Capítulo 10 - Sombras

Após o clarão dourado cortante, o fluxo da ilha volta para o seu percurso.

Combinado com os uivos da nevasca, agora há o som de vidraças se fragmentando. Do alto, não são apenas um ou dois protetores de Ymir — mas dezenas, talvez centenas.

Avistando o ápice daquela luz celestial sobre a neve, os monstros posicionam o corpo como se estivessem a um passo para atirar com um arco.

Nesse instante, uma poeira azulada se concentra perante os seus palmos e se molda na figura da arma de longo alcance.

Cada criatura ali presente carrega a flecha e, num lapso, dispara rumo à Raisel completamente imóvel em sua própria luminosidade.

O garoto, sem sequer conseguir olhar para cima, apenas encara o horizonte ofuscado por si mesmo.

Sem reação, sem expressão. Tudo o que indica que ele está acordado são os olhos arregalados. Petrificados na vastidão da luz.

Mesmo na neblina, os enormes projéteis cintilantes rasgam o ar como vultos.

Aquela “chuva da morte” parecia estar prestes à decretar o fim da sua breve jornada.

一 Kalte Welle!

Com o exaltar da voz de Hiseld, uma intensa onda de energia azulada sobe em conjunto com o brandir do machado.

Levando consigo parte da neve, rochas e outros detritos pelo caminho, essa barragem colidiu bruscamente contra a tempestade de flechas e se manteve ao ar como uma parede.

Aproximando-se do companheiro enquanto o golpe age como um meio domo separando eles do exército, a mulher o observa usando uma das mãos como proteção ocular.

Ao vê-lo naquele estado, ela tenta se aproximar… mas o lugar já se transformou em um campo de guerra.

As orelhas pontiagudas tremem, os olhos enegrecidos se arregalam e a guerreira se abaixa repentinamente.

Uma das flechas disparada por um soldado avulso da tropa, passa como um relâmpago próximo a cabeça da Eisikalt.

一 Tsc!

Virando-se com o machado em posse, ela emana uma rajada utilizando o balanço da arma.

Contudo, o Jotnar consegue se defender transformando o arco em um escudo. O que resulta nele ser apenas arremessado para longe.

Do alto, o som da chuva de disparos começa a se tornar mais próxima.

Encarando o céu caótico, as batidas do coração dela começam a se tornar mais frenéticas.

“Essa barreira não vai durar muito tempo! Pego o Raisel e volto pra caverna? Não, vamos ser cercados lá!“

“Ir com ele até a floresta… Não! Seria igual recuar depois de ter se revelado pro inimigo! Não teremos outra abertura!“

“Eu consigo enfrentar todos sozinha enquanto protejo ele?! Impossível!“

Conforme os pensamentos dela fluem, a perspectiva da imensidão das forças inimigas fica esmagadoramente aparente ao posicionar o ângulo da visão atrás das costas da mulher.

A proteção que os envolve está sendo impiedosamente massacrada pelos ataques dos adversários.

A íris trêmula esboça bem a sua confusão ao fundo das batidas arrasadoras das flechas e outras armas congelantes sobre a sua barreira.

“Bergelmir…“

Uma lembrança de um outro membro da sua raça sendo levado por alguém ressoa pela mente de Hiseld.

Nessa memória, ela está coberta de sangue e o alguém que leva o ente querido é gigantesco.

Com correntes nos tornozelos e nos pulsos, o que também chama a atenção no malfeitor é seus incontáveis chifres.

Portando uma pele azulada, mas coberta por uma pelagem branca. Quem seria essa entidade?

O som dos grilhões de aço balançando conforme resvalam pelo chão deixa tudo mais desesperador.

“Naquele dia, foi a primeira vez que eu senti frio…”

Embolado como se houvesse sido capturado, está um homem Eisikalt repleto de ferimentos. 

O sangue roxo que escorre pelo chão, deixando um rastro, é a prova da sua injustiça.

