Capítulo 386: Fugitivo (III)
As paredes do elevador tremiam levemente a cada andar que deixavam para trás. Havia algo de claustrofóbico naquela descida: uma cabine metálica, cercada por placas envelhecidas, e um silêncio estranho entre os quatro. Tron tentava manter o bom humor, Rosa mexia em seu bastão com dedos inquietos, e Dinastio apenas olhava para frente com os braços cruzados.
Dante, de pé ao lado da porta, observava as luzes do painel indicarem os setores. Era diferente de tudo o que um dia já tinha feito, mas esperar por muito tempo era ainda mais arriscado. Precisava sair.
Setor F… Setor G… Setor H…
Estavam indo fundo. Fundo demais. E aquilo não era um transporte comum — era quase um descer de patamar em um mundo que não queria ser visitado. Um lugar que Dante já tinha visto em outros momentos, em lugares distantes dali.
— Estamos quase no Setor I — murmurou Dinastio, sem virar-se.
Mas antes que o elevador pudesse alcançar o destino, um som estridente cortou o ambiente. O alarme começou como um bip agudo e isolado, depois se multiplicou em camadas: um rugido metálico de sirenes ecoando pelos andares superiores. Luzes vermelhas começaram a piscar no teto da cabine.
— Alarme? — Tron ergueu a cabeça. — Isso não é de operação padrão.
— Silêncio — ordenou Dinastio.
As sirenes vinham de cima. Setores acima deles — talvez do Setor B ou C. Aquilo não parecia ser um exercício, tampouco uma falha técnica. Era urgente. Real.
Dante apertou os dedos contra o casaco emprestado. Não sabia se era paranoia ou instinto, mas sentia como se o alarme estivesse relacionado a ele.
Vick surgiu em sua mente com um sussurro gelado.
“Eles descobriram.Estão procurando por você. O alarme está vindo do alto. Notaram sua fuga.”
— O que está acontecendo lá em cima? — murmurou Rosa, tentando disfarçar o medo.
— Pode ser um prisioneiro fugindo — disse Tron, mas se calou rápido demais, como se percebesse a ironia.
— Ninguém foge daqui — cortou Dinastio, frio. — A menos que tenha ajuda.
Os olhos dele passaram brevemente por Dante, apenas por uma fração de segundo. Mas foi suficiente para acender um alerta no velho. E mesmo um olhar tortuoso quanto aquele não tinha sido suficiente para deixá-lo incomodado.
Poderia estar sozinho contra os três, mas sem dúvida conseguiria colocá-los para dormir em segundos. Fechou a mão esquerda vagarosamente, esperando qualquer movimento brusco de Dinastio
O elevador sacolejou, parou com um rangido seco. A luz piscou antes de estabilizar. A porta se abriu com um rangido enferrujado. O ar do Setor I era mais denso, úmido, e trazia um cheiro agridoce de graxa, ferrugem e vapor.
— Continuem — disse Dinastio, saindo primeiro.
Dante seguiu os outros, os olhos atentos a qualquer possível sistema de vigilância. Sentia cada passo pesar mais do que o anterior. Havia se infiltrado ali sem saber a extensão da teia. Agora, os fios começavam a se esticar e vibrar.
Do fundo do corredor, alguém gritava ordens. Outro alarme mais distante respondeu em eco. Era como se todo o complexo estivesse despertando — e ele era a própria presa. Precisava de uma brecha para sair, mas Dinastio lançava um olhar constante para os lados quando um dos guardas passavam por ele.
“Precisamos sair daqui com respostas antes que fechem os acessos,” sussurrou Vick dentro de sua mente. “A chance de escapar depois disso será mínima.”
— Estamos chegando perto de casa. — Tron não parecia nenhum pouco abalado pelo eco do alarme agora. — O tio Valter poderia ter um pouco de consideração dessa vez e não nos mandar para o meio do inferno que é o Norte. Rosa também…
Dinastio o cortou rapidamente:
— Falamos disso depois. Continue andando. Precisamos chegar em casa o mais rápido possível.
