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    Nunca houve tantas batalhas. Nunca tantas mortes. O chão encharcado de sangue contava a história recente do mundo — uma história onde a vida, outrora resistente, agora se esvaía com facilidade. O rastro deixado por um único ser vivo era a prova de que a durabilidade da existência humana se tornara efêmera.

    No céu, os flashes contínuos ainda dançavam como fantasmas de guerras passadas. No mar, os destroços e as ondas negras refletiam o caos instaurado. Tudo envolto num breu espesso, como se o próprio mundo tivesse sido mergulhado num véu de luto.

    A morte, apoiada em sua foice, sorria satisfeita, banqueteada pelos despojos da raça que ousou desafiar os deuses. A história de certos homens, de épocas tão antigas quanto a própria linguagem, vinha sempre com uma assinatura. E era ela. A morte. A verdadeira contratante.

    — São somente esses três? — Refel fitou Pomodoro e Sinora com olhos frios, antes de lançar um olhar calculado a French. — O que houve com a Rainha?

    Pomodoro e Sinora estavam algemados, grilhões pesados nos pulsos. Haviam sido arrastados para fora do navio de guerra e levados até ali, onde a umidade subia das pedras do cais. A expressão da Capitã Sinora não trazia surpresa — já havia pisado naquele solo muitas vezes. Mas Pomodoro, o Curandeiro, demonstrava uma inquietação silenciosa. Aquilo era novo para ele.

    Ao contrário da maioria das cidades portuárias, largadas ao abandono e à miséria, aquela região parecia viva. Os telhados eram feitos de argila endurecida pelo frio constante. As paredes, um misto de ferro e pedra escura. As pessoas andavam eretas, firmes, como se ainda houvesse algo em que acreditar. O Norte era sempre um paradoxo. As Planícies Centrais se dividiam em dez partes desiguais, mas ali, no extremo norte do Oceânico Pollar, o sol ainda brilhava tímido sobre suas cabeças. Só que o vento — o vento vinha cortante, vindo do coração do continente.

    French os guiava com a frieza de quem já vira prisioneiros demais. Pomodoro notou o silêncio do povo. Nenhum grito. Nenhuma zombaria. Apenas olhos duros e julgadores. Eles eram vistos como inimigos. Como sobreviventes de algo que talvez não devessem ter sobrevivido.

    — A Rainha teve misericórdia desses dois — disse French, apontando para Pomodoro e Sinora. — Mas o outro prisioneiro… está lá dentro. Está desacordado desde antes da viagem.

    — Um moribundo? — Refel bufou, cruzando os braços. — Da última vez foi um cachorro. Certo. Pode levar.

    Com um gesto breve, French deu a ordem. Tripulantes se aproximaram e começaram a conduzir os prisioneiros. Pomodoro ouviu, antes de desaparecer sob a estrutura principal, French informar que o homem desacordado seria levado para uma das Carpas Azuis.

    — Não se preocupe com ele agora — murmurou Sinora ao seu lado. A dor em sua costela fazia-a mancar levemente, mas a firmeza em sua voz ainda impressionava. — Dante vai ser julgado assim que acordar. Precisamos apenas manter a calma e responder o que for perguntado.

    Os olhos dos guardas e dos moradores não traziam compaixão. Nenhum traço de empatia. Pomodoro tentou lembrar de uma única ilha onde haviam sido realmente bem recebidos, onde não tivessem sido tratados com suspeita ou desejo de morte. Não lembrou de nenhuma.

    — Se for como da última vez — continuou Sinora em tom baixo —, seremos levados para a Carpa Vermelha. Lá, ficaremos responsáveis por algumas tarefas menores enquanto a Rainha decide o dia do julgamento. Até lá… não diga nada sobre o Dante. Entendeu?

    — Sim — assentiu Pomodoro, sem hesitar.

    O vento cortava as falas. E a cidade, mesmo viva, parecia carregada demais. Como se todos ali soubessem que a presença daqueles três prisioneiros traria uma tempestade muito maior do que a que cruzava os céus do Norte.


    Verificação dos senhores neurais ativado. Atualização do sistema nervoso. Posição de Maldições anulada parcialmente. Uma nova remessa de Energia Cósmica formada para reduzir os danos contidos na mente. Dante, está me ouvindo?

    Dante balançou a cabeça mesmo que não enxergasse nada. Era a voz de Vick. A mesma voz que o acompanhou boa parte da sua antiga aventura em Kappz. Sentia saudade da neve lá, mas nunca foi realmente sua casa.

    Sua batalha contra Bastardo foi arriscada, e bem danosa. Seu corpo não está acostumado a receber Energia Cósmica refinada desse jeito. Meu antigo portador e seu pai, Render, sempre lidou com a Energia bruta. Por isso, seu corpo teve tantos problemas em receber essa quantidade tão pequena. No entanto, eu fiz os ajustes para receber uma parte dessa carga, por isso, atualizei meu sistema com base no que seus olhos e ouvidos tiveram de informação nesse meio tempo. Também fiz o necessário para que não ficasse com sua habilidade desestabilizada. No entanto, precisei refazer alguns ajustes no sistema nervoso.

    Dante tinha ouvido antes de cair, mas não tinha prestado atenção. Na verdade, ele nem fazia ideia de onde estava ou com quem estava. Não sentia seu corpo, os sentidos ou até mesmo a dor. Tudo tinha sumido.

    Não fique nervoso. Estarei aqui para avaliar sua estrutura, mas precisei desligar tudo para refinar a Energia Cósmica que recebeu do menino que queria ser Deus. É irônico, não acha, Dante? Um Humano lutar tanto para se tornar o que muitos detestam por ter jogado esse mundo em desgraça?

    Ela estava falando como a Veronica. Não nos mesmos termos, mas bem mais humana do que antes. Era um traço feminino bem articulado.

    Verônica tinhas seus problemas com o mundo por observar somente a maldade. Eu não carrego o mesmo rancor.

    Dante não fazia ideia do que Vick carregava, mas era bem peculiar por ajudar tanto.

    Nunca foi minha função julgar, Dante. Seu pai sempre se colocava em batalhas onde ele tinha o total controle de vitória. Quando me juntei a você, acreditei que o caminho seria o mesmo. Um pouco monótono por natureza, e… me enganei.

    Se enganou. Era divertido ouvir que suas lutas eram sempre lotadas de imprevistos e isso fazia sua derrota ser ainda mais amarga. Tinha vencido apenas o suficiente para conseguir sobreviver, nunca uma vitória completa.

    Seu pai, se estivesse no mesmo lugar, teria feito muito mais fácil e melhor.

    Render nunca teria vencido as mesmas batalhas, Dante. Acredito que entendeu minhas palavras de maneira errada. Como eu disse, observei demais ambos para ter certeza de que algumas das suas lutas seriam vencidas somente… por você.

    Dante não acreditava nisso. Não quando tinha visto seu pai durante aqueles anos todos treinando, mostrando sua maestria, se segurando contra ele. A força e habilidade corporal de seu pai era acima de qualquer pessoa que ele tinha visto.

    Como seus inimigos não seriam mortos por ele?

    Uma pergunta tão complexa como essa não deveria ser feita quando sua mente só consegue se autodepreciar. Nunca questionou o motivo de seu corpo ter limites, nunca questionou sobre sua Energia Cósmica ser tão bem utilizada, mas questiona suas vitórias como se não fosse dignos dela. Dante, quando entenderá que sua vida pertence somente a você?

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