Capítulo 022 — Centro de Exploração Aero Espacial de Taeris
Yhe-For, 42 dias após o incidente com Elucydor
Marco empurrou a porta dupla da ala norte e entrou.
O eco dos próprios passos o acompanhou pelo primeiro andar quase vazio. Das dezenas de antigas prateleiras, apenas seis abrigavam rolos de pergaminhos — os registros que ele e Maera vinham acumulando. O restante permanecia vazio, aguardando o tempo e o trabalho preencherem o lugar.
Ele atravessou o corredor central com calma. Subiu os degraus da escada de madeira reforçada e, antes de alcançar o topo, parou por um instante e virou-se.
Daquele ponto, a visão do interior completo do prédio revelava o contraste: o que fora um depósito militar agora era um centro de registros, ainda germinal, mas vivo.
O prédio era antigo, frio, ainda pouco adaptado — mas era dele.
O CEAET, Centro de Exploração Aeroespacial de Taeris, ocupava oficialmente aquela estrutura, uma ordem direta da general Lou-reen. Ele se lembrava bem das palavras dela, semanas antes:
“— Se você vai continuar subindo em torres pra olhar as estrelas, que pelo menos faça isso dentro de um prédio reforçado e sob supervisão militar.”
Pelo jeito tinha dado certo. Seja lá quem estivesse mandando os mercenários atrás dele e do cetro, havia entendido a lição: ninguém ia passar pela Lou-reen. Ele sorriu e terminou de subir.
Maera estava na mesa de observação, dobrada sobre um mapa estelar, refazendo curvas e comparando ângulos. Uma lamparina longa pendia sobre ela, jogando luz dourada sobre o pergaminho e o contorno dos ombros.
Marco atravessou o salão com passos firmes e lhe entregou uma pasta de couro gasto.
— Nascer do sol às nove e quatro — disse Marco, os olhos nos papéis. — Inclinação solar de 73,81°. Registro completo das angulações ao longo do dia. — Estendeu os dados com naturalidade, como parte de uma engrenagem bem ajustada.
Maera pegou os papéis sem levantar muito os olhos.
— Obrigada. Vou inserir agora.
Marco caminhou até uma das janelas altas da ala e apoiou-se no parapeito frio. O céu do final de tarde já se tingia de vermelho queimado. Lauris afundava lentamente atrás das muralhas de Yhe-for.
— Pôr do sol às…
“Vinte e sete ponto zero um”, disse Nova, com exatidão.
Marco completou em voz alta, como se tivesse feito a conta ali mesmo:
— …vinte e sete e um.
Maera riu, ainda com a pena na mão.
— Um dia eu quero saber o horário de cabeça assim.
“Você podia ao menos citar a fonte”, murmurou Nova, direto na mente dele.
Marco reprimiu o sorriso.
— Um dia você vai — respondeu para Maera, como se fosse só dele a resposta.
Voltou para perto da mesa, apoiando-se no canto e observando as curvas que ela traçava.
— Está ficando boa nisso — comentou.
— Tive um bom professor — devolveu, sem levantar os olhos, mas com o mesmo sorriso nos lábios.
Marco observou por mais um instante o traço firme da pena sobre o mapa, depois bateu levemente no canto da mesa com as costas da mão.
— Vamos subir?
Maera levantou os olhos, entendendo de imediato. Limpou a ponta da pena num pano escuro e deixou o mapa secando ao lado da lamparina.
— As estrelas já começaram a surgir?
— As primeiras, sim — respondeu ele, lançando um olhar pela janela. — E Lauris ainda deixa um pouco de luz no horizonte. Hora boa pra começar.
Ela recolheu as anotações mais recentes, prendeu os cabelos com um nó rápido e o acompanhou até a escada lateral que levava ao terraço.
O topo do prédio não fora feito para observações, mas Marco passara as últimas semanas adaptando o espaço. Três telescópios estavam posicionados nos cantos da mureta: um fixo no planeta Maera, outro dedicado ao acompanhamento da lua, e o terceiro livre, ajustado todas as noites conforme a rotação do céu.
Uma única luz já dominava o leste e Marco a apontou com o queixo.
— PB-1. Ele reiniciou a translação. Nova órbita, novo ciclo.
Maera já se posicionava no telescópio móvel, abrindo o caderno noturno ao lado.
— Horário? — perguntou.
“Vinte e sete ponto doze”, informou Nova, seca.
Marco disfarçou:
— Vinte e sete e doze.
Maera anotou com um sorriso breve, já traçando a linha de azimute com a régua.
— Setenta e dois graus — murmurou. — Subiu um pouco em relação a ontem.
— O suficiente pra confirmar que ele completou o ano — disse Marco. — Curto, mas constante.
Ela olhou para o céu, pensativa.
— A vida inteira achei que isso fosse só uma estrela, mas é um planeta.
