Capítulo 59 - Reencontro inesperado
ALVO PRIMEIRO
No quarto dia de viagem, voltando em direção aos domínios humanos, a temperatura já não era negativa, e não precisávamos mais dos cobertores de lã.
O retorno foi um pouco mais demorado, pois fizemos um desvio, evitando sermos seguidos por possíveis anões, irritados com Ven’e.
Nossa “fuga” da montanha não foi a mais amistosa. Nocautear quinze guardas e pegar pertences em seus aposentos não deve ter deixado o rei Anão muito contente.
Ao nosso redor a paisagem era sóbria, com pouca vegetação. Estávamos num clima cerrado, com poucas árvores despontando no horizonte.
Ven’e cortou o silêncio:
— Temos algum tipo de direção ou dica do que fazer a seguir?
Ele guiava as rédeas da carroça com nossos dois cavalos. Mendir estava ao seu lado, fazendo companhia.
— A única coisa que sabemos é que nosso “líder” ainda não se manifestou. “Líder dos marcados pelos deuses”… Quem poderia ser? — Indaguei.
— Pelo o que entendi, várias raças compõem os marcados. Talvez este “Líder” seja de uma raça que esteja longe de nós, como Lizards ou Pelt-Beasts — Tobin deu sua opinião.
— Não é improvável. Aqui temos três humanos, um anão e uma elfo marcados. É lógico supor que as outras raças também tenham integrantes marcados — Listro deu força à hipótese do garoto.
— E elfos-de-gelo? Talvez eles também estejam metidos nessa bagunça… — Pírio participou da conversa.
— Conheci um, quando salvei Listro de seu pai, Tobin. Ela foi pega como refém, nos esquemas tenebrosos de Altimanus. Esquecemos de te contar isso… Desculpe trazer esse assunto a tona.
A expressão do menino ficou séria. Sua visão não focava em nada além dos meus pés.
— Imaginei que meu pai pudesse fazer coisas terríveis, mas reféns… Não pensei que diria isso novamente, mas ele teve o que mereceu!
Era pesado ouvir essas palavras vindas dele. Tão novo, mas tendo que ser tão maduro…
Decidi retomar o assunto, para o clima voltar a “normalidade”:
— Sobre meu encontro com o elfo-de-gelo: Ele era um Escolhido, assim como eu. Thermon, seu nome. Depois de muito sangue e suor, ele me encurralou, forçando com que eu enfrentasse o mímico. Foi o único momento que imaginei que pudesse perder.
Tobin me olhou com atenção.
— Foi aí que venceu o Mizinho? Como fez? Nunca pensei que fosse possível! — O garoto saiu de um estado de apatia para uma animação genuína. Às vezes me esqueço que ele é aficcionado por batalhas.
— Fiz algo que nunca havia feito antes. Ao que parece o mímico está fadado a sempre saber tudo sobre nós, mas não tudo o que podemos fazer… Arrisquei muito para vencê-lo.
O garoto assentiu, compreendendo parte do que falei.
— De toda forma, tive um embate com o Escolhido dos elfos-de-gelo e logo mais me tornei um “marcado”… Não parece coincidência. Talvez ele mesmo tenha sido marcado…
— São muitas suposições… O que está querendo dizer? Quer ir até o polo sul, encontrar esse Escolhido? — Ven’e ainda controlava a carroça, sua face voltada para a direção que os animais seguiam..
Pensei por uns instantes antes de responder.
— Talvez seja necessário ir até o polo sul, mas, por agora, acho que devemos voltar à capital. Não queria voltar tão cedo, mas minhas férias vão ter que esperar.
Listro ao meu lado não disse nada, mas eu sabia que ela estava contente. Com minha decisão, ela ficou próxima de cumprir sua missão: me levar de volta para as Forças de proteção.
Duas semanas se passaram.
A viagem foi tranquila.
As habilidades de Ven’e garantiam abrigo nas noites. Caçar era fácil com minha velocidade. Aliando isso com as habilidades de pesca de Tobin, nunca ficamos de barriga vazia.
Reestocamos nossos mantimentos, com frutas e especiarias, em vilas e feudos pelo caminho.
