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    O silêncio que se seguiu foi daqueles carregados de significado. Tipo quando uma mulher pergunta ‘tem algo que você quer me contar?’ e você sabe que, seja lá o que for, ela já sabe. Quintus podia sentir as câmeras focalizando cada micro-expressão de pânico em seu rosto, provavelmente já escolhendo qual ia virar meme.

    — Outras pessoas? — ele questionou, no tom de quem acabou de descobrir que o médico quer ‘conversar’ após os exames.

    A promessa do programa de que havia outras candidatas parecia tão confiável quanto a chance de sua mãe admitir que errou. Só podia ser pegadinha cósmica. Tinha que ser. 

    Porque aceitar que, num planeta com 8 bilhões de pessoas, mais de uma parou, olhou pra ele e pensou “esse aí, esse é o cara”, era simplesmente absurdo. Desafiava todas as leis da probabilidade: inclusive as que ele fingiu entender na escola. Mesmo assim, uma parte dele, a mesma que já se apaixonou por um elogio genérico no Instagram e considerou um “oi” uma declaração de amor, quis ouvir mais.

    Quintus arregalou os olhos de uma maneira que o diretor do programa provavelmente já estava mentalmente editando em slow motion com música dramática. 

    Depois da primeira candidata… Que, vamos ser honestos, foi basicamente um episódio de “Catfish: Bostil” ao vivo, com seu amigo numa fantasia questionável declarando amor não-correspondido ao vivo, suas expectativas tinham se realocado para território mais seguro: nível ‘pelo menos vai ser constrangedor para todos igualmente’.

    Mas lá estava ela novamente, aquela esperança teimosa que nem barata: impossível de matar completamente. A mesma que faz a gente apertar botão de elevador várias vezes, acreditar em horóscopo, comprar na Black Friday e achar que “desta vez vai ser diferente” quando volta pro ex.

    Ele engoliu seco, fazendo um ruído que ecoou pelo estúdio tal qual um grito de gaivota constipada:

    — Quantas outras pessoas?

    Até aquele instante, o público só via imagens fechadas de Dawana: enquadramentos tão próximos que indicavam que eram ordens do diretor do programa ou mesmo de Crimson. 

    Mas então, sem aviso, a câmera deu um zoom-out dramático, revelando o palco real de sua transmissão: o convés de um iate colossal, ancorado em algum mar digno de editoração de revista de luxo. 

    Ela parecia uma deusa dos reality shows modernos. Estava rodeada por um harém de modelos masculinos que competiam entre si para servi-la: um massageava seus pés com óleo corporal, outro preparava uma caipirinha, e o terceiro fazia número, bonito o suficiente pra estar ali sem fazer nada.

    Ela tinha tirado o seu terninho e usava óculos de sol Versace e um biquíni talvez para deixar os telespectadores mais confortáveis. Com um sorriso que prometia destruição emocional em escala industrial, ela se dirigiu às câmeras:

    — Bem… — Havia um prazer sádico em Dawana, tão evidente quanto o de alguém revendo fotos de ex-namorados durante uma cerimônia de casamento — Depois de analisarmos toda sua vida amorosa com a precisão de um detetive obsessivo, convidamos algumas… credoras sentimentais. E elas trouxeram comprovantes. E pelos deuses gregos, que comprovantes deliciosos!

    O telão se acendeu novamente, e revelou Dona Jabá agora não só virtualmente, mas marchando em direção ao palco com a postura de quem acabou de declarar estado de greve. 

    Ela usava um terno vermelho-sindical com ombreiras de general caribenho e uma blusa com o botão superior implorando por socorro. No peito, em letras góticas, reluzia a tatuagem “Proletários do mundo, uni-vos!” piscava entre os vários colares de ouro tiradas de minas revolucionárias.

    A mulher sentou-se numa das seis poltronas com o impacto de uma geladeira sendo encaixada num elevador pequeno. Foi só então que Quintus percebeu que todas as cadeiras estavam sendo preenchidas… inclusive aquela ocupada por Vento Leste, que parecia pronto pra debater o amor em sabatina nacional.

    O jovem Maximus sentiu seus joelhos amolecerem. Primeiro, tentou se fazer invisível encolhendo-se igual a um tatu-bola, depois começou a recuar lentamente, como se estivesse lidando com um animal selvagem. Seus passos se tornaram cada vez mais apressados até que ele simplesmente virou as costas e disparou em direção à saída.

    Dois seguranças do tamanho de geladeiras industriais intervieram e o interceptaram antes que pudesse atravessar a porta. Levaram-no de volta ao palco, peso morto repartido entre dois braços alheios, enquanto esperneava no ar em plena birra infantil.

    — EU SOU CIDADÃO BRASILEIRO! TENHO DIREITO À FUGA! — berrava Quintus, sendo reposicionado no centro do palco — ISSO É CONTRA A CONSTITUIÇÃO! EU QUERO MEUS DIREITOS! EU QUERO MINHA MÃÃÃE!

    Enquanto era carregado tal qual um saco de confusão e gritos, uma única pergunta ecoava na mente do jovem Maximus com o peso de uma crise existencial mal formulada:

    “Espera… isso aqui é um reality ou um teste de resistência? Eu vou precisar de um guindaste emocional para lidar com essa lembrança, pensou, já com tremores no lábio inferior.”

    — Ela de novo, não! Isso tá errado. Eu não posso ter namorado nem namorar uma mulher que parece a mistura da Rita Cadillac com um transformador da Light!

    Dona Jabá, impassível, cruzou as pernas com o porte de uma empilhadeira hidráulica. Acenou para a câmera com a leveza de um guindaste testando limite de carga e com a calma de quem já escutou ofensas piores ao liderar greves de 6 meses em universidades públicas e achou graça.

    — Eu voltei pra resgatar o único homem que já fez piquete no meu coração! Meu Lenin de geladeira duplex, meu Che Guevara de três corações e zero juízo! E se quiser fazer revolução, começa por mim. Agora, se for pra me xingar de novo, que seja no pé do ouvido… com cartaz e megafone. Você, eu deixo ocupar com reintegração de posse e tudo.

    Quintus gesticulou freneticamente, espantando o ar à sua volta numa tentativa desesperada de dispersar moscas ideológicas invisíveis.

    — EU NÃO SOU SEU REVOLUCIONÁRIO COMUNISTA! — gritou, sua voz rachando igual a vidro sendo pisoteado — E muito menos seu Che Guevara!

    Dona Jabá acenou com a mão num gesto largo, típico de quem arquiva objeções em nome da ordem da pauta. Ela sorriu com a paciência de quem já explicou os direitos trabalhistas para milhares de pessoas. 

    — Claro que é, querido! — ela riu, produzindo um som que lembrava uma britadeira funcionando dentro de um túnel — Você disse que ia voltar fantasiado de presidente Macron para me levar numa greve do amor, mas nunca apareceu. Isso é quebra de promessa romântica com agravante de abandono ideológico!

    Quintus coçou a cabeça com tanta força que pareceu estar tentando arrancar os neurônios diretamente do couro cabeludo. Ele olhava para Dona Jabá e nem sabia por onde começar. 

    — Quebra de promessa romântica? — repetiu, incrédulo, feito quem acabou de descobrir que horóscopo não é ciência.

    A transmissão voltou a mostrar a apresentadora. Ela de seu iate fez um sinal para um de seus modelos, que imediatamente lhe trouxe uma pasta de documentos. Um de seus escravos masculinos segurou o microfone em posição perfeita enquanto ela consultava seus documentos. 

    — Apesar desse livro não valer mais nada aqui no bostil… Segundo o Código Civil — Dawana explicou educadamente, segurando um documento — Promessas de cunho afetivo podem ser juridicamente cobradas se causarem dano moral à parte lesada. E temos aqui não apenas o laudo psicológico, mas também o relatório de impacto social na comunidade sindical.

    Dona Jabá colocou a mão no peito como se estivesse prestando um juramento solene à bandeira vermelha do proletariado. Seus colares balançaram tal qual medalhas de honra ao mérito sindical.

    — Eu tive que fazer uma assembleia de emergência! — a velha sindicalista declarou dramaticamente, batendo o punho no ar, no melhor estilo de discurso da UNE — Os companheiros criaram uma comissão especial: “Apoio às Vítimas de Golpe Romântico Burguês”!

    As câmeras voltaram a captar o Quintus, e ele apontou para si mesmo, num esforço quase desesperado de provar para si mesmo que ainda existia e não era um surto coletivo. Ele gesticulou e gotas de suor começaram a se formar em sua testa.

    — Eu não prometi nada para ninguém! — protestou, com a convicção de alguém que acaba de descobrir que foi julgado à revelia.

    O jovem Maximus ficou branco igual a papel, depois esverdeado feito alface murcha, e finalmente roxo como uma berinjela em estado de decomposição avançada.

    — Isso… isso não é possível… — tentou dizer, procurando uma porta de saída que claramente havia sido soldada desde o início do programa.

    Dawana fez um gesto imperioso e um de seus modelos imediatamente lhe trouxe um leque de penas de avestruz, enquanto outro massageava seus ombros.

    — É possível sim. — confirmou — Especialmente considerando que você estava sob efeito de substâncias controladas fornecidas pelo Dr. Zaratustra. O que nos leva à nossa próxima surpresa, que fará a anterior parecer um conto de fadas. E pelo amor de todos os deuses do Olimpo, que surpresa diabólica!

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