Capítulo 68 - Cupido bêbado e sem direção
Depois da declaração de Vento Leste, o que veio foi tão monumental que virou lenda na Televisão Brasileira: ‘O Grande Silêncio de 2030’: um fenômeno tão raro que meteorologistas confundiram com uma anomalia atmosférica.
O salão inteiro paralisou. Parecia que alguém tinha anunciado que o governo finalmente ia taxar o ar. Nem o ventilador de teto teve coragem de continuar girando.
Todos tinham virado para Vento Leste com a descrença de um sistema de radar detectando um OVNI.
A plateia do cassino congelou inteira, presa entre o espanto e a certeza de que aquilo não era coisa de Deus: houve quem deixasse cair o copo de whisky, criando uma sinfonia de vidro quebrado; outros que esqueceram como piscar; e uma senhora idosa que começou a se benzer enquanto murmurava algo sobre “fim dos tempos”.
Na escola, onde a transmissão ao vivo estava sendo exibida no telão da quadra, os estudantes pareciam ter sido atingidos por um raio de incredulidade.
E o pior: a própria escola também aparecia nas imagens, filmada de um drone ao vivo tal qual parte da programação de um reality. Alguns riram nervosamente, outros cobriram o rosto com as mãos, sem saber de que jeito explicariam para a família as festas do pijama e as noites em que esse amigo ficou jogando videogame até de madrugada em suas casas.
Na plateia, a professora Nimsay levou a mão ao peito, afogada em um drama interno que podia ser confundido com um infarto legítimo, tudo isso ao assistir, em tempo real, o jovem Maximus sucumbir a mais uma ameaça afetiva.
A mãe de Quintus, ainda de boca aberta desde a revelação sobre Dona Jabá, conseguiu abrir ainda mais a boca. Um feito que desafiava as leis da anatomia facial. O pai Paulo Costa parou de esfregar os olhos e começou a esfregar as têmporas, tentando, em vão, apagar qualquer vestígio da última hora de caos.
E a transmissão ainda mostrou Sextus Maximus com um sorrisinho torto e o brilho nos olhos de quem pensava: “Esse desgraçado vai me render terapia por mais seis anos.”
O foco então abandonou o caos na plateia e retornou para Dawana, ou quase. A imagem mostrava Vento Leste emoldurado pela tragédia, mas a voz clara e excitada que se ouvia era dela, assumindo o controle da narrativa.
— Você quer… o quê? — Dawana perguntou, mas desta vez com o entusiasmo legítimo, pois a audiência estava explodindo, e ela podia praticamente ouvir o som dos patrocinadores ligando desesperadamente para comprar espaços publicitários.
Vento Leste tirou a máscara de gato com a solenidade de quem remove uma venda dos olhos para encarar a realidade. Seu rosto estava vermelho. Uma mistura equilibrada de embriaguez, determinação e a coragem líquida que só duas garrafas de whisky barato conseguem proporcionar.
— Quero me candidatar para conquistar o Quintus! — ele anunciou, estendendo os braços, feito alguém abraçando o próprio destino — Afinal, se ele consegue ter casos com mulheres mais velhas, terapeutas suspeitos e até cinzas cremadas, por que não com o melhor amigo que já quebrou vitrines por ele?
A plateia ainda digeria o choque, mas foi o olhar congelado do jovem Maximus que denunciou o colapso interno. Ele respirou fundo, em um esforço absurdo, tentando conciliar oxigênio com um mínimo de sanidade. Só depois de alguns segundos, ele conseguiu abrir a boca.
— Vento Leste, não… — soltou Quintus, já reconhecendo o mesmo olhar vidrado da vez em que o amigo tentou xavecar um hidrante — Ficou louco?
— Nunca estive melhor! Claro que… o principal motivo é pagar a conta, obviamente. — o jovem com fantasia de gato declarou, erguendo a garrafa vazia — Mas o outro motivo… — silenciou por um instante, virou-se lentamente para seu crush em rede nacional e completou — É resgatar meu melhor amigo da cova profunda chamado amor.
A imagem de Quintus, paralisado de um jeito tão absurdo que parecia ter sido atingido por uma flechada de cupido, feita de forma improvisada com uma colher de pedreiro, preencheu as telas.
Mas quem quebrou o silêncio foi Dawana, verbalizando o que todos os cientistas do planeta ainda não conseguiram descrever.
— Salvar… do amor? — Dawana repetiu, com o tom de quem acabara de descobrir que existia uma nova categoria de loucura que ainda não tinha sido catalogada pela ciência.
— O amor é uma roubada! — proclamou Vento Leste, subindo na cadeira e vomitando tudo de uma vez, com a eloquência de quem guarda ressentimento desde o ensino fundamental.
— Foi um amor por uma boneca fria… — continuou — Insensível, sem nenhuma palavra ou gesto de carinho que me fez beber. Uma boneca que nem sequer suspirava quando eu cantava serenatas embaixo da janela do meu próprio quarto! Que nem sequer gemia quando eu sussurrava poesias em seu ouvido de plástico! O destino de todo homem emocionado é sofrer, ser humilhado, ter que esconder o rosto e beber pelo resto da vida enquanto ela, murcha lentamente no armário, me olhando com aquela expressão de julgamento eterno!