Atravessaram o corredor fumacento em silêncio, com os ecos do alarme ainda reverberando pelas estruturas metálicas acima. O Setor I era diferente dos demais. Não havia o requinte clínico dos andares superiores, nem o excesso de vigilância: ali, as paredes estavam cobertas por placas envelhecidas, fileiras de canos e condutores cruzavam o teto, e o chão era manchado por óleo antigo e marcas de bota. Tudo cheirava a esforço — e sobrevivência.
Duas portas duplas de aço se abriram automaticamente diante deles. Dinastio passou sem hesitar. Tron e Rosa seguiram de perto. Dante, com passos mais lentos, cruzou a linha da base e observou o lugar com atenção.
Era uma espécie de hangar adaptado. Dentro, pelo menos uma dúzia de pessoas trabalhava em bancadas ou limpava armas. Estavam todos sob o emblema de um lobo entalhado em metal. Era ali, no coração do setor, que a família Sesar mantinha sua força. Havia caixas empilhadas, estufas de mantimentos, e até uma miniatura de arena circular no fundo.
E a quantidade de pessoas também não era pouca. Se fosse comparar, era praticamente a mesma quantidade da Vanguarda e metade dos Técnicos que tinha no Nokia. E trabalhavam em algo pesado pela quantidade de papéis que estudavam, e alguns rolos estranhamente interligados em circuitos.
Mas antes que Dante pudesse explorar com os olhos, uma voz ríspida cortou o ambiente.
— Quem é esse?
Todos pararam.
Um homem se aproximava do fundo da base, com passos pesados e expressão dura. Era alto, de cabelo escuro cortado rente, barba curta e olhar fulminante. Usava um casaco aberto que exibia o colete reforçado por baixo, e na cintura carregava duas pistolas idênticas presas a um cinto de couro envelhecido. Seu nome estava bordado na gola: Valter Sesar.
E pela postura, não gostava nada de gente nova.
— Dinastio… por que trouxe um estranho pra dentro da base sem aviso?
— Ele não é um estranho — respondeu Dinastio, firme. — É um recruta. Vai trabalhar conosco nos próximos contratos.
Valter não desviou o olhar de Dante.
— Não parece um recruta. Parece alguém que fugiu de onde não devia. E o alarme tocando lá em cima? Coincidência demais. Você, pode me dizer de onde veio agora mesmo.
Dante manteve a postura, mas sentia o corpo se preparar para o combate, mesmo que silenciosamente.
— O nome dele é Hassini — completou Tron, um pouco nervoso. — A gente encontrou ele no setor médio, e ele se apresentou pra ajudar em missões. A gente tá com pouco braço na parte de coletas.
— Você encontrou ou ele apareceu do nada? — Valter deu mais dois passos, até ficar a poucos metros de Dante. — Sabe o que parece pra mim? Que trouxeram um problema até a porta da nossa casa.
— Eu vim por escolha — disse Dante. Já tinha enfrentado gente poderosa demais para ser intimidado por um simples homem sem nada a oferecer além de palavras. — Se minha presença incomoda, posso ir embora agora mesmo.
Valter deu um sorriso torto, sem humor.
— Ir embora? Você acha que pode simplesmente entrar na base dos Sesar e depois sair andando? Não funciona assim, velho.
O silêncio pesou por um segundo. Até Rosa interveio:
— Ele não nos deu nenhum motivo pra desconfiança, Valter. Pelo contrário… Se for testado, vai provar o valor que tem.
— E quem te deu o direito de falar, garota? — rosnou Valter, virando-se bruscamente para Rosa. — Não tem voz nenhuma antes de provar que pode trazer dinheiro pra essa casa. Dinastio, controle seus subordinados… ou eu mesmo farei isso.
