Capítulo 007 — Brilho do Amanhecer
— Nova, você está vendo isso? — Marco perguntou, os olhos fixos nas carruagens enquanto ele dava mais uma olhada no mundo ao seu redor.
Ele estava ao lado do portão principal do castelo, observando Lou-reen coordenando a movimentação de carruagens sendo preparadas para a partida, enquanto o sol fraco da manhã iluminava o horizonte.
Homens e mulheres corriam de um lado para o outro, carregando caixas e afazeres para garantir que tudo estivesse pronto para a jornada. Cargas sendo amarradas com cordas grosseiras, madeira sendo usada para reforçar as construções, e o som de bigas e cavalos sendo preparados ecoava por toda a fortaleza.
Ele franziu a testa, não conseguindo evitar a comparação. De alguma forma, aquilo tudo parecia tão primitivo para ele, uma versão de um mundo que ele conhecia bem — mas que ao mesmo tempo estava tão distante.
A resposta de Nova veio com uma clareza que só ela poderia ter, direta em sua mente.
“Sim, Marco. Uma tecnologia rudimentar, certo?”
— Eu mal consigo acreditar, Nova. Isso… tudo isso. São apenas cordas, madeira e força física. Lembra de como as espaçonaves eram construídas? Metais resistentes, ligas compostas, sistemas de propulsão, circuitos quânticos… tudo isso para levantar uma nave inteira em direção ao espaço. E aqui estamos, puxando carruagens com cavalos.
Marco não conseguiu evitar o impulso de olhar para o céu, imaginando o que estaria acontecendo em seu próprio mundo, nas naves que ele um dia pilotou e nos céus que ele já cruzou.
Aqui, em Taeris, o mundo parecia ser feito de matéria bruta, de aço e ferro, de magia e ferroadas. Nada estava ao alcance de um toque de dedo ou a um comando de voz, como ele estava acostumado.
Marco se deu conta de que não havia mais volta. Ele estava fisicamente distante de tudo o que conhecia, em um mundo onde a magia parecia ser uma realidade tangível, onde o poder dos homens não vinha de avanços tecnológicos, mas de força e habilidade. Ele sentiu um arrepio na espinha ao pensar sobre a magia — algo que, no seu tempo, era apenas um conceito de ficção científica, agora se tornando parte de seu dia a dia. Ele podia não entender tudo ainda, mas estava se acostumando com a ideia de que, talvez, ali, fosse sua única chance de sobreviver.
Era um novo mundo. E Marco, ainda mais desconectado do que nunca, se perguntou até onde ele conseguiria ir nesse mundo estranho.
Luminor apareceu de repente, seu sorriso malicioso estampado no rosto enquanto caminhava em direção a Lou-reen. Ele a observou com uma expressão de provocação, os olhos brilhando com diversão.
— Olha só, Brilho do Amanhecer, dando ordens para os súditos, hein? — disse ele com um tom descomplicado, mas com aquele toque característico de desafio.
Lou-reen, sem sequer desviar o olhar para ele, continuou sua tarefa com a mesma precisão militar que o império exigia de seus generais. Ela sabia exatamente o que estava fazendo, e a interrupção de Luminor não era algo que a tiraria de seu foco. Mas, por um instante, sua expressão endureceu e ela o encarou com um olhar cortante, uma lâmina afiada na forma de um olhar que não deixava margem para interpretações.
— Eu sugiro que guarde suas piadas para depois, Luminor — respondeu ela com frieza, sem nem ao menos mudar sua postura. Ela se afastou, voltando a dar ordens aos soldados, claramente não disposta a perder tempo com provocações de alguém que era seu igual em poder, mas com um espírito travesso que ela preferia evitar em momentos como aquele.
— Brilho do Amanhecer? Por que esse apelido? – Marco perguntou, curioso.
— Oh, você ainda não sabe? Vou te contar. Aconteceu alguns anos atrás, quando Lou-reen tinha recém saído da Academia…
Fortaleza de Ga-el
A noite estava sombria e pesada sobre a fortaleza de Ga-El. O vento frio varria as ruas silenciosas, assobiando entre as torres de pedra e fazendo as tochas tremeluzirem. Em uma das salas de comunicações, iluminada apenas pelo brilho tênue de esferas de selenita dispostas sobre pedestais rúnicos, dois soldados bocejavam, tentando espantar o cansaço de mais uma noite monótona.
O silêncio foi quebrado por um zumbido agudo. Uma das esferas começou a vibrar e a brilhar com uma luz intensa e avermelhada. Um dos soldados se endireitou na cadeira, o coração acelerando.
— Temos uma chamada de emergência! — ele disse, já pegando a esfera e a colocando sobre uma mesa entalhada com runas específicas.
A luz pulsou e, imediatamente, a voz trêmula de um oficial ecoou pelo salão.
— Aqui é o Tenente Veyrad, falando da vila de Hildrake! Estamos sob ataque! Um batalhão de trolls emergiu da floresta de Malrath e já está forçando a muralha! Não vamos resistir sem reforços!