Na região em que nossa pequena expedição estava conseguia sentir a brisa litorânea. Sabia que Porto-Norte não demoraria a aparecer no horizonte.
Quando eu fiquei sozinho no comando das rédeas da nossa carroça, Pírio sentou-se ao meu lado.
O pessoal ao fundo conversava sobre espécies de animais da região, ou sobre tipos de rochas que Ven’e já lapidou, então ninguém percebeu meu velho amigo cochichar ao meu lado.
— Alvo, lembra que fugi de Porto-Norte por conta de um juramento do deus Azul, certo? Não posso ser reconhecido nesta cidade por conta disso. Se me descobrirem, estarei morto, garanto!
É… Lembrei da cena onde ele quase vomitou em meus pés. A simples menção em dar detalhes do juramento quase o matou.
— Pois é, essa sua história está muito mal contada, meu amigo… — Falei baixo, mas aumentei o volume da voz ao chamar minha amiga. — Listro, pode vir aqui por favor? Quero perguntar algo sobre o caminho…
Era mentira, só queria que ela e mais ninguém ouvisse o que eu e Pírio falávamos.
Ela ficou em pé na carroça atrás de mim, e se apoiou em meus ombros para não cair com o movimento da carroça..
— O que precisa, grandalhão? Está perdido?
Sua voz em meu ouvido me causou um arrepio inesperado. Chacoalhei a cabeça, e recobrei o controle.
— Chegue mais perto… Lembra do juramento de Pírio? Precisamos “contrabandeá-lo” para dentro da cidade, ou ele pode morrer se for descoberto. Tem ideia de como fazer isso sem que o vejam?
Ela entendeu tudo sem muitas explicações.
— Podemos “misturar“ ele na bagagem e deixá-lo com minha mãe depois que entrarmos na capital. Mas Pírio não vai poder ficar lá por muito tempo, sabe disso — ela olhou para meu amigo, ele assentiu.
— Está decidido então. Quando estivermos próximos da cidade, você se mistura nos sacos com mantimentos e deixamos você na casa da Rubía.
Contamos para o resto de nosso grupo sobre o caso de Pírio e todos entenderam a importância da discrição. Pírio estava morto para os humanos, e isso precisava continuar assim.
Ven’e comentou.
— Esse lance de juramento do deus azul… É a maior “conveniência inconveniente” que já ouvi falar. Isso facilita muito a vida dos humanos, mas também pode causar mortes… Pelo jeito qualquer bênção de um deus pode ser usada como arma, até mesmo um juramento.
O anão estava no fundo da carroça, fumando um cachimbo fedorento. Ele fazia isso uma vez ao dia. Dizia que era para se acalmar… Para mim estava mais para um vício.
Logo a cidade despontou no horizonte. Era meio da tarde, então chegaríamos ao nosso destino perto do anoitecer.
Porto-Norte, a maior cidade humana, usava as águas do rio Veluzia para ajudar nas defesas de suas muralhas. O rio caudaloso nasce no meio do continente, e deságua no mar felpo, ao lado da capital.
De longe, a cidade parecia uma pintura, manchada com um ponto negro em seu interior. Naquele local enegrecido foi onde ocorreu a explosão, causada pelo Lizard Faísca-nova. O ataque matou grande parte dos soldados da força de proteção.
Lembrar daquilo embrulhou meu estômago. Centenas de pessoas morreram no ataque, mas, ainda assim, decidiram devolver Faísca aos Lizards. Nos prometeram “devolver” mil escravos humanos em troca do “Príncipe Mercenário” assassino…
Esse foi um dos motivos pelos quais decidi sair das Forças de Proteção. O rei não deu ouvidos à minha opinião, contrária à soltura de Faísca. Parecia que minha utilidade era apenas como uma arma.
Aquele fluxo de lembranças me deus náuseas. Parte por raiva, parte por vergonha… Fugi de minhas responsabilidades como Escolhido e agora estava voltando, como se nada tivesse acontecido. Não sabia o que iria dizer ao rei.
“Ah, então, me meti em altas confusões e agora preciso ir para o polo sul, tudo tranquilo?”
Não sei se valia a pena pensar nesse tipo de coisa, mas foi mais forte que eu. A ansiedade começou a tomar conta de mim.
Eu ainda controlava a carroça, sem ninguém sentado ao meu lado. Não havia percebido o quão encolhido e patético eu estava até Listro sentar no espaço vago.
Tentei me endireitar, mas ela já havia percebido que algo estava errado comigo.
— O que foi, Alvinho. Parece meio nervoso. Está se sentindo bem?
Foquei nas rédeas em minhas mão e respirei fundo.
— Não sei o que vou dizer para todos quando voltar. “Ah, desculpem por ter sumido tanto tempo. Sentiram saudades?”, não, ser sarcástico não parece uma boa ideia. Que tal: “Voltei, mas não por muito tempo!”, não, muito passivo-agressivo.
— É com isso que está se preocupando? Se eles vão te aceitar de volta? — Ela franziu o cenho.
— E se não me aceitarem? — Respondi, mais alto e rispidamente do que havia calculado. — E se essa aceitação por parte deles for importante para mim, o que eu faço se for rechaçado?
Ela fitou meus olhos e suspirou.
— Ninguém te culpa, Alvo. Nos poucos dias que fiquei na capital, depois que saiu, não vi uma alma viva falar algo sobre sua partida. Alguns até o apoiaram…
— Como assim?
— Não é segredo que você saiu de Porto-Norte. A bagunça que fez na saída da cidade, confrontando Henco, foi a fofoca da cidade por algum tempo. Lembra o que fez?
— Sim… Arremessei Zonte e sua espada no rio… É, eu devia agir com mais cautela, às vezes.
— Pois é… Só não fique se culpando. Com certeza o pessoal do alto escalão vão tentar usar sua saída como argumento para te colocar em rédeas curtas — Listro apontou para as rédeas em minhas mãos e deu uma risadinha. — Mas não se esqueça que eles precisam de você, não o contrário.
Ouvir suas palavras acalmaram meu peito. Respirei fundo e abri um sorriso fraco para ela.
— Obrigado. Eu precisava ouvir isso.
Ela me deu um beijo no rosto e voltou para a parte de trás da carroça.
Precisei de toda a minha compostura para não demonstrar o quão enrubescido fiquei.
Eu e Listro estávamos mais “soltos” desde o início dessa viagem. Sempre fomos próximos, mas nunca expressamos nossos sentimentos com tanto toque… Não me entenda errado, não estou reclamando, mas por ser algo “novo”, fico ainda mais encabulado.
— Acho que está na hora do seu amiguinho se esconder, Alvo — Ven’e brinco, olhando para Pírio.
— Mas faltam alguns ciclos para alcançarmos a cidade… — Ele protestou.
— Não podemos nos dar ao luxo de alguém de ver, Pírio. Deite no fundo da carroça.Vamos empilhar as coisas sobre você.
Ele não protestou, mas em sua face estava estampado o descontentamento.
Tobin parecia animado em fazer um pequeno “forte” de bagagens ao redor de Pírio. Listro e Mendir tentavam conter risadas enquanto ajudavam o pequeno elfo.
— Vocês me pagam!
Perto do anoitecer, minha carroça se aproximou da entrada norte da cidade. Devido ao horário, havia poucas pessoas indo e vindo.
Ainda guiando a carroça, me aproximei da ponte de pedras, que ligava a entrada de Porto-Norte à estrada.
Antes de entrarmos na ponte, dois guardas nos pararam. O mais novo falou:
— Alto lá!. Houveram problemas ultimamente, então a segurança está mais rígida na cidade. Teremos que revistar sua carroça.
Virei para trás e meus colegas trocaram olhares, apreensivos. Listro foi mais rápida. Ela desceu da carroça e se aproximou deles.
— Boa noite, queridos. Entendo que estão fazendo seu trabalho, mas vão querer ser repreendidos por seus superiores por atrapalhar assuntos da realeza?
Dessa vez os guardas se entreolharam.
— O que quer dizer com isso?
— Ora, não perceberam ainda? Ah, eu me acostumei com sua “barba por fazer”, então me esqueci que nunca o viram assim… Deem uma boa olhada no cocheiro.