Desarmonicamente, essas lembranças são interrompidas quando o barulho da barreira acima se parte.

Ao erguer os olhos, haviam flechas congelantes por todas as direções.

“Me… desculpa, Raisel. Não devia ter envolvido você nisso.“

O ambiente ao redor parece ter desacelerado. A ponta de dezenas de disparos estão prestes a acertar a garota.

Fechando os olhos, ela apenas aceita a própria morte. A falha no seu dever. Da sua missão.

Novamente, a pele da mulher começa a se arrepiar. A sensação de frio em meio a nevasca, não vinha de fora. Mas sim de dentro.

Entretanto, uma sensação quente nas costas dela permanece a existir. Expulsando esse breu, a mente dela molda a figura de Raisel.

Os dentes dela rangem com ferocidade e se trincam. O olhar se abre em ódio.

A única escuridão que resta nela é o fundo dos seus olhos. A íris turquesa brilha com convicção e isso transborda por todo o corpo da guerreira.

一 KALTE WELLE!!!!

Com o berro, o Gewissen de Hiseld explode para todas as direções.

As flechas são afastadas bruscamente e ela toma a sua posição de batalha com o machado em mãos.

“ENQUANTO ELE ESTIVER AQUI! EU VOU… LUTAR ATÉ O FIM!“

Mesmo tendo afastado os disparos, o primeiro guardião se aproxima com uma lança.

Um golpe perfurante visa o peitoral dela, mas em um passo para o lado em conjunto com o brandir do machado em ascensão, a mulher simplesmente divide o inimigo com brutalidade.

Como antes, seus golpes criam um vácuo devastador — agora ainda mais potente.

A lâmina do armamento dela ganha diversas camadas congelantes — refletindo como um espelho a luz dourada atrás de si.

Os olhos se fixam em um vulto acima, percebendo a queda de alguém com uma espada apontada.

Soltando uma das mãos do machado, esse palmo é levado para cima enquanto a energia dela se expande no formato de uma mão gigante.

Essa criação agarra o soldado e o esmaga violentamente. Todavia, não acaba por aí.

一 Grr… AAAAH!

Em um único passo firme, a cintura dela gira junto com o ombro e o braço. Consequentemente a esse ato, o punho gigante se move como uma clava que bate diretamente contra outros soldados que se aproximavam.

Ao fim, o esmagado inicialmente é arremessado para longe e se perde no horizonte, sumindo em meio às nuvens de neve.

Espiando para trás de soslaio, Raisel não havia parado de brilhar.

一 Tsc!

Pondo as duas mãos sobre o machado, a mulher, de olhos fechados, se vira para o garoto e finca a ponta do cabo da arma na neve.

O que ela estava fazendo?

Esse ato a deixou de costas para os inimigos. Os guardiões de Ymir mais próximos avançam com extrema sede de sangue acompanhados de incontáveis projéteis congelantes.

A resposta viria após um suspiro pesado…

一 GLANZ: GEFRIERENDER RAUM!

O grito dela é acompanhado com o símbolo da Constelação de Aquarius crescendo e se expandindo à partir do seu Gewissen.

A energia da garota sobe aos céus como um vórtice, mas repentinamente se abre para todas as direções como uma cortina.

Num piscar de olhos, uma enorme área é coberta por um domo azul-esbranquiçado no qual envolve a maior parte dos guardiões de Ymir.

Nesse espaço, tudo desacelerou muito. Os inimigos se movem em câmera lenta, os projéteis e até mesmo os flocos da nevasca incessante.

“Não queria ter usado isso agora. Mas tenho certeza que ele vai sair dessa e me ajudar. Se apressa, por favor…“

Retirando a ponta do machado do chão, ela volta a se mover partindo e destruindo todos inimigos ali dentro do lugar.

Partindo um a um, nem mesmo o sangue deles é poupado da lentidão.

Contudo, quanto mais Hiseld se mexe, menor o domo vai se tornando.