Os dois soldados trocaram olhares preocupados. Um deles correu até a porta e chamou um oficial superior, que entrou na sala com passos pesados e expressão severa. Ele se aproximou da mesa rúnica e falou com firmeza:
— Tenente Veyrad, segurem a linha! Um destacamento especial chegará antes do amanhecer. Reúnam todos os combatentes disponíveis e mantenham a defesa!
O brilho da esfera piscou antes que a transmissão fosse encerrada. O oficial virou-se imediatamente e gesticulou para os soldados.
— Toquem os sinos! A fortaleza precisa se preparar!
***
Um soldado correu pelos corredores de pedra, seus passos ecoando na escuridão. Chegando a uma porta, bateu com força.
— Tenente Lou-reen! Temos uma situação urgente!
Não precisou bater novamente. A porta se abriu com rapidez, e Lou-reen Egalyn apareceu à entrada já vestida com sua armadura de combate. Era uma jovem de 18 anos pronta para a batalha. Seus olhos afiados encararam o soldado.
— O que aconteceu?
— A vila de Hildrake está sob ataque! Um batalhão de trolls! O coronel ordenou que a senhora se apresente imediatamente no pátio!
Lou-reen não hesitou. Passou pelo soldado e seguiu a passos firmes pelos corredores, descendo as escadarias que levavam ao pátio central da fortaleza. Quando chegou, já havia movimentação. Oficiais gritavam ordens, cavaleiros selavam seus cavalos, e as fileiras de soldados se organizavam. O Coronel Orvas, um homem robusto com cicatrizes espalhadas pelo rosto, a esperava.
— Tenente, ainda estamos reunindo o batalhão — ele disse, a voz grave e experiente. — O destacamento sairá em breve.
Lou-reen apertou os punhos.
— Em breve? Eles precisam de nós agora!
— Eu entendo sua pressa, mas uma missão dessas exige preparação — Orvas disse, estreitando os olhos.
Mas Lou-reen já havia tomado sua decisão.
— Eu não posso esperar.
Antes que o coronel pudesse detê-la, ela girou nos calcanhares e disparou para fora do pátio.
— Lou-reen! — Orvas chamou, mas ela já estava longe.
***
A noite era um véu de sombras densas sobre os campos que separavam a Fortaleza Ga-El da vila de Hildrake. O vento cortava como lâminas geladas, chicoteando o rosto de Lou-reen enquanto ela corria, seus pés batendo firmes contra o solo. Não havia hesitação em seus passos, nem medo em seu coração. Havia apenas o objetivo.
Ela precisava chegar antes que fosse tarde demais.
O céu escuro acima dela estava vazio, sem lua ou estrelas para iluminar seu caminho. A única companhia era o som do próprio coração martelando no peito.
Sua mão voou até a espada embainhada em sua cintura. Com um movimento preciso, sacou a lâmina, sentindo o peso familiar na palma da mão.
A essência fluiu pelo seu corpo, respondendo ao chamado de sua vontade. Assim que tocou a espada, a lâmina foi consumida por fogo puro, ardente e furioso. Uma chama branca e dourada, intensa o suficiente para afastar as sombras ao seu redor.
A única luz em meio à noite.
Lou-reen acelerou. Seu corpo era um borrão contra a escuridão, sua espada flamejante uma estrela cadente rasgando os céus.
***
O clamor do aço contra aço, os gritos de dor e o rugido das criaturas preenchiam a noite como um cântico de guerra. Os soldados da vila de Hildrake estavam em suas últimas forças, escorados contra as muralhas, os corpos suados e feridos cobertos de poeira e sangue. Suas espadas estavam cegas de tanto cortar, seus braços tremiam de exaustão, mas eles resistiam.
Os trolls eram implacáveis. Criaturas enormes, de músculos inchados e pele grossa, regenerando-se tão rápido quanto eram feridos. Um só já seria um desafio. Um batalhão inteiro, atacando com coordenação anormal, era o tipo de ameaça que exigia um coronel do Império — e não havia nenhum ali.
Os soldados cerravam os dentes, lutando para manter os inimigos afastados, comprando tempo. O socorro viria ao amanhecer, diziam. Só precisavam aguentar até o amanhecer.
E então, a Leste, um brilho surgiu.
Um dos soldados ergueu o rosto, os olhos ardendo de cansaço, mas ainda esperançosos.
— O sol… — murmurou alguém.
Outro soldado sentiu o ânimo crescer. O reforço estava chegando. Eles só precisavam segurar um pouco mais.
Mas um jovem arqueiro, meio agachado atrás de uma barricada de escudos quebrados, franziu a testa. Algo estava errado.
— Espera… — ele sussurrou, sua mente girando em confusão.
Era cedo demais para o sol nascer.
E o amanhecer estava vindo rápido demais.
Foi então que perceberam.
Não era o sol.
Menos de um minuto depois, Lou-reen cruzou os céus como um cometa em chamas, sua lâmina flamejante riscando a noite com um brilho abrasador. O clarão alaranjado iluminou toda a vila sitiada, refletindo-se nos olhos arregalados dos soldados e nas presas afiadas dos trolls.
