O Vulto Negro corria pelo Deserto de Sonata, seus passos levantando redemoinhos de areia que se dispersavam no ar como uma névoa vermelha e sufocante. A cada avanço, a paisagem tremia e, atraídas por seu rastro, Centopeias Bestiais rompiam a superfície do solo, emergindo com mandíbulas abertas e olhos famintos. Mas tudo o que receberam foram os cortes impiedosos da lâmina óssea em suas mãos.

    Antes, encarar aquela horda teria sido puro suicídio; agora, porém, com as forças renovadas, Jasper deixou o instinto falar mais alto, e não conteve o ímpeto de avançar. A vontade de testar sua nova arma queimava em suas veias, e cada golpe era uma liberação brutal dessa fúria contida.

    Em poucos segundos, dezenas de corpos jaziam espalhados pela areia vermelha, tingindo-a com o contraste vívido de seu sangue esverdeado.

    Jasper, por sua vez, finalizava o massacre com precisão letal, fatiando a última criatura viva em três partes, sua lâmina rasgando o revestimento orgânico e a carne com fluidez implacável,

    Logo após o golpe final, algo mudou, sutil, quase imperceptível. Um som quebrou o silêncio: o ruído leve de pedrinhas caindo no chão.

    Ele se virou rapidamente e avistou uma rocha danificada. Mas aquilo não parecia natural, tampouco causado pelas centopeias. Três cortes precisos marcavam sua superfície, idênticos aos que ele acabara de executar

    O que é isso? Será que… essa espada tem algum poder especial?

    Intrigado, Jasper repetiu os movimentos de corte, variando força, velocidade e ângulo, tentando desesperadamente entender o que havia acontecido. Mas, por mais que tentasse, a rocha permanecia intacta.

    — É, parece que não… o que deve estar faltando? — disse, desapontado, mas ainda intrigado.

    Ao analisar as marcas, concentrou-se na sensação que tivera ao realizar o ataque anterior. Uma onda de clareza percorreu sua mente: o segredo não estava nos movimentos em si, mas na característica única de seu ‘Sentido do Vento’.

    Alinhando-se com a rocha a cerca de quinze metros, o limite de sua percepção especial, onde podia sentir até mínimas alterações, desferiu um corte vertical. A espada não tocou a pedra, mas ainda assim ela se partiu ao meio sem resistência

    O responsável era o vento, moldado em uma lâmina invisível.

    Com movimentos precisos, Jasper manipulava — ainda que de forma inconsciente — a pressão e a velocidade das moléculas de ar ao seu redor, comprimindo-as em uma corrente cortante.

    — Entendi… — murmurou, estreitando os olhos. — Pensando bem, lembro de ter feito algo parecido contra o Caçador de Ossos…

    Imagens vieram à mente: a barreira giratória de vento que surgira instintivamente em um momento de puro desespero.

    Na época, não havia dado a devida atenção a esse acontecimento, mas agora percebia que havia algo além por trás daquilo, algo que, enfim, começava a despertar.

    Sentindo uma empolgação crescente, começou a desferir cortes de vento à vontade, como uma criança que recebe seu primeiro presente. Momentos assim eram tão raros para ele que tinha certeza de que nunca esqueceria essa experiência.

    Infelizmente, aquilo não podia durar para sempre. Ao terminar de partir algumas outras rochas com suas lâminas de ar, sentiu uma tontura imediata.

    Diferente do estado energético de antes, agora se sentia repentinamente exausto, como se tivesse voltado a alguns dias atrás, quando sobrevivia constantemente entre a vida e a morte.

    Deduzindo o motivo daquela mudança, Jasper decidiu usar sua nova habilidade apenas quando fosse realmente necessário.

    Afinal, se perdesse as forças durante uma luta, o resultado poderia ser igual ao de seu confronto com o Caçador de Ossos e, se tivesse azar, o inimigo talvez não demonstrasse tanta piedade quanto ele.

    Olhando ao redor, para os inúmeros cadáveres das criaturas mortas, o Vulto Negro sabia que teria de retomar seu velho hábito de devorar Bestiais para se recuperar. Sem desperdiçar um minuto sequer, avançou faminto na direção das carcaças.

    Tendo experimentado aquelas frutas exóticas no dia anterior, Jasper agora sentia ainda mais dificuldade em digerir a carne dura das centopeias, que, mesmo recém-abatidas, pareciam ter corpos naturalmente podres, conferindo uma textura repulsiva aos seus tecidos espessos.

    — No fim… não importa o gosto — sussurrou para si mesmo — Eu ainda tenho que continuar vivo.

    Foram necessários apenas alguns minutos para que Jasper terminasse de se alimentar de todas as criaturas.