Rosa recuou um passo, os olhos faiscando, mas mordeu a resposta. Tron engoliu seco.
Dante mastigou um pouco do orgulho que carregava em nome do pai. A raiva subia em seu estômago como um soco mal dado. O velho impulso de confrontar veio com força, e ele já se adiantava para dar um passo — até que a voz de Dinastio surgiu, cortante como uma lâmina:
— É melhor falar direito com eles… ou nós dois teremos problemas, Valter.
Silêncio. Um silêncio duro, incômodo, como o segundo que antecede uma briga de verdade. O som dos equipamentos sendo mexidos parou. Um dos mecânicos deixou cair uma chave inglesa no chão.
Dante percebeu algo mais profundo naquela resposta. Dinastio não apenas os protegia — ele estava traçando uma linha clara no concreto.
Valter arqueou uma sobrancelha. O sorriso desapareceu por um instante, substituído por algo mais sombrio. Ele se virou lentamente para o mais jovem dos Sesar e deu dois passos à frente, o casaco abrindo levemente ao movimento. Com um gesto rápido e quase teatral, fincou o dedo indicador contra o peito de Dinastio.
— E como você acha que vai fazer isso, pirralho? — O tom era ácido, provocador. — Quer me enfrentar de novo? Quer perder o que restou da sua honra no campo de treino? Vamos… aceite. Eu mando um dos meus te surrar até que lembre do seu lugar.
Dinastio não recuou. Seus olhos se mantinham fixos, sérios. Ele tinha a mandíbula cerrada, e Dante percebeu que havia ali um peso antigo. Aquele não era o primeiro confronto entre os dois — e certamente não seria o último.
— A última vez que alguém me levou pro chão — disse Dinastio, numa voz baixa — foi você. Mas mesmo assim… não ficou de pé por muito tempo depois.
Valter deu uma gargalhada seca, sem humor, e deu mais um passo, colando os rostos.
— Você se esquece de como isso termina, não é?
— Talvez — respondeu Dinastio, num fio de voz gélido. — Mas não estou mais sozinho.
A resposta reverberou. Tron enrijeceu. Rosa levantou o queixo, encarando Valter. E Dante… Dante observava cada detalhe. Os soldados nas laterais da base paravam seus afazeres, trocando olhares silenciosos. A autoridade de Valter, embora sólida, estava sendo posta em xeque.
— Eu cuido da minha equipe — continuou Dinastio. — Cuido de quem coloco pra dentro. Se o senhor tiver problema com isso, pode me enfrentar nos termos certos… ou seguir fazendo teatrinho na frente dos outros pra manter sua sombra maior que a de todos.
Valter estalou a língua e deu um passo para trás. A tensão ainda preenchia o ambiente como um gás inflamável. Mas ele não explodiu.
— Hm… Cuidado, Dinastio. Quando você aposta alto, a queda também é alta. — Ele se virou para Dante, encarando-o com um meio sorriso. — E você… recruta. Mantenha seus olhos abaixados. Você ainda não tem ideia do tipo de gente que está hospedando.
E com isso, ele girou nos calcanhares e caminhou em direção aos fundos da base, com dois de seus homens o seguindo em silêncio.
Assim que ele desapareceu por uma das passagens metálicas, o ar pareceu voltar aos pulmões de todos. Tron limpou o suor da testa. Rosa soltou um palavrão baixinho. E Dinastio relaxou os ombros com um suspiro contido.
Dante, sem tirar os olhos da saída por onde Valter sumira, murmurou:
— Não precisava fazer nada disso.
— Eu sei que não. — Dinastio não tirou os olhos das costas de Valter Saser. — Se sabe disso, então sabe que esse lugar é mais cheio de vermes do que aparenta. Agora, vamos. Os garotos vão te mostrar o quarto para descansar por hoje, e as armas. Amanhã, temos contrato. Tron, Rosa, dispensados.
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