Já os Jotnar do lado de fora, alguns tentam atravessar, mas acabam sendo pegos pelo efeito. Já outros permanecem a disparar as flechas congelantes.

Enquanto a guerra travada por ela é uma batalha contra o tempo, a perspectiva se aproxima do menino incandescente ao chão.

Por mais que brilhe externamente, o interior dele está escuro.

Olhando os próprios palmos, tudo o que Raisel consegue ver é uma versão etérea enegrecida de si mesmo.

“Tô… no meu interior?”


Estranhando essa visão, ele vai encarando os arredores. Mas está completamente vazio. Não há um traço de Schaltung ou muito menos Gewissen.

“Eu não estava conseguindo me mexer do lado de fora… Então pensei que o problema era do lado de dentro…”

“Não sinto nada… Nem minha própria energia. Que estranho… Será que eu… morri?”

“Não, nem pensar… Deve ter um jeito de sair dessa como das outras vezes!”

Balançando a cabeça em negação, ele começa a flutuar pelo ambiente conforme tenta visualizar alguma coisa.

“Hm… Vento?”

De repente, uma brisa começa a mover os cabelos dele com sutileza.

“Deve ser uma saída!”

Seguindo a direção em que o ar vem, mais intenso esse fenômeno fica.

“Eu tô… sentindo frio?”

Por mais que não esteja no seu corpo físico, a sensação de algo gelado surge e gradualmente está ficando mais forte.

Espremendo-se por entre os próprios braços, ele continua a seguir para a direção da sensação.

Após alguns minutos, Raisel finalmente avista algo.

“Uma… esfera negra?”

À frente dele, há uma bola do tamanho de uma cabeça que flutua no imenso vazio como o mesmo.

Ao avistá-la e continuar a se aproximar, estranhamente a brisa e o frio pararam…

“E se eu…”

Quando a ponta do dedo dele atinge a esfera, o tato demonstra que isso é superficialmente líquido, mas curiosamente denso.


Contudo, ao toque, ele consegue ouvir sussurros intermináveis que rapidamente começam a ficar mais… mais e mais altos!

“O QUE É ISS…”

Tirando o dedo num reflexo, já era tarde demais. Aquele estranho fenômeno volta a emitir brisas, mas que na verdade são rajadas de pura escuridão!

A vastidão dessas ondas negras engolem inteiramente a versão etérea do rapaz.

A perspectiva novamente começa a se afastar de Raisel.

Pouco antes disso tudo acontecer com ele, Hiseld continuava a batalhar.

Cadáveres de sangue azulado dos Jotnar estão em pilhas, espalhados por toda a neve.

Próximo do epicentro da luz dourada que diminuí imperceptivelmente, o domo azul da técnica dela já encolheu significativamente.

Além disso, os guardiões já não sofrem com a desaceleração do espaço como antes, pois passaram a concentrar as suas energias ao redor do corpo.

一 Ugh.. Ugh… Ugh…

Ajoelhada na neve, a Eisikalt tem ferimentos por todo o corpo. O mais grave deles é um corte profundo que dividia o ombro direito, mas que foi congelado por ela para estancar o sangramento.

Cercando ela e Raisel no chão, os inimigos apenas esperam para o golpe final.

一 “Esse é o fim, esposa de Bergelmir… Admiramos o seu espírito guerreiro, mas pensar que poderia nos vencer dessa vez só por estar acompanhada de um humano… Quanta tolice…”

Sem o elmo e com os cabelos esbranquiçados escorridos, sem tranças, ela apenas sorri enquanto tenta recuperar o fôlego.

一 “Eu sou tola…? Vocês decidiram seguir um traidor… Alguém que abandonou a própria espécie pra seguir Odin…”

Em contraste, os Jotnar apenas curvaram o canto dos lábios.

一 “Pense como quiser, descendente. Os motivos Dele são grandiosos… Tudo o que ele fez foi se libertar da própria carne para renascer buscando um propósito maior… Não é algo que alguém inferior poderia entender…”

一 “Você foi infectada com as asneiras de Belgermir. Darei a você uma última oferta: converta-se e torne-se uma verdadeira Jotnar, ou morra aqui.”

