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    Renato batia as asas de sombra, cruzando os ares. Tinham atravessado um portal que ligava a Terra ao Inferno e agora voltavam para casa. Embaixo, a cidade parecia uma maquete.

    Carregava Irina nos braços. A garota admirava a paisagem noturna com olhos apaixonados. A lua nunca pareceu tão próxima! O vento fazia sua mecha azul de cabelo se movimentar feito louca.

    Lírica estava agarrada ao corpo dele, abraçada, completamente imóvel. Seus olhos eram neutros, sem transparecer nenhuma emoção. Mas por dentro ela era pura euforia. O cheiro de seu amado, assim tão de perto, a deixava maluca! O coração batia forte! Não via a hora de estar de volta naquele quarto de penumbra, fazendo coisas tão obscenas que fariam até os deuses desviarem os olhos de constrangimento.

    Clara voava ao lado deles. Suas asas eram diferentes das de Renato. As dele eram como se a própria escuridão se dobrasse em volta de suas costas. Pareciam até meio gasosas, ondulantes e sem forma definida. As asas de Clara, por outro lado, eram mais físicas. Lembravam asas de morcego; e eram pretas com detalhes vermelhos.

    A súcubo parecia de mau humor. Olhava de soslaio para Renato carregando as meninas, murmurava alguma coisa, mas não reclamava em voz alta. Parecer ciumenta era uma vergonha indescritível para ela. No entanto, maquinava vinganças em pensamento.

    Mas algo diferente aconteceu. Assim que puderam ver o predinho surgindo à distância, Lírica farejou um cheiro desagradável.

    Clara percebeu logo em seguida.

    — Alí! — disse a súcubo, apontando para uma pequena aglomeração de pessoas próxima de seu portão.

    Algumas pessoas tiravam fotos do portão; outras tentavam escalar o muro, para espiar alguma coisa..

    Clara apertou os dentes, irritada.

    — Humanos enxeridos! Vou matar todos eles!

    — Calma, aí! — disse Renato. — Vamos ver o que está acontecendo primeiro.

    Pousaram num local um pouco afastados, para não serem vistos, e então se aproximaram.

    — Posso ajudá-los com alguma coisa? — A súcubo tinha um sorriso cortês no rosto, mas seu olhar deixava claro que ela não estava muito contente. A contradição em sua expressão deu a ela um ar sarcástico.

    — Ah, er… vocês não souberam? — disse um homem que se aproximou. Estava cauteloso, mas tão empolgado que mal podia se segurar. — Aqui é a casa de uma santa!

    — Casa de quê?! — Aquilo soou um absurdo gigantesco aos ouvidos de Clara.

    — Uma santa! Não viram os vídeos?

    — Peraí! Vídeos? — Clara gargalhou, mas estava visivelmente incomodada. — Isso não é a casa de uma santa nem aqui e nem no quinto Inferno! Na verdade, eu diria que é o contrário!

    Renato se aproximou. Cauteloso, com o cenho enrugado. Porém não disse nada.

    — Acho que entendi o que aconteceu… — disse Lírica, após captar os pensamentos daquelas pessoas.

    — Eu não tô entendendo bulhufas! — reclamou Irina, coçando a cabeça.

    — Aqui! — O homem mostrou um vídeo no celular. — Vejam!

    Eles viram Mical e Hiro caminhando pelo hospital, enquanto a garota curava os doentes moribundos pelos corredores.

    Clara bufou e levou a mão à testa.

    — Ah, Mical, droga!

    — Ela parece mesmo uma santa — disse Renato, com um sorriso no canto da boca.

    — Não tem graça! Isso pode causar problemas! Pra começar, fanáticos e crentes no meu portão!

    — Ah, a gente não é fanático… a gente só…

    — E isso ainda pode chamar a atenção daqueles merdas do Monitoramento! Não que eles me preocupem de fato, mas são um pé no saco dos diabos!

    — Eu consigo ajudar! — disse Lírica.

    A demi-humana fechou os olhos e se concentrou nas ondas cerebrais emitidas por aqueles crânios incautos. Era tanta fé irracional e esperanças sem nexo, que até ela sentiu vertigens. Não que Lírica tivesse, particularmente, algo contra a fé das pessoas, mas ela cresceu no Inferno e tinha uma visão um pouco menos romântica da coisa.

    — O… o que aconteceu? — O homem franziu o cenho, confuso. — Que lugar é esse?

    As outras pessoas pareciam tão confusas quanto ele.

    Clara sorriu satisfeita, tomou o celular da mão do homem e o esmagou entre os dedos.

    — Vocês são pacientes de um hospital psiquiátrico — disse a súcubo, com um sorriso. — Melhor fugirem logo, ou os enfermeiros vão te alcançar!