Fez uma pausa, e acrescentou com sinceridade quase infantil:
— Nunca passou pela cabeça de ninguém que aquilo ali… pudesse ser outro mundo.
Marco manteve os olhos no céu, mas sorriu.
— Agora passa. O que é ótimo — disse Marco, já se afastando para o próximo telescópio. — Vamos pra Maera?
Ela assentiu e o seguiu até o telescópio fixo. Marco ajustou a inclinação com cuidado, girando o tambor devagar até travar no ponto exato.
— Está visível. Mais ao sul do que ontem. Quase dois graus de diferença.
Maera se posicionou ao lado, anotando.
— Um vírgula sete?
— Um vírgula oito, mas gostei do seu chute.
— Curvatura?
— Mantida. Mas talvez um leve desvio na leitura orbital, ou alguma interferência atmosférica.
— Vamos comparar com as leituras de ontem — sugeriu, já rabiscando na margem da folha.
O silêncio se instalou entre eles, confortável. Apenas o som do pergaminho sendo riscado, o girar de engrenagens e o céu se fechando cada vez mais em estrelas.
Marco parou por um instante, os olhos erguidos, virou-se lentamente para o horizonte oposto, onde o céu ainda estava limpo.
— Meu planeta está aí, em algum lugar — disse, num tom calmo.
Maera se virou para ele, os braços cruzados sobre a mureta.
— Você sente falta?
— Sinto. Mas… tô me acostumando com Taeris.
Fez uma pausa, olhando em volta.
— Apesar de às vezes parecer que esse lugar ainda não é meu.
Ela se aproximou um pouco mais, apoiando-se ao lado.
— Talvez ele não fosse mesmo. Mas… você tá construindo um novo agora.
Marco não respondeu logo. Observou o céu mais uma vez antes de sorrir.
— É… Acho que sim.
Maera assentiu. Sem dizer nada, deu a volta até o telescópio. Abaixou-se devagar, encostando o olho na ocular.
Ficou alguns segundos em silêncio.
— Ué. — Murmurou, franzindo a testa. — Ele… piscou?
Marco ergueu o olhar.
— Como assim?
— O brilho. Tinha um ponto fixo, azul. Apagou por um instante e depois voltou.
Marco já se movia em direção ao telescópio.
— Deixa eu ver.
Ela se afastou um passo e Marco olhou. Ajustou, apertou os olhos.
— É ela. — disse, seco. — Uma lua, passou rápido, bem rente. Mas foi trânsito, sim, a primeira lua confirmada.
Ele recuou, animado, os olhos ainda grudados no céu.
— E se tem uma, pode ter mais.
Maera sorriu, olhando para cima também.
— Queria poder ver mais de perto — murmurou. — O traço já não é suficiente. Dá vontade de enxergar além da curva.
Marco assentiu, os olhos ainda no céu.
— Já tô trabalhando nisso.
Ela virou-se levemente, curiosa.
— Sério?
— Fui atrás do vidraceiro da base. Peguei uns blocos de vidro bruto e ele topou me ajudar com o polimento.
— Polimento?
— Isso, tô tentando moldar uma objetiva maior. Quanto maior a curvatura, mais luz entra. Se der certo, melhora o alcance.
Maera sorriu, apoiando o cotovelo na mureta.
— Gosto quando você fala “melhora o alcance”. Soa como se fosse simples.
— Não é, mas tô errando menos, já é alguma coisa.
Maera olhou para o céu um instante a mais, depois voltou os olhos para Marco.
— Obrigada.
Ele virou o rosto na direção dela, sem entender de imediato.
— Pelo quê?
— Por isso tudo. — Ela fez um gesto leve com a cabeça, englobando o céu, os telescópios, o caderno em mãos. — Por me mostrar que eu posso fazer parte de algo.
Fez uma pausa.
— Pela primeira vez na vida, eu sinto que pertenço a algum lugar. Mesmo que esse lugar seja… o céu, intocável.
Marco soltou uma risada curta.
— O céu não é intocável. — Virou-se para ela, o sorriso mais largo agora. — Eu sou um astronauta, lembra?
Ela riu também, balançando a cabeça.
— É, tem isso.
— Mas sério. — Ele apoiou os braços na mureta, olhando o horizonte que escurecia. — Eu tô feliz de ter te conhecido também. Aqui em cima… é como se eu ficasse mais perto do que realmente importa. Longe das confusões de Taeris.
Virou o rosto para ela.
— Você entende?
Maera assentiu, sem falar nada.
Depois de alguns segundos, ela cruzou os braços e olhou pra ele de lado, com um meio sorriso.
— E o treinamento com a general? Sobrevivendo?
Marco bufou, rindo.
— Sobrevivendo é generoso. Aquilo lá não é treino, é tortura com hora marcada, mas… tô ficando rápido.
— Rápido o suficiente pra escapar dela?
— Ainda não, mas o bastante pra não morrer tentando.
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