Eu fiquei pensativo. O lugar onde eu estava parecia ser tão diferente de tudo o que eu conhecia, cheio de segredos e regras que eu mal podia entender.

    — OUUUUU TA ME ESCUTANDO NÃO? 

    Eu preso nos meus pensamentos não estava escutando o que a Emiko estava falando então ela ficou com raiva e começou a beliscar meu braço.

    —AI!!! Porque fez isso? 

    — Uai, eu falando com você e você não me dando satisfação nenhuma, nem se quer falou um “A”!  — disse ela enquanto olhava para mim com seus olhos de puro ódio e com o rosto fechado.

    — Desculpa, estava pensativo.  — desculpei enquanto coçava a cabeça.

    O clima aqui já estava começando a ficar frio, normal já que é de noite, e o sono já começava a me pegar aos poucos…

    — Desculpado, mas agora me responda à pergunta que você não prestou atenção! — disse ela me encarando com uma expressão de frustração enquanto seus olhos brilhavam de um jeito peculiar. 

    — Você é do setor G, já que está com a identificação na sua camisa. Você viu se o quarto perto do seu estava com luz verde?

    Eu fiquei ali, parado, tentando lembrar de algo que claramente não tinha me dado atenção. Luz verde? Que luz verde? Eu não tinha sequer notado nenhuma cor em cima das portas dos quartos.

    — Não. Não percebi nenhuma luz, na verdade. Onde fica essa tal luz? — perguntei, curioso, enquanto olhava para ela.

    — Ela fica por cima das portas, uai. Como você não percebeu isso?

    Ela me encarou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

    — Eu não fiquei prestando atenção nas portas, então não reparei. Mas o que significa essa luz? — perguntei, colocando as mãos na cintura.

    Ela suspirou, como se estivesse explicando o óbvio, e então começou a me contar, de forma lenta e clara, como se eu fosse uma criança:

    — Olha, existem apenas três cores possíveis que aparecem em cima das portas — disse ela, mostrando três dedos da mão direita. — A primeira é a verde, que significa que tem alguém dormindo nesse quarto no momento.
    A segunda é a vermelha, que indica que a criança que dorme nesse quarto não está ali agora.
    E a última, que é muito importante, é a branca, que significa que não tem mais nenhuma criança nesse quarto. Entendeu?

    Eu engoli as informações, meu cérebro tentando processar tudo aquilo. Mas, graças aos ensinamentos que minha mãe me passou ao longo dos anos, eu já estava acostumado a assimilar grandes volumes de informações de uma só vez.

    — Entendi. E essa terceira possibilidade, a branca, significa que a criança já foi para a escola, certo? — perguntei, tentando confirmar.

    — Isso mesmo, senhor dedução! Acertou precisamente! 

    Ela deu um sorriso vitorioso, como se tivesse me pegado em uma armadilha.

    — Há Há Há!

    Soltei uma risada irônica. Mas ela ainda estava com a mesma expressão insistente.

    — E agora? — perguntou, olhando-me fixamente, — Está lembrado de ter visto a cor verde por cima da porta?

    Eu suspirei, já começando a me incomodar com o assunto.

    — Eu já falei que não reparei nisso, cabeçudinha. Se eu não prestei atenção, não vou lembrar se vi ou não.

    Fechei o rosto para ela, tentando me afastar mentalmente da conversa.

    Ela deu um suspiro de frustração, mas seu sorriso não desapareceu. — Tá bom, então. Mas quando você voltar, tente reparar, ok? Aí você me fala amanhã.

    — Tá bom! — respondi, resignado.

    Ela voltou a olhar para frente, com a cabeça apoiada na mão, e o braço descansando sobre a mesa. Seus olhos estavam fixos nos bebês sendo alimentados pelas mulheres de jaleco. Eu a observei por alguns momentos, sem saber o que fazer.

    — Por que está olhando para eles? Sente falta de ser bebê? — questionei, com um olhar desconfiado.

    Ela não parecia perceber minha provocação. Ao contrário, seu tom de voz ficou suave, quase melancólico, enquanto ela falava.

    — Não, bobinho. Eu só vou sentir falta deste lugar… Foi aqui que eu cresci até agora — disse ela, com um olhar melancólico.
    — Nunca conheci meus pais verdadeiros e nunca vi o mundo lá fora. Mesmo com essa vontade enorme de conhecer tudo, eu ainda gosto daqui. Não sei bem o porquê… Mas é isso.