    Sentindo-se menos exausto, estava pronto para continuar sua caminhada, deixando para trás os cristais escuros que não tinham utilidade para ele. No entanto, havia quem visse valor naqueles objetos desprezados pelo Vulto Negro.

    Do interior de uma grande formação rochosa, um bando de abutres surgiu, perfurando a pedra com seus bicos pontiagudos, que funcionavam como brocas devido ao movimento giratório que faziam ao voar.

    Jasper sentiu seus instintos se aguçarem ao presenciar aqueles monstros, com quase três metros de envergadura, avançando em sua direção.

    Pronto para mais uma luta sanguinária contra Undeads, Jasper empunhou sua espada de ossos e aguardou com atenção a aproximação dos abutres.

    Assim que o primeiro alvo entrou em sua zona de percepção especial, ele usou sua habilidade recém-adquirida para cortar uma das asas do inimigo com uma lâmina de vento.

    No fim, não consegui conter a empolgação e usei isso novamente… pelo menos estou conseguindo mais alimento no processo.

    A ave de penas escuras despencou contra o solo avermelhado, soltando um assobio triste, um apelo para que seus companheiros a ajudassem.

    Mas, ao contrário, todos os outros do bando ignoraram tanto o aliado ferido quanto o Vulto Negro, passando direto por eles, com os olhos vidrados nos cristais escuros das centopeias gigantes.

    Cada abutre abocanhou um único cristal e iniciou a fuga veloz, gravada em seus instintos, usando os bicos para afundar na areia do deserto sem deixar rastros ou deformidades ao adentrarem o subsolo.

    Enquanto isso, o companheiro caído permanecia para trás, debatendo-se sem equilíbrio devido à perda do seu membro mais importante.

    Jasper encarava toda aquela cena com um olhar vazio. A visão da criatura sofrendo despertou certa empatia no menino; porém, ele também sabia que, se a deixasse escapar, perderia um alimento escasso.

    Está tudo bem… não há nada de errado no que estou fazendo. Eu sou o caçador, e ele, a presa. Em outra ocasião, poderia ser eu no lugar desse Bestial.

    Aproximando-se do abutre ferido, que naquele momento tentava alcançar a metade que restara de um cristal escuro danificado, ergueu a lâmina opaca. Seria melhor matá-lo de uma vez, em vez de prolongar seu sofrimento.

    Nos últimos instantes antes de a lâmina óssea cortar a cabeça da ave, Jasper notou o olhar desistente que ela lançava em sua direção, como se seu destino já estivesse selado.

    O leve brilho prateado refletido da cruz que carregava no pescoço o fez hesitar, um lembrete sutil de que, por debaixo daquela armadura, ainda existia um garoto.

    O animal fechou os olhos, esperando a dor e o desconforto, mas eles nunca chegaram. Apenas o som de um baque seco e da areia sendo levada pelo vento, seguido de passos se distanciando… e, pouco tempo depois, retornando.

    Ao reabrir os olhos, a criatura viu o garoto com o cristal nas mãos, colocando-o ao seu lado com cautela. Sua primeira reação foi devorar o objeto às pressas, absorvendo a energia residual contida nele.

    Jasper assistiu surpreso ao corpo do abutre reagir à radiação do cristal, regenerando os músculos e tecidos cortados e gerando uma asa completamente nova e funcional em uma velocidade anormal.

    O bestial estendeu o par de asas, recuperando o brilho vívido nos olhos e, preparando-se para alçar voo, olhou novamente para o Vulto Negro, emitindo um grunhido sibilante antes de arrastar sua antiga asa até ele, como pagamento por ter sido poupado.

    — Bem… obrigado, eu acho — agradeceu, segurando o pedaço da asa quebrada e refletindo sobre suas ações anteriores.

    Jasper observou o ponto onde o abutre desaparecera, sentindo algo próximo da satisfação. Mesmo que, à primeira vista, não houvesse nenhum benefício no que acabara de fazer, ainda assim conseguira obter um prêmio com aquilo.

    Porém, isso também lhe trouxe algumas lembranças recentes sobre um conhecido peculiar, que reacenderam suas paranoias.

    O que você pretendia ganhar me ajudando, Caçador de Ossos? refletiu, encarando a espada opaca em suas mãos.

    No momento, ele não estava com vontade de descobrir na prática o motivo, preferindo focar em seu objetivo final que, de certa forma, também não tinha explicação, além da intuição. Era como se fosse guiado apenas pelas estrelas.

    Adicionando a asa de abutre às costas de sua armadura orgânica, voltou a correr na direção do que seria a saída do Deserto de Sonata, sem saber que o destino planejava mantê-lo ali por muito mais tempo do que esperava.

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