Por um breve instante, o tempo pareceu parar.
Então, ela caiu.
O impacto foi como um trovão. A terra tremeu sob seus pés, e o ar ao seu redor explodiu em calor. Sua espada desceu como um julgamento divino, rasgando a carne grossa de um troll gigante. A lâmina flamejante atravessou ossos e músculos com facilidade cruel, partindo a criatura ao meio antes que qualquer som pudesse escapar de sua garganta.
FWOOSH!
As chamas consumiram o monstro por completo. Nem mesmo sua regeneração maldita poderia salvá-lo.
O silêncio que se seguiu durou apenas um instante.
Lou-reen girou nos calcanhares, seus olhos afiados analisando o campo de batalha. Ela não perderia tempo. O cheiro de carne queimada e ferro quente enchia o ar. Havia mais para matar.
Um segundo troll rugiu, investindo contra ela com um tacape improvisado feito de uma árvore inteira.
Lou-reen avançou.
O chão rachou sob seus pés quando ela disparou para frente, sua espada cortando o ar com precisão mortal. O primeiro golpe arrancou um braço. O segundo, uma perna. O terceiro, a cabeça. Tudo aconteceu rápido demais para que a criatura reagisse. Seu corpo desabou, e o fogo tratou do resto.
Os soldados assistiam, boquiabertos. Aquilo não era uma humana.
Aquilo era um furacão de chamas, um vendaval de destruição, um exército em um único corpo.
A hesitação que os consumia se desfez.
Eles gritaram, empunharam suas armas com renovada ferocidade e lutaram.
***
O estrondo das botas contra o solo ecoava pela estrada de terra. O destacamento imperial avançava com urgência, armas em punho, rostos duros pela expectativa do combate.
O Coronel Orvas liderava a investida, seus olhos varrendo o horizonte à procura do pior cenário possível. Ele havia marchado rápido, mas ainda assim temia que tivessem chegado tarde demais.
A vila aparecia diante deles, cercada por um rastro de destruição. Mas, em vez de caos e gritos de guerra, havia silêncio.
— Rápido! — ele ordenou, e os soldados correram para a entrada.
Eles esperavam ver o cerco dos trolls ainda em andamento. Esperavam encontrar as muralhas ruindo, civis aterrorizados, guerreiros feridos tentando resistir.
Mas o que encontraram… foi algo muito diferente.
Corpos carbonizados de trolls cobriam o campo. Havia pilhas deles, suas formas grotescas retorcidas pelo calor intenso. O cheiro de carne queimada impregnava o ar. Nenhum inimigo estava vivo.
E no centro da vila, Lou-reen estava de pé.
A espada dela ainda queimava, chamas dançando ao redor da lâmina. Seu corpo estava ileso, sua respiração pesada, mas controlada. Sozinha, ela havia enfrentado um batalhão inteiro.
Orvas desacelerou os passos, os olhos arregalados. Por um momento, ele sequer conseguiu sentir raiva pelo fato de ela ter se adiantado sozinha.
Os soldados do destacamento se entreolharam em choque.
Lou-reen, por sua vez, não disse nada. Não celebrou. Apenas girou nos calcanhares e embainhou a espada. As chamas sumiram como se nunca tivessem existido.
***
Luminor concluiu a história com um sorriso divertido, mas havia um respeito genuíno em sua voz:
— E foi assim que ela se tornou Coronel do Império, imediatamente após isso.
Marco absorveu a história em silêncio. Era algo quase impossível de acreditar, mas, depois do que ele havia visto com os próprios olhos — e vivido na noite anterior —, sabia que Taeris era um lugar onde “impossível” não significava nada.
Antes que ele pudesse comentar, Lou-reen retornou, caminhando com sua postura firme de sempre. Atrás dela, a Tenente Faey conduzia os dois criminosos da noite anterior algemados em direção a uma carroça-cela. Os dois homens tinham olhares abatidos, sem qualquer sinal da arrogância da noite anterior.
Lou-reen parou ao lado de Marco e Luminor.
— Estamos prontos para partir.
Luminor soltou um suspiro exagerado e deu um tapinha no ombro de Marco.
— Ah, já vai, então? Bem, antes que você suma de vez…
Ele puxou algo do bolso e estendeu para Marco: uma esfera de selenita.
— Me chame qualquer dia desses quando estiver próximo da Torre. — O sorriso dele se alargou. — Eu conheço as melhores festas. Na verdade… eu sou o anfitrião de todas as boas.
O brilho malicioso no olhar de Luminor deixou claro que suas festas provavelmente eram bem longe das formalidades do Império.
Antes que Marco pudesse responder, Luminor simplesmente desapareceu.
Não houve som, nem vento, nada. Apenas um borrão sutil no ar onde ele estivera um instante antes. Rápido demais, impossível para um humano.
Marco piscou, surpreso, sentindo um arrepio subir pela espinha. Ele sequer conseguiu acompanhar o movimento.
Lou-reen, no entanto, não parecia impressionada. Apenas revirou os olhos e seguiu em frente.
— Vamos. Temos uma longa viagem até Yhe-For.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.