    Eu podia entender o que ela estava dizendo. Ela havia crescido aqui, criando laços com as mulheres e as crianças ao seu redor. Mas, ao mesmo tempo, sabia que, quando ela saísse para ver o mundo, esse sentimento provavelmente mudaria. O mundo lá fora era muito maior.

    — Mas quando você vir o mundo lá fora, verá que a sensação de algo novo será maior que as lembranças desse lugar. Eu tenho certeza.

    Tentei confortá-la, ainda acreditando que ela acabaria se adaptando.

    Ela me olhou por um momento, depois sorriu com aquele brilho nos olhos que, de alguma forma, me deixava mais tranquilo.

    — É, pode ser. Eu aprendi na aula de Geografia que o mundo é muito, mas muito grande mesmo. Tem tanto lugar pra eu ir… Meu sonho é viajar por todo o mundo, conhecer pessoas, suas culturas e, principalmente… — Ela fez uma pausa dramática, fechou os olhos e se preparou para falar algo importante: — COMIDAAAAA!

    Ah, claro. A animação dela era contagiante. Eu até ri, achando graça da sua empolgação.

    — Você realmente gosta de comer, hein?

    — Eu não gosto… EU AMO! — respondeu ela, toda animada, balançando o corpo de um lado para o outro, como se estivesse dançando.

    — Mas e você, bobinho? Qual é o seu sonho?— perguntou ela, inclinando a cabeça para o lado.

    Eu hesitei por um momento. Eu queria contar a ela que meu maior sonho era saber se minha mãe estava bem. Mas, como ela me ensinou, eu não devia contar esse tipo de coisa para ninguém. Então, fiquei em silêncio, coçando a cabeça, tentando pensar em algo menos pessoal.

    “Ah… bem… sobre isso… — comentei, olhando ao redor antes de dar minha resposta, — eu não sonho ainda.

    — Ah, eu sei. Seu olho ainda está cinza, então você ainda não despertou seus sonhos, né? Mas não estou falando sobre sonhos enquanto dorme, estou falando sobre o que você deseja para o futuro, o que você mais quer.

    Agora entendi o que ela quis dizer. Ela queria saber o que eu desejava, não o que eu sonhava durante a noite. Aquilo fez mais sentido.

    Parei por um momento, colocando um dedo na bochecha, pensativo. O que eu mais desejava? Minha mente vagou para minha mãe, mas eu sabia que ela não entenderia. Então, escolhi outra resposta.

    — Bom… eu desejo… — Dei uma pausei, e então falei de forma clara,  — meu maior desejo é conhecer a menina dos meus sonhos.

    Ela ficou parada por um segundo, seus olhos se arregalaram e sua boca ficou aberta de surpresa.

    Antes que eu pudesse reagir, ela saltou para perto de mim, tão rápido que quase me fez pular da cadeira.

    — MENINA DOS SEUS SONHOS? COMO ASSIM?

    — Calma, calma. Eu só quero conhecer uma menina que, para mim, é muito interessante. — respondi rapidamente, tentando afastá-la um pouco.

    — Você quer namorar? — perguntou curiosa, com um sorriso travesso no rosto.

    — Claro que não! Por que eu iria querer isso?

    Eu dei de ombros. Minha mãe sempre me dizia que namorar era uma coisa boa, mas muito cansativa, e que eu só entenderia isso na adolescência. Por enquanto, não estava nem um pouco interessado nisso.

    — Hmmm, sei… Estou de olho em você, viu? — disse ela, apontando o dedo na minha direção.

    Eu fiquei um pouco desconcertado. Eu a conhecia há menos de uma hora e ela já estava fazendo essas perguntas estranhas.

    — Mas enfim, vamos ficar aqui até que horas? Já terminamos de comer. — perguntei, tentando mudar de assunto.

    — Temos que esperar a hora de voltar. Quando der a hora, o sinal toca. — respondeu ela com uma voz tranquila.

    — Não tem como a gente sair sozinhos? — perguntei, já começando a ficar inquieto.

    — Não, pra usar o elevador precisa do cartão que só as mulheres têm.