    O homem a encarou horrorizado.

    — O-o quê? Como?

    Clara mostrou sua verdadeira aparência demoníaca, com chifres e asas.

    — Vocês são completamente malucos e veem um monte de coisas que não existem. Fujam, ou os enfermeiros vão te trancar num quartinho apertado com uma bela camisa de força prendendo seus braços.

    — N-não poder! Não! Mas eu…

    — Vamos!

    — Vamos fugir! — gritaram as pessoas, aterrorizadas. E o homem as seguiu.

    Clara curvou os lábios num sorriso, achando a cena divertida.

    — Você tem um senso de humor bastante peculiar — disse Renato.

    Irina puxou a manga da camiseta do irmão.

    — Rê, tô começando a desconfiar que essa Clara é meio maluca.


    Enquanto subiam os degraus da escada que levava até o último andar, sentiram um cheiro adocicado, com um leve toque de chocolate e canela.

    O estômago de Irina roncou alto. Renato riu. E a garota ficou vermelha de vergonha.

    — E-eu não tô com fome, não! Isso foi… é… foi… os corpos de garotas fazem barulhos , sabia?

    — O meu não faz, não — respondeu Clara.

    — Nem o meu — disse Lírica.

    Depois de cruzar os andares da academia e do estande de tiros, finalmente chegaram ao andar da sala de estar e da cozinha.

    O cheiro doce ficou mais intenso.

    E lá estava Jéssica, usando apenas um avental de cozinha, e nada mais por baixo. Suas curvas voluptuosas estavam completamente expostas. Hipnotizantes!

    Ela estava diante do fogão, usando uma colher de pau para mexer o conteúdo fervente de uma panela.

    — Renato! — gritou ela. Largou a panela no fogo e correu até o garoto.

    Ela pulou sobre ele, apertando seu corpo semi-nu contra o dele num abraço caloroso.

    Irina inclinou a cabeça, observando a falta de roupas de Jéssica enquanto abraçava seu irmão. Ficou indignada.

    — Que indecente! — reclamou.

    Lírica farejou.

    — A calda de chocolate vai queimar — disse a demi-humana.

    — Ah, não! — Jéssica correu, um tanto atônita, de volta até o fogão. Desligou om fogo e ficou um tempo ali, parada, respirando de maneira ofegante.

    — Se eu deixasse isso queimar…. se eu deixasse… — lágrimas surgiram nos seus olhos.

    Clara sorriu de maneira travessa.

    — Tão emotiva… chocolate… parece até que tá naqueles dias…

    — O nome disso é saudade, tá?! — retrucou Jéssica. — O Renato foi para o Inferno com vocês e deixou eu e minha irmã aqui! A gente ficou solitária!

    Ela se abaixou, abriu o forno e tirou de dentro um bolo de cenoura.

    — Tão com fome? — Ela perguntou, limpando uma lágrima do canto de um dos olhos.

    — Tô faminto — respondeu Renato.

    — Bolo de cenoura com calda de chocolate? — disse Irina, salivando. — Quero demais! Gostei dessa garota indecente, Rê!

    — Ei, eu não sou indecente!

    Após desenformar o bolo, ela jogou a calda por cima.

    — O cheiro tá incrível — disse Lírica, passando a língua pelos lábios.

    Jéssica lançou um olhar meio tristonho na direção do sofá, e lá estava Mical, dormindo com uma serenidade invejável.

    Também usava apenas um avental.

    Clara bufou.

    — Ela arruma problemas pra gente, bancando a santa por aí, e ainda tem coragem de dormir tão tranquilamente! É uma descuidada mesmo!

    — A Mical me ajudou a fazer o bolo — disse Jéssica. — Ela queria esperar vocês chegarem para comermos juntos, mas… ela não aguentou esperar.

    Renato ficou um tempo admirando a garota dormindo. Vê-la, de certa forma, acalentava-o. Ela era o exato oposto de tudo o que ele tinha passado recentemente. Mical representava algo bom.

    Não importava o que ele precisasse sacrificar e nem quanta dor tivesse que aguentar, ou quanto sua carne fosse dilacerada e seu sangue derramado. Ele a protegeria. Manteria aquela garota inocente longe de todo perigo! E não só Mical, mas todas elas!.Que se dane aquela profecia tola! Renato tinha decidido. Ninguém mais precisaria se ferir, além dele mesmo.

    Acariciou o rosto sereno de Mical.

    Mical abriu os olhos e olhou diretamente para Renato. Sorriu e pressionou a mão dele ainda mais contra seu rosto.

    — Mical… eu não queria te acordar.

    — Eu tô feliz de ter acordado.

    — Quer comer bolo?

    — Quero sim.

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