一 “Diferente do seu marido… Não há serventia alguma em aprisioná-la. Essa não é a vontade Dele…”

A espada congelante de um dos guardiões é apontada contra a feição de Hiseld.

Um outro inimigo se aproxima de Raisel, apontando a grande lâmina de gelo em direção ao torso do rapaz.

一 “Mate-o”.

A voz de um dos soldados ordena o mais próximo do humano. Naquele instante, a lâmina dele desce em direção às costas do menino

一 “ESPERA!”

O urro da mulher alerta o soldado que ordenou. Esse mesmo guerreiro executa outra ordem usando um gesto de mão.

一 “Poupem… o garoto… Ele não tem… nada a ver com essa situação…”

Encarando ela, eles apenas ficaram em silêncio.

Contudo, os olhos desses homens se arregalaram quando a cabeça dela se abaixou até o chão.

O rosto contra a neve segurava as lágrimas.

Após um instante onde apenas o vendaval da nevasca podia ser escutado, o som de múltiplas vozes quebram o ambiente.


一 HAHAHAHAHAHA!

一 HAHAHA!

一 HAHAHAHAHAHAHAHA!

一 HAHA!

Os Jotnar caem em gargalhada. A risada de todos são tão escandalosas que estremeceram as montanhas.

一 “Que vergonha… Ir tão longe por um humano… Me pergunto o quão patético Bergelmir é para escolher uma mulher como você…”

O corpo de Hiseld estremece de frustração. O sangue púrpura escorre do lábio inferior sendo mordiscado. Lágrimas caem contra o chão, mas essa água que escorre de seus olhos parecia estar muito mais dolorosa…

Em um gesto com a cabeça, o guardião progride com a ordem de execução.

A lâmina frígida do soldado crava sobre as costas de Raisel. O sangue avermelhado escorre pela neve…

“Hm? Ele não estava… brilhando?”

O pensamento do homem com a espada sobre o humano vem à tona.

Por algum motivo, os ventos não uivam mais…

A pele dos guerreiros começam a se arrepiar.

“Isso é… frio?”

Da mais brilhante luz, a maior escuridão sempre está à espreita…

Os palmos de Raisel forçam contra a neve.

Erguendo-se pouco a pouco mesmo completamente empalado por aquela espada, o que escorre do seu ferimento não é mais sangue…

Contra o exército de gigantes de gelo, a sombra da pequena figura ressoa por toda ilha.

Em um piscar de olhos, a arma congelada desaparece perante às trevas que vazam de seu corpo.

一 Der Fluch von Hoder…!

A voz do soldado escapa em um tom de espanto…


Antes que o garoto se levantasse completamente, todos os Jotnar pelos arredores avançam em direção a ele.

Os rostos desses homens esbanjam confusão… Desespero.

O semblante de Raisel se torna visível. Sua íris, antes dourada, tornou-se totalmente escura como o breu.

Lanças, espadas, clavas, flechas de gelo. Tudo aquilo se encaminha contra um único humano.

Encarando de soslaio, essa é a primeira vez que Hiseld sente um frio vindo de fora. Os olhos dela arregalados, não podiam acreditar no que estavam vendo…

Um mísero balanço de braço. Esse foi o movimento que decretou o fim de todo o exército.

Um lapso. Um vulto.

Um massacre silencioso perante a neve.

O gesto de Raisel fez com que todos fossem esquartejados, com exceção da Eisikalt.

Uma única linha sombria ressoou em todos Jotnar. No outro instante, eles explodiram com seu sangue azulado e banharam a neve com ainda mais intensidade.

A ilha, antes apresentada com sua neve, agora poderia ser descrita como uma chuva azul que pigmenta cada tom de branco.

Os profundos olhos inexpressivos de Raisel encaravam a única sobrevivente…