando-se em sinal de respeito.
Ela ergueu levemente o queixo, como se aquele gesto não passasse de uma obrigação. Havia altivez em sua presença, mesmo ferida. Mesmo assim, falou com clareza:
— A Rainha do Norte fala por você, não é? Pois então, eu falo pelo meu Capitão.
Apontou com o dedo trêmulo, mas decidido, na direção de Pomodoro, que observava tudo em silêncio.
— Dante irá com vocês. Mas levará junto o homem que cuidou dele até aqui. Esse aí — disse, sem tirar os olhos de French — esteve com ele desde o começo. Ele vai para tratá-lo.
French manteve o olhar fixo por alguns segundos, pensativo, como se esperasse uma confirmação vinda de outro lugar. Depois, inclinou a cabeça levemente.
— A Rainha aprova seu pedido, Sinora. Mas há uma condição. Você também virá.
— Como eu esperava — respondeu ela, soltando um riso rouco, sem humor. — Sua Rainha não esquece fácil os problemas que causei da última vez que naveguei por essas águas.
Mesmo ferida, mesmo sangrando, ela exibiu um sorriso provocador, lascivo, destoando de sua costumeira serenidade. O rosto, outrora limpo e austero, agora brilhava com algo mais — um tipo de desafio.
— O Capitão Dante precisa de tempo para se recuperar. Vocês o levarão.
— Sinora… — Nekop deu alguns passos apressados em sua direção, a testa franzida de preocupação. — A senhora é importante demais aqui. Sem o Capitão… sem você…
— Não se preocupe, meu amigo — disse ela, com um olhar que cortava como faca, mas aquecia como lar. — Este navio sempre teve um Capitão temporário à altura. Um que conhece cada alma aqui como se fossem pedaços de si mesmo. Que conversa com todos como um pai, irmão ou tio. Vocês fazem parte de um grupo que já lutou mais do que qualquer outro. Agora é hora de entenderem que, mesmo com o Capitão longe, vocês ainda têm o Nokia. E o Nokia não pode parar. Continuem, por ele… por vocês.
Com a ajuda dos dois auxiliares, Sinora se ergueu com dificuldade. Mas em nenhum momento hesitou. Seu olhar encontrou o de French, desafiador e firme, como se estivesse prestes a partir para uma nova guerra.
— Faça o que precisar fazer, French. Eles irão se retirar… assim que nos levar.
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