O silêncio que se seguiu foi tão profundo que era possível ouvir as máquinas caça-níqueis funcionando no andar de baixo, e também um casal de idosos discutindo sobre o preço do bingo em uma mesa afastada da plateia e do palco improvisado.
Sem sequer descer da cadeira, Vento Leste aproveitou o impacto dramático do próprio discurso e retomou a fala:
— E hoje, bebendo menos do que de costume, eu pensei… — continuou o jovem com fantasia de gato, ignorando os olhares coletivos — Talvez o melhor par para um homem seja outro homem! Podemos sair juntos pra jogar futebol, passar o fim de semana no videogame, conversar sobre mangá, anime, filme de super-herói… E o melhor de tudo: quando um fizer algo idiota, o outro pode dar um tapa na nuca e seguir a vida. Ou melhor ainda, rir e fazer algo ainda mais estúpido!
Entre olhares confusos e tossidas discretas, uma batalha interna de incredulidade fervia na garganta de Quintus. Mesmo reunindo coragem, o que saiu de sua boca foi algo descoordenado. Mais reflexo do espanto do que uma intenção clara.
— Vento Leste… — o jovem Maximus tentou interromper, mas a voz saiu mais aguda que o normal, soando feito um grito silencioso, sendo abafado por seu próprio espanto.
O nome de seu amigo saiu na forma de um reflexo, a única coisa que sua mente encontrou no meio do caos crescente. A cada nova frase, o que parecia uma piada boba ganhava contornos desconfortavelmente reais.
Alheio às reações humanas básicas de seu crush, sejam elas choque, vergonha ou vontade de fugir, Vento Leste seguiu a pregação:
— Tudo isso sem ter alguém grudado no seu cangote, temperamental, imprevisível, e com o humor de um gato possuído! Sem sermão às três da manhã porque você dormiu no mesmo planeta que a ex, sem chantagem emocional em grupo de WhatsApp, sem crises existenciais porque você não comentou o esmalte novo! Homens não te fazem prometer que vão morrer velhinhos juntos depois de um beijo de três semanas. Homens não menstruam, não choram vendo dorama, e nunca, nunca perguntam: “No que você tá pensando?” bem na única hora em que você, de fato, não tá pensando em absolutamente nada.
Quintus encarou o amigo com o olhar de quem acabou de ser atropelado por um caminhão de revelações e ainda estava tentando entender a placa. Sua boca abriu e fechou duas vezes, numa tentativa inútil de pescar uma resposta no ar, mas só conseguiu puxar a pergunta mais ridiculamente lógica que poderia surgir naquele momento:
— Vento Leste… você acabou de me pedir em namoro?
— Exato! — o jovem com fantasia de gato se aproximou perigosamente, tropeçando nos próprios pés e quase derrubando a mesa de poker — Pensa bem: nós já nos conhecemos há anos, já sabemos todas as manias irritantes um do outro, não temos que fingir ser pessoas melhores do que somos… Eu já te vi vomitar em três formaturas diferentes!
Instintivamente, Quintus recuou um passo, feito quem tenta fugir de uma possessão amorosa, e soltou a única arma que tinha: a fala.
— Isso não é exatamente um argumento romântico!
A resposta do jovem Maximus mal havia ecoado, e Vento Leste já retomava o ataque, num ímpeto de quem não podia permitir que o amor, ou o delírio, fosse interrompido por lógica.
— É o argumento MAIS romântico! — o jovem com fantasia de gato insistiu, gesticulando com tanto entusiasmo que quase acertou um garçom — Relacionamento baseado na aceitação mútua da mediocridade! Sem expectativas irreais! Sem pressão social para se endividar com casamento e filhos! Só dois fracassados se apoiando mutuamente feito dois bêbados segurando um no outro para não cair!
Forjada por madrugadas inteiras de Big Brother e eliminatórias de reality rural, Dawana entendeu que o momento pedia interferência. Preferencialmente com bordão.
— Uma química homoafetiva à base de trauma mútuo? Amo! Isso aqui é entretenimento afetivo com selo de aprovação do sofá da família brasileira!
— O quê?! — explodiu Quintus, se apressando em desmentir — Química homoafetiva coisa nenhuma! Somos só dois amigos desesperados!
Vento Leste aproveitou a deixa, com a rapidez de quem vê uma porta aberta:
— Desesperados o suficiente para tentar algo novo! — piscou, dando um passo à frente com aquele sorriso de predador em dia de caça.
O jovem Maximus se apressou em tentar desfazer a impressão que ele mesmo acabara de causar:
— NÃO! NÃO ESTOU CONCORDANDO COM NADA DISSO. — gritou Quintus, mas o cassino só respondeu com o som indiferente das fichas caindo.
Dawana bateu palmas delicadamente, com o capricho de quem finaliza um laço… em volta do pescoço da vítima.
— Adorei a primeira candidatura! Agora, vamos descobrir quem mais veio atrás do coração, e talvez da paciência, do nosso protagonista.
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