Os dois espremeram os olhos e me olharam mais de perto.
— Pelos Deuses, é Alvo? O senhor voltou! Abra caminho, anda logo! — O guarda mais velho ordenou ou outro.
Eles se afastaram, Listro subiu na carroça, e entramos na cidade.
— Quando vai tirar essa barba, Alvo? Está causando mais dores de cabeça do que nos ajudando… — Pírio perguntou por debaixo da bagagem. O som abafado de sua voz era engraçado, de certa forma.
Passei a mão no rosto, sentindo os pelos da minha face.
— Está tão feio assim? — Olhei em direção ao meu grupo, na parte de trás da carroça.
Mendir, Tobin e Ven’e fizeram expressões que misturavam nojo e descontentamento. Listro franziu o cenho e disse:
— Prefiro sem barba.
— Tá… Depois eu tiro. Mas onde vou fazer isso? Minha casa era no batalhão, e não faço mais parte das Forças de Proteção…
— Hahaha, você é um andarilho! — Pírio zombou, ainda escondido embaixo da nossa tralha.
— Se falar mais uma vez, eu juro que te jogo no meio da uma multidão e grito seu nome…
Não ouvi mais a voz dele.
Passamos por ruas que eu sabia serem normalmente movimentadas, mas, naquele momento, estavam quase desertas.
— Isso é anormal. Nunca vi Porto-Norte tão “parada”. Os guardas comentaram algo sobre segurança mais rígida. O que será que aconteceu? — Comentei.
— Que cidade estranha. Tão exposta ao céu… Como se defendem de ataques vindos de cima? — Ven’e olhava ao redor, julgando a arquitetura humana.
— Faz tanto tempo que não venho aqui… Acho que vou aproveitar e visitar minha família — Mendir suspirou, olhando em volta.
— Mendir, vou te mostrar onde fica a casa da minha mãe. Depois que souber onde vamos nos instalar, pode ver sua família. Pode ser assim? — Listro colocou a mão no ombro de Mendir para falar com ele.
Percebendo a aproximação repentina entre os dois, senti uma certa irritação crescer dentro de mim. Ao que parece estou começando a sentir ciúmes dela…
Balancei minha cabeça e esfreguei os olhos. Respirei fundo e ignorei o sentimento. Claramente não havia nada entre os dois… Ou entre mim e Listro… Sobre esses assuntos eu era tão experiente quanto um adolescente.
Decidi focar minha atenção em guiar os cavalos até a casa da minha amiga.
Entrando no bairro onde Listro morava com Rubía, a movimentação de pessoas era cada vez menor. Eu entenderia se houvessem poucas pessoas circulando durante a madrugada, mas mal havia escurecido.
Senti um frio na espinha e um arrepio na superfície da pele. Muita mana estava sendo utilizada na cidade e eu sabia onde.
— Listro, pegue as rédeas, preciso investigar uma coisa.
Sem mais avisos, pulei da carroça, e comecei saltar por entre as construções, indo em direção ao foco do uso de mana.
Como de costume, cada salto deixava de um ou dois quarteirões para trás.
Menos de dez saltos depois, me aproximei da região mais nobre de Porto-Norte, reconhecendo as redondezas.
— Não me diga que…
Era muita coincidência, o epicentro daquela mana colossal vinha de dentro da casa de Rufo Sote. Não tinha como esquecer aquela mansão luxuosa…
Aterrissei perto da entrada, e corri até a porta.
Três batidas apressada e gritei:
— Rufo, o que está acontecendo? Quem está aí?
Instantes depois, a porta escancarou:
— Alvo? — Um elfo-de-gelo abriu a porta e falou meu nome. Era impossível não reconhecer aqueles cabelos esbranquiçados e a pele azulada.
— Thermon???
“Para mim é difícil interagir com alguns rapazes. Não entendem o ‘meu jeito’ e acham que estou flertando com eles. Não tenho culpa de ser um pouco mais ‘sociável’ que as mulheres ‘comuns’… Eles que se acostumem com isso, não vou mudar!”
Listro Distar
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