— Galinha preta? — questionou Yaci.

    Mas ninguém teve tempo de responder. O tempo parecia acelerar, para que seu encontro com aquele visitante fosse o mais rápido possível.

    — Merda! Realmente estamos sendo visitados por um encourado? Não era uma lenda ou uma historinha assustadora?! — gritou o mercenário mais jovem.

    Se recusando a acreditar que poderia ser tão azarado, para ser visitado por um tipo de entidade tão rara quanto sacis.

    — Rezem para seus deuses! Para que o encourado aceite a galinha preta e vá embora pacificamente. — gritou o mercenário de aparência mais velha e experiente, sua pele retinta, ficou cinza por causa do sangue que fugiu do seu rosto.

    “Encou-que?!” pensou Yaci.

    Devagar, se aproximou de Hilda e seu avô Pietro. Seus olhos focados observavam com cuidado o ambiente a sua volta, procurando sinais de perigo, sua mente se preparando para o pior. 

    Os mercenários impacientes observavam o comerciante caminhar pelo acampamento, o homem tremia, quase soltando a galinha preta viva que carregava nos braços. 

    — Algum de vocês sabem que loucura é essa? — perguntou Yaci.

    Ambos balançaram a cabeça negando. 

    “Sério? A Hilda dá pra perdoar, mas senhor é velho, não podia ser sábio também?!”

    Ao olhar em volta, Yaci finalmente entendeu o motivo de tanto pânico.

    Ao redor da clareira, uma névoa vermelha, pestilenta e asquerosa os rodeava, se aproximando à medida que a noite se tornava mais profunda, ela infiltrou cada canto cercando os viajantes em uma esfera cada vez menor.

    A névoa sangrenta era densa e carregava um odor tão purulento que Yaci tinha dúvidas se era física, ou se existia além do mundano, visível apenas através do seus olhos.

    Um som oco de algo se quebrando ecoou, ao virar para o lado, ela pôde ver a galinha recém-morta, com o pescoço torcido. Os três homens desesperados colocaram seu corpo em uma grande tijela, antes de deixá-la perto do limiar da névoa, ali, não demorou até a galinha desaparecer perdida para sempre além daquela cortina de morte. 

    Apenas uma pequena ilha de terra ainda não havia sido consumida pela névoa.

    — Sentem-se! Fechem os olhos com força, não abram até que o frio passe! — Gritou um dos guardas.

    Yaci obedeceu, não sabendo o que fazer além de aceitar que não tinha como escapar daquela situação. 

    Quando a noite sem lua atingiu seu apogeu, estalos e ranhuras ecoaram com o sibilar do vento frio e os passos ecoando à distância pela mata. Se aproximando a cada segundo

    Yaci mantinha os olhos bem fechados, como a instruíram a fazer, mas ela ouviu. As árvores, plantas, arbustos e até mesmo a grama se encolhiam a cada passo que retumbava através da névoa. A natureza estremecia de medo.

    Os passos se aproximaram. O som ríspido das botas de couro arrastando pelo chão, o tilintar de metal das fivelas de suas roupas, formavam um réquiem para tudo que vive. Cada passo era uma sinfonia de medo, o conhecimento tácito de que em um segundo, depois que todos abrissem os olhos, um deles poderia ser só um cadáver, seco, sem sangue e órgãos, uma casca de possibilidades que nunca serão.

    Então o mundo se calou, mas Yaci sabia, que O Encourado estava ao seu lado. Conseguia sentir o peso do olhar dele. Ele estava lá, bastava apenas esperar. Era o que devia fazer, mas não conseguiu, o sussurro daquele ser, carregando seu bafo fétido, a língua morta que viajava no ar, espalhando significados esquecidos que faziam seus ossos gelarem. Ela tinha que olhar! Só uma espiadinha… Por um momento, novamente encarar a morte nos olhos. 

    Ela aos poucos abriu suas pálpebras, enxergando de pouco em pouco aquele mundo vermelho e borrado, até que então ela distinguiu algo.

    Ali, a alguns menos de um metro dela, estavam as botas do Encourado. Botas feitas de pele humana curtida, as bordas do seu casaco, feito do mesmo material, arrastavam no chão. 

    Mesmo parado, seu corpo era errático. Seus órgãos e músculos presos pelas roupas e acessórios de couro, dolorosamente costuradas entre si, não por linhas, mas por tripas de diferentes animais, remendadas e unidas por nós profanos que ligavam toda a morte contida naqueles cadáveres em uma criatura viva.

    O mundo de Yaci não o alcançava, da mesma forma como o capa preta.

    Ela o observou paralisada, com um misto de terror e fascínio.

    O encourado sabia disso, mas só a observou de volta, tendo certeza de que seus olhos nunca se cruzassem.

    O ser miserável à frente de Yaci murmurou algumas palavras para ela, sua voz era medonha, como o grito agonizante de mil homens combinados abafados por uma rouquidão profunda. Mas seu tom não era outro, senão de pena.

    Yaci não falava aquela língua, mas de alguma forma, os significados daquele murmúrio a alcançaram.

    — Que os deuses tenham piedade.

    Muito mais foi dito, mas estavam além da pequena frase que foi captada pela mente da menina.

    Após isso, o Encourado caminhou até a galinha em silêncio, pegou a tigela nos braços e desapareceu, levando a névoa consigo.

    Aos poucos, o frio se dissipou e o fedor sumiu. Tudo havia voltado ao normal. A única nota dissonante era o tempo, ou pelo menos a maneira com que os viajantes o percebiam.

    Para aqueles ali presentes, o encontro com o Encourado durou no máximo dez minutos, porém, ao olharem para cima viam o sol nascer timidamente no horizonte.

    Aqueles minutos aterrorizantes dentro da névoa, na realidade haviam sido horas.

    Alguns choravam de alegria por viverem para ver mais um dia começar, sem se importar com as bizarrices remanescentes daquele encontro amaldiçoado.

    Os mercenários, eficientes a todo instante, contavam o número de viajantes para terem certeza que ninguém havia sido levado junto da galinha preta.

    Porém Yaci permanecia congelada. Como uma estátua, ajoelhada ao lado de Hilda e Pietro, atônita pelas palavras do Encourado. Ela tremia de leve, não conseguia entender muito bem o por que seu corpo reagia desta forma.

    Ela já escutou essa mesma frase antes, já havia sido quase morta por uma abominação. Então por que aquela criatura era tão enervante?

    De tal forma que apenas a memória da sua aparência e voz eram suficientes para lançar Yaci em um poço de desamparo?

    Depois de terminar a contagem, o mais velho dos mercenários, um homem careca, retinto, alto e forte, com um sobretudo e suspensório notou a estranheza nas ações de Yaci.

    Com calma, se imaginou se aproximando de um felino acuado. Ao estar a poucos passos dela, se abaixou até chegar na altura de seus olhos, perguntou em um tom baixo.

    — Você viu ele, não viu? 

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