Capítulo 22: Carniça
Yaci carregava nos ombros uma mochila velha e surrada e uma bolsa universitária semi nova, ambas cheias até a boca. Tudo que julgou necessário, ou como uma posse pessoal importante estava embalado, tudo, menos um item.
— Tem certeza que está tudo bem deixá-lo para trás? — perguntou a menina.
— Sim, não chegue perto, se puder evite até mesmo olhar para o capa preta. Eu o escondi naquela sala. Esquece esse livro estranho logo, foca na viagem, o resto eu já desenrolei.
Hoje era o dia em que diria adeus a sua casa por um longo tempo. Não sabia quando teria a oportunidade de retornar, era uma sensação de ambiguidade, medo e euforia diante do futuro desconhecido, a quebra da rotina.
— Chegou cedo! Vem, só estávamos esperando você chegar para nos juntarmos a caravana. — disse ostentando um sorriso zombeteiro. — Eu disse que ela ia aparecer vovô!
O senhor não deu atenção, focando apenas em Yaci.
— Obrigado por acompanhar esse velho e sua neta. A viagem será muito mais leve com você conosco, já chega de tristeza por enquanto…
Os três começaram a caminhar em direção a uma grande fila de carroças, algumas carregavam bagagens, outras pessoas.
— Soube da notícia? Da nova invenção que dominou a capital?
— Dizem que é um veículo movido sem cavalos. Me pergunto como funciona…
— O preço das coisas subiram de novo, como vai ficar os negócios? — Onde está a saca de grãos que eu deixei aqui — Quem foi o xis nove que contou pra minha mulher que eu estava no bar?
A cacofonia de sons, vozes e conversas foi aumentando à medida que se aproximavam, não tardou para que fosse impossível discernir conversas e sentidos nas dezenas de palavras perdidas na multidão.
Hilda se abaixou para se aproximar da orelha de Yaci para poder ser ouvida e disse em um tom alto, beirando um grito:
— Estamos no final da fila! Vamos pegar carona com um comerciante local que está voltando para Verdemar.
Caminharam por minutos. Quanto mais fundo iam, menos opulência e riqueza viam. A paisagem mudava rapidamente, a estrada de paralelepidos brancos foi aos poucos se tornando cinza, ficando cada vez mais desbotada e erodida, marcada pelos cascos dos cavalos e as rodas das carroças, pela poluição das fábricas ao redor, a fuligem se acumulando no chão.
O meio fio, antes preenchido de terra e gramíneas que lutavam para crescer, agora era afogado por montes de esterco e lixo que os proprietários das carroças e carruagens descartavam. Tudo se tornou mais morto e sujo.
Por um momento, Yaci sentiu que estava de volta às favelas, lá, às margens da sociedade. Mas não estava, pelo contrário, estava de fato, no coração do setor industrial, mais perto de cruzar as muralhas do que jamais estivera antes.
No final da fila, destoando do cenário ao redor, estava parada uma carroça coberta simples, porém bonita e muito grande. Tão grande que era necessário três cavalos para movê-la, estava cheia das mais variadas mercadorias, todas embaladas, lacradas e amarradas uma nas outras.
O cheiro de esterco e fumaça das fábricas próximas permeiam o lugar, não eram suficientes para incomodar os moradores do distrito da miséria, que caminhavam em meio a fuligem e o pó de ferro com familiaridade.
— Essa é – cof cof… a menina que faltava? — Disse o comerciante, tapando a face com um pano, para tentar mitigar o cheiro.
— Sim. Acho que já estamos todos aqui. Os senhores preferem contar para ter certeza?
Todos concordaram, e os dois guardas começaram a contar as pessoas. Quatorze pessoas, contando com o comerciante e os dois guardas contratados.
— Tudo certo, todos aqui. Podemos agora, se o senhor quiser.
Ele assentiu com a cabeça para o guarda, e então subiu na carroça para guiar os cavalos. Estavam deixando aquela fila para trás, indo em direção a faixa vazia da estrada.
Os mercenários contratados, viajando cada um de um lado da carroça, e todos os andarilhos seguindo atrás.
— Será uma viagem longa, ainda mais mantendo a velocidade de caminhada. Porém em algumas regiões perigosas vamos aumentar o passo, os guardas são a garantia de que, caso algo dê errado estaremos seguros, mas com sorte, e um pouco de pressa, talvez não precisamos dos serviços desses cavalheiros.