    Ela deu de ombros, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

    Eu fiquei pensativo, e então disse: — Estranho… Eu não vi a mulher que me trouxe aqui usar esse cartão.

    — Pois é, mas é assim que funciona. — respondeu ela, sem dar muita atenção.

    — Entendi… Mas o que fazemos aqui? Só ficamos parados esperando? — perguntei, observando ao redor. Onde estavam todos os outros?

    — Ah, eles foram para o quintal!

    Levantando de repente, com uma energia renovada ela disse

     — BOBINHO! VEM COMIGO PRO QUINTAL?

    Fiquei assustado com a animação dela. Quintal? Aqui?

    — Quintal? Mas aqui tem como a gente ir para o lado de fora? — perguntei, confuso.

    Ela riu de mim, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. 

    — Não, bobinho, o quintal continua sendo dentro desse lugar. Mas o quintal é muito legal! Tem um monte de brinquedo lá e eu quero te mostrar um que meu amigo me deu.

    E assim, sem mais nem menos, ela me arrastou para o quintal.

    No caminho até o quintal, questionei ela sobre esse amigo.

    —Emiko, aquele seu amigo que te deu o brinquedo… tem algo a ver com o quarto vazio que você quer investigar?

    Eu a segui, com passos rápidos, tentando alcançá-la. Ela estava tão apressada, mas não olhou para trás nem por um segundo. Apenas soltou um murmúrio abafado, como se estivesse com o coração e os pulmões exaustos.

    — Agora não… depois eu te conto… — Sua voz soou fraca, quase sem fôlego, como se estivesse lutando para manter a conversa.

    Eu ainda caminhava atrás dela, respirando com mais facilidade, mas sabia que a pressa dela era algo urgente. Era óbvio que ela não queria conversar mais por agora.

    — Entendi… você está com pressa para chegar a algum lugar, não é? —perguntei, um sorriso leve se formando, tentando aliviar a tensão no ar.

    Ela acenou sem parar, como se já estivesse ouvindo o som do sinal de campainha em sua cabeça. — Sim… antes que o sinal toque… estamos quase lá.

    Ao chegarmos ao quintal, olhei ao redor, observando as crianças espalhadas em pequenos grupos, brincando ou conversando. Mas o lugar tinha algo estranho. Não havia árvores ou grama, e o céu parecia estar bloqueado por um muro de concreto, sem um único raio de sol. Em vez disso, havia portas e quartos fechados, cada um preenchido com brinquedos diferentes.

    — Vem, continua me seguindo! — disse ela, fazendo um gesto para que eu fosse mais rápido.

    — O que eu quero te mostrar está no canto, onde só eu e meu amigo ficávamos.

    Eu a segui em silêncio, curioso sobre o que ela queria me mostrar. — Mas por que só vocês ficavam juntos? —perguntei, tentando entender.

    Ela parou, ofegante, e soltou um suspiro. — Porque… ah… esse lugar é tão longe! Mas enfim, nós ficávamos juntos porque éramos… excluídos. E acho que você pode entender o motivo, né?

    Ela me olhou de canto, com um sorriso cansado, mas ao mesmo tempo triste.

    Eu demorei um pouco para processar o que ela queria dizer. Ela nunca me falou muito sobre isso antes, mas, de repente, a resposta veio com clareza.

    —É por causa dos seus olhos, certo? — disse eu, como se fosse uma conclusão óbvia, — você e seu amigo têm olhos diferentes dos outros, como se fossem… fora do padrão.

    Ela me olhou com uma expressão levemente surpresa, mas logo fez uma careta.

     — Exatamente. Você acertou — disse ela, fazendo um gesto de “ok” com o dedão.
    — Aqui, as crianças nunca conheceram o medo… mas sabem quando algo é diferente, e têm medo disso — continuou ela, com os olhos brilhando, como se estivessem prestes a derramar lágrimas.
    — Elas brincam entre si porque são iguais. Eu e meu amigo… bem, não somos como elas. E por isso acabamos sendo deixados de lado.

    Enquanto ela falava, eu só conseguia olhar para seus olhos, que se destacavam por causa do brilho.

    — Mas as mulheres que cuidam da gente nos juntaram há um ano, para que não ficássemos sozinhos — disse ela, dando uma risadinha, mesmo com os olhos ainda brilhando

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota