Capítulo 87 - Mar de Revolta (Parte 24 ): A Deus
“A verdadeira grandeza se revela no cuidado com o que é pequeno, frágil e inocente — pois é ali que a alma reconhece aquilo que vale ser protegido.”
G. K. Chesterton
O “Mal que habita” não se deu por vencido, tentando uma última oportunidade: a inocência exposta.
A vulnerabilidade também se aplica à pureza, onde a pessoa não tem noção da imensidão da maldade em sua volta.
Porém, as armas dos justos já estavam a postos frente essa ameaça invisível, mas poderosa.
Noah, Ingrid, Íris e Olaga passaram, juntos, por uma tributação indescritível.
Mesmo tão jovens, a dedicação do grupo em resgatar o protagonista dos eventos em Big Sea Island foram, enfim, recompensados.
— Noah, você tá bem? — perguntou Ingrid, bastante feliz.
— Ah, mas é claro! — ele ainda estava com a cabeça abaixada.
Íris, a mais impactada, enxugava seu rosto das lágrimas que caíram em abundância.
Ela foi até ele e, segurando em seu ombro, deixou claro que estava contente:
— É bom saber que você está bem, Noah… — mas ela estava curiosa. — Ah, bem… Porque não levanta sua cabeça? Você está cansado, hein?!
Nesse momento, Olaga se aproximou com cuidado, espiando por baixo, como se tentasse descobrir o motivo daquela postura.
E eis que sua reação falou por si:
— Haha! Agora eu te vi!
Aquilo fez com que as caninas ficassem curiosas ainda mais.
Sem pressa, Noah levantou seu rosto… as deixando impressionadas.
Íris e Ingrid até deram um passo para trás, espantadas ao verem Noah… sorrir.
— Uau! Minha nossa! — a das ondas ficou chocada. — Mas que sorriso lindo você tem!
E Íris:
— Ora, vejam só… Eu sabia que você era um menino bonito, mas não tanto assim!
Noah chegou a coçar a cabeça, um pouco envergonhado após os elogios.
Para quebrar o clima, Olaga pulou em direção a Noah, o abraçando.
Pendurado no pescoço do mestiço, ele falou:
— Tá, agora vamos voltar pra vila e comer doce! Vamos!
Em resposta, Noah voltou a sorrir.
Era evidente seu contentamento com isso.
Entretanto:
— Espera um pouco…
— Hã? O que foi, Noah? — perguntou Íris. — Temos que voltar. Prometemos ao senhor Lanumoaga e a senhora Orchid que voltaríamos com você.
— Iremos voltar, mas não agora… Não agora…
Ele manteve o sorriso em sua fronte pálida e, correndo com Olaga pendurado em seu pescoço, voltou a abraçá-las.
— Eu quero ficar com vocês aqui só mais um pouco… Pode ser?
Poderia ser redundância, mas os sorrisos tão sinceros se encontraram outra vez.
Sem sombra de dúvidas Noah estava curado.
Era alguém renascido.
Mas ainda desejava mais do “santo remédio”.
O mal havia sido derrotado na praia, mas não era o fim.
Longe disso: o “Mal que habita” ainda possuía presença forte.
Abaixar a guarda era um erro capital.
Com isso, a batalha só mudou de cenário.
Em seu ponto de ebulição, a Festa da Colheita estava a segundos de receber o presente da Guilda Agalelei.
Com todos já prontos para a suíte exclusiva, a expectativa era enorme.
O povo, já sabendo do que se tratava o evento, estava em silêncio, como um ritual.
De pé perto do palco, na lateral, Lanumoaga prestava apoio a Orchid, já posicionada para começar a tocar sua harpa abençoada.
Haalaee, mais a direita da plataforma, estava sorridente, aguardando o início.
Os outros músicos, mais ao fundo, deram espaço à entrada de Alfreedah, cheia de elegância e um lindo sorriso no rosto.
Com todos a postos, a loba começou: já no primeiro arpejo das cordas de seu instrumento, o som etéreo se misturou ao silêncio, ecoando uma melodia angelical que acordou os brios dos “adormecidos”, no bom sentido.
Neste cenário, Marduk acompanhava o iniciar ainda com o semblante sinistro, onde a aura negra se espalhava, mas reagia aos acordes suaves da lupina.
No momento culminante, Orchid preparou a melodia para Alfreedah, que tomou a frente do palco, mais à direita.
Era a hora de mostrar sua voz1
A letra tão aguardada pelo povo da Vila Aldeia Melanmarii foi então proferida pela morcega “raposa alada”.
♪Nascer do sol, palavras, milagre…
Os elogios de Lanumoaga sobre sua voz não eram um exagero: ela, de fato, tinha uma voz melodiosa, sublime e encantadora.
Toda a doçura e musicalidade a total potência.
Só em seu início apoteótico já foi motivo de suspiros e esperanças renovadas, dada a comunhão do povo com o momento musical.
♪Água pura, uma lágrima
♪Paz, luz, amor…
O som magistral da voz poderosa de Alfreedah e da harpa mensageira de otimismo de Orchid se misturavam em um dueto aconchegante, digno dos seres celestiais de Avalice.
O dueto não era só esplendoroso: a jóia feminina presente no palco tinha uma química que acalmava o coração mais revolto tanto com a música como com a beleza.
As reações eram tão íntimas que cada um presente tinha a sua, interna ou externa.
A morcega, impávida, performou com clamor.
♪Fruto agreste, respiração, liberdade…
O “Mal que habita”, manifestação maligna poderosa, parecia não entender a situação.
Poderia ser invisível, silencioso e intangível, mas não para o poder sagrado da música cheia de graça e fé.
A essência sombria, que se estendeu por toda a ilha, tinha sua maior força, talvez seu investimento mais considerável, na praia.
♪Harmonia, vento da benção, agradecimento…
Mas, mesmo diante, sua força sentiu o toque sacro da melodia e acorde da música abençoada da Guilda Agalelei.
Tanto que, quase como um paradoxo, a letra relembrou ao público cativo onde estavam as mazelas deste mundo, como um presságio:
♪Tempestade, inquietação, escuridão…
Mas que, como um reforço, lhes entregou a solução universal de lutar contra o mal que vem em momentos de fraqueza.
♪Luz do sol, alegria, graças a Deus.
Após a última frase da letra transcendental, o cessar dos sons ocorreu.
De Orchid e Alfreedah, o silêncio musical se uniu aos dos habitantes, deixando muito claro que o sincronismo de sensações e sentimentos era impressionante.
Esse momento, abrupto e inesperado, resgatou alívio em Marduk, estranhado pela pausa.
O mal tinha pensado que “o pior já passou”.
Ledo engano.
Em uma luta, nunca baixar a guarda é regra fundamental da vitória.
O “Mal que habita” tripudiou do povo todo esse tempo e guardou menosprezo do real poder da comunidade.
Enfim, a resposta a sua arrogância veio… e com força.
Juustoh e Tatamarenno, com seus violinos afinadíssimos, e Hekichah, o mais jovem com seu violão lendário, golpearam bem no império maldoso do Infortúnio, que assentiu o dano.
Orchid, com toda sua leveza e suavidade, movimentou suas mãos pelas cordas firmes de sua harpa, como um chamado, que se uniu à intensidade sonora dos demais instrumentos.
Era uma união harmoniosa e tocante.
Sem misericórdia, o “Mal que habita” perdia força.
Eis que a jóia do palco agraciou os ouvidos de todos: Haalaee, o sorridente, o que sempre guardou tudo que o povo tinha de bom, brindou a todos com a mesma canção que Alfreedah cantou, mas usando de sua flauta vivaz.
O som fino e agradável trouxe vida, fé, comunhão e paz de uma forma tão intensa que fez com que o público reagisse.
A flauta se fez ouvir — uma corrente de notas cristalinas, ondulando como véus de luz sobre a plateia.
O som não era só música: cada sopro soava como a brisa de um milagre chegando, gentil e inevitável.
O cervo era o povo simbolizado, o membro mais significativo.
Era jovem, sem pretensões de poder ou sequer embates políticos ou espirituais.
Era aquela pessoa que sempre tinha um sorriso, que estava ao lado dos que precisavam de ajuda ou uma boa conversa.
E vê-lo no palco, recitando aquela música, foi mágico e magnífico, a ponto de lágrimas surgirem aos olhos da maioria.
Indo para bem longe, se afastando do calor da Festa da Colheita, na praia Melanmarii o frio da noite… não era mais tão frio.
Nem a presença soturna tinha a mesma força, o mesmo ímpeto.
Era seguro dizer que não existia mais calamidade.
O Infortúnio se apequenou diante a união empática de agora a pouco.
O grupo, o quarteto da luz no meio daquele cenário escuro, iluminava o visual sóbrio com sorrisos alegres e um papo jovem.
Não existia mais rancor, dor, tristeza, culpa.
Só a tenra e honesta amizade genuína.
Deitados na areia fina e fofa da praia, a proximidade era total: o contato corporal deles era pleno, com todos amontoados como crianças após brincadeiras cansativas.
Sim, o descanso veio, depois de tantas tributações.
— A voz que eu ouvi… — falava Noah, sorridente. — É linda… como nunca antes ouvi.
— E da senhorita Alfreedah, a cantora da nossa vila! — falou Ingrid, abraçada ao jovem.
— Ela canta muito bem, até ouvimos daqui — Íris, de mãos dadas com Noah, falava. — Você gostou, não é?
— Minha mãe adora ela também! — Olaga, sempre sorrindo, apoiava a cabeça sobre a barriga do mestiço. — A tia Alfreedah é demais, haha!
O mar estava sereno, assim como a brisa fraca, que trouxe aconchego maior. Até mesmo um aroma adocicado foi sentido, para mais conforto.
O céu estava mais estrelado que antes, com Motavia e Dezoris, a menor e a maior, parecendo estar contentes com o que testemunharam.
A paz eliminou o “Mal que habita” por lá.
Em um flash rápido, a visão do palco se tornou a mais bela e estonteante que a Vila Aldeia Melanmarii presenciou em sua história recente.
Não só os músicos tocavam os corações como Alfreedah novamente se fez ouvir, se unindo aos sons harmoniosos da orquestra afinada pelo soberano que acreditavam.
Ela voltou, parte realçar os cuidados, o que todos precisam estarem juntos, sob a mesma causa, a combater:
♪Tempestade, inquietação, escuridão…
Contudo, a lembrar de que a luta tem em sua essência a diferenciação: não é sobre ser violento e sim ter força.
♪Luz do sol, alegria, graças a Deus…
A comunhão era tanta que o povo cantou junto, no mesmo tom, como se já tivessem ensaiado por toda sua vida.
Tudo fluiu natural, sem exagero.
Não era só a orquestra.
Era toda Big Sea Island fazendo musicalidade.
A extensão maior do poder de Kai, no contexto da vila.
Marduk sentiu essa pressão, tão intensa quanto seu sentimento interno.
Em silêncio durante toda a suíte, se guardou assim sem piscar.
Para todos que ainda o olharam, entenderam que o líder carismático do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão estava em oração e em simetria com o momento ecumênico sacro.
Era só a casca, a que sempre esteve visível o tempo todo.
Entretanto, por dentro havia a alma de um líder vencido, cujo ego vazio lhe torturava, ignorando o esperado pensamento altruísta que se esperava de um zurkan.
Sentado, ele segurava seu cetro, que estava levantado e apoiado no chão.
A força que impos na haste do instrumento sacro era muito acima do normal, demonstrando inquietação emocional, para não falar nervosismo.
Talvez o único símbolo que fazia questão de ostentar, ainda detinha seu título de líder.
O mal que habita, desta vez diminuído e fraco, talvez até tenha se lembrado de onde veio.
Sua faixa de atuação estava tão translúcida que o teor sinistro da noite se assemelhava ao do dia.
O sol do interior de cada um dos presentes fez milagres.
Mas, para um habitante de Big Sea Island, nuvens de tempestade pairavam no ar…
O do zurkan.
Como contraste, só bençãos chegaram aos fiéis, os verdadeiros.
A celebração a Kai atingiu seu maior grau, com todos cantando juntos.
Alfreedah performou de forma esplendorosa, em uma apresentação extraordinária.
♪Luz do sol, alegria…
Seja até onde a música alcançasse, seu efeito era o mesmo: na praia, na vila, ou até em outros locais não escoltados, tudo tinha uma sinergia de benevolência, de positividade transbordante em cada canto de Big Sea Island
O prêmio maior da coletividade da Vila Aldeia Melanmarii: a verdadeira fé.
O abraço ao indivíduo em primeiro lugar que, com a soma, laços são criados.
Esse era o cerne do Caminho de Kai.
Encontre no outro a si mesmo.
♪Graças a Deus.
Restou a morcega “raposa alada”, com sua voz encantadora, o término da canção, sacramentando a incrível e inesquecível suíte maravilhosa.
Era esperado muitos cultos a Kai logo após o fim da música, mas não foi o que aconteceu.
Toda a Guilda Agalelei olhou ao redor e só viram pessoas com a felicidade estampada em cada um dos rostos felizes e realizados dos moradores da vila, ainda contagiados com a canção.
Eram abraços atrás de abraços.
A comunhão plena foi alcançada.
Lanumoaga, também sorrindo, olhou para cada um de seus colegas.
— A Deus, Haalaee… — disse, acenando para o cervo.
A resposta veio do mesmo jeito. O sorriso cativante dele foi o melhor.
— A Deus, Alfreedah…
A sacra zome acenou, ainda mais linda que antes.
Ele também fez o mesmo aos da orquestra, que retribuíram.
E também a sua esposa:
— A Deus, Orchid…
A loba, com seu rosto sereno e tranquilo, respondeu:
— A Deus, Lanu… Agradeço a Kai por ter você.
— Digo o mesmo, dádiva de Kai.
Só bons momentos a Festa da Colheita reservou para o final.
Porém, não para todos.
Durante essa manifestação, o tempo pareceu parar para Marduk, que olhava para o palco.
Como se estivesse automatizado, seu corpo tinha essa reação, diferente da sua atividade interna: sua mente, ocupada por processar tantas afrontas ao seu ego, estava em polvorosa.
O que Lanumoaga lhe disse causou isso.
“O que ele disse então?”
Uma síntese, antes de mais nada:
— Aquele menino, o Noah… Ele é o motivo de todos mudarem para melhor. Ingrid e Íris vão salvá-lo de você!
Eram as palavras de Lanumoaga.
Voltando um pouco no tempo, justamente quando o azulado estava próximo de seu ouvido, o sacro zome Lanumoaga falou em bom som:
— Então, escute bem: você só se vangloria pelo o que o povo faz e nada mais. Eles plantaram, colheram e consumiram… para fazerem tudo outra vez, e outra, e outra! E você, o que fez? Simples: usurpou da felicidade deles para se autopromover… usando a palavra de Kai!
Sem poder se manifestar como queria, a fim de proteger seu ego, Marduk só pôde ouvir todas as verdades calado.
— É nesse ponto que quero chegar: nada que você fez por VOCÊ é real. Nosso povo batalha todos os dias contra uma entidade e você se alimenta da ideia… que nunca está em comunhão! Entendeu, Marduk? Você é uma fraude.
Cirúrgico, Lanumoaga não pegou leve.
Ele entregou tudo que estava preso a muito tempo.
Até seu último desabafo.
— Você disse que vai me denunciar e abrir uma investigação sobre a suíte… Você é o zurkan do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão, tem poder para isso. E eu quero que faça o que disse que fará. Mas que você tenha conhecimento de um detalhe considerável, seu facínora…
O xeque mate.
— Sabe quem escreveu a letra que estamos prestes a ouvir como música? Pois bem, líder: o povo. O seu povo. O mesmo que eu e os demais membros da Guilda Agalelei fazemos parte… e que VOCÊ também faz! — terminou o canino, saindo do lugar. — Aproveite a canção. Alfreedah e Haalaee fizeram as partituras. A Deus.
Esse foi o motivo pelo qual Marduk se segurou, optando por não responder às duras acusações que ouviu.
Não há respostas aos fatos.
Mas seu ego era tão inflado que, mesmo após isso, ele ainda tinha fé de que tudo seria como antes.
Seu posto como zurkan, seu carisma frente ao povo… Tudo isso seria mantido.
Mas uma ferida, um estigma, foi aberto.
E a dor de ser subjugado e não ter com o que responder doeu bem no fundo de sua alma.
As ações inescrupulosas do líder caído foram contidas e fracionadas.
Todos da Guilda Agalelei sempre tiveram um compromisso com o povo.
Eles eram o povo.
E Marduk… o zurkan.
A taça que segurou após o fim da suíte, contendo água, manteve o líquido límpido do mesmo jeito que chegou até ele.
Mas o tremular de sua mão fez com que derramasse grande parte, que foi ao chão.
Sua reação era de nervosismo, de alguém que não conseguia mais controlar sua raiva.
Um ritual tempestuoso, cercado de rancor e inimizade.
Era como um… mar de revolta.
- Nota: música: A Deus | Origem: Grandia 2 | Compositor: Noriyuki Iwadare | Cantora: Kaori Kawasumi. Link nas notas do rodapé do capítulo.[↩]
Link da música do capítulo: https://youtu.be/axgM5Ss0xfo?si=cTo1__D8Z88z62JD
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