Yaci olhava para tudo aquilo com curiosidade e animação, tudo era novo e mesmo as menores interações com o ambiente foram suficientes para expandir e aprofundar seu mundo.
O guarda, vendo o fascínio de Yaci, perguntou:
— Primeira vez viajando, pequena?
A animação brilhava nos olhos de Yaci, de uma forma literal de mais para o conforto do homem.
— Sim! É a primeira vez que saio da cidade… Esperava um pouco mais de verde, mas é tão cinza quanto a cidade…
O mercenário decidiu que o brilho nos olhos da menina era o sinal que precisava para ver um oftalmologista, mesmo que fosse caro. Já fazia meses que sua mulher lhe dizia para fazer um óculos e que sua visão estava pior a cada dia, mas só agora entendeu a gravidade da situação.
— Há, te entendo, é difícil conceber o tamanho dessas estradas, elas atravessam todo o Império! Do ponto mais interior, até as frentes de guerra na fronteira. Existem cada vez menos áreas verdes, mas devemos passar por duas durante o caminho, mesmo que sejam pequenas.
— Fico triste que sua primeira viagem seja em uma ocasião tão triste menina… O governo ainda não deu notícias do que aconteceu, não é?
— Não, não disse nada. E mesmo que dissesse, é muito provável que as notícias demorem a chegar no distrito da miséria… — disse Hilda.
— Eu ouvi dizer que foi um ataque de Malus!
— Mas e os cadáveres?! Como eles os trouxeram de volta à vida?
— Aqueles não eram nossos parentes! Eram coisas… que vestiram a pele deles!
— E o que é que o cu tem a ver com as calças? Vestiram a pele, reviveram, é tudo a mesma coisa, no final os mortos começaram a nos atacar!
Logo as fofocas e discussões começaram. Todos tinham uma teoria, uma conspiração… Mas Yaci sabia que não era tão simples, ela não tinha paciência para esses delírios.
— Senhor! — perguntou ao guarda. — O que são essas pedras brancas na beira da estrada? Já passamos por várias nas últimas horas.
— São pedras de sal grosso, às vezes são bacias junto de cravos ou carvão, mas sempre são colocados nas beiras das estradas. Afasta maus espíritos… As pessoas que fazem a manutenção da estrada trocam elas de anos em anos.
A explicação fazia muito sentido para Yaci. Através de seus olhos ela via o brilho puro e calmante da pedra, que se estendia como uma parede, separando aquela estrada surrada do exterior austero.
Ao longo das horas, viu como eram magistralmente costuradas, se sobrepondo com outras pedras nas extremidades fracas, nos limites de onde a energia das pedras alcançava.
Agora, que estavam passando por uma Yaci se aproximou, para olhar mais de perto, a caravana andava devagar, então mesmo se parasse por uns momentos conseguiria alcançá-los com facilidade.
De perto, a pedra exalava e espalhava sua energia para todos os lados, que eram capturados e direcionados por pequenas inscrições tanto físicas quanto imaginárias, que guiavam essa massa protetora para que agisse como uma parede contra o exterior.
No centro de cada pedra, a cada segundo que passava pulsava um minúsculo ponto preto, que crescia milímetros a cada pulsação.
“Acho que eles tem que trocar de pedra quando essa coisinha preta fica grande demais…”
Yaci ficou um pouco para trás então deu uma leve corrida para alcançar seus companheiros viajantes.
Mais algumas horas passaram e o sol começou a se pôr. Tinham saído cedo, logo que o sol nasceu, e andaram até que ele se pôs. Os cavalos, os andarilhos e os guardas estavam na beira do limite, era hora de descansar.
— Vamos andar apenas mais um pouco, logo em frente haverá uma clareira com bastante espaço para descansarmos.
Assim que chegaram todos começaram a se ajudar para montar acampamento. Porém, nos últimos momentos do dia, quando o sol estava a segundos de desaparecer, um cheiro rançoso e nojento invadiu o nariz de todos.
Um cheiro de carniça, junto com sangue velho e podre, alguns segundos depois, urubus começaram a circundar a clareira.
Os mercenarios se olharam com preocupação, até que o mais quieto dos dois disse:
— Merda! Quão azarados vocês são?! — Disse para os andarilhos antes de perguntar ao comerciante. — Senhor contratante, onde você deixa a galinha preta?
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