Yhe-For, 42 dias após o incidente com Elucydor

    Marco empurrou a porta dupla da ala norte e entrou.

    O eco dos próprios passos o acompanhou pelo primeiro andar quase vazio. Das dezenas de antigas prateleiras, apenas seis abrigavam rolos de pergaminhos — os registros que ele e Maera vinham acumulando. O restante permanecia vazio, aguardando o tempo e o trabalho preencherem o lugar.

    Ele atravessou o corredor central com calma. Subiu os degraus da escada de madeira reforçada e, antes de alcançar o topo, parou por um instante e virou-se.

    Daquele ponto, a visão do interior completo do prédio revelava o contraste: o que fora um depósito militar agora era um centro de registros, ainda germinal, mas vivo.

    O prédio era antigo, frio, ainda pouco adaptado — mas era dele.

    O CEAET, Centro de Exploração Aeroespacial de Taeris, ocupava oficialmente aquela estrutura, uma ordem direta da general Lou-reen. Ele se lembrava bem das palavras dela, semanas antes:

    “— Se você vai continuar subindo em torres pra olhar as estrelas, que pelo menos faça isso dentro de um prédio reforçado e sob supervisão militar.”

    Pelo jeito tinha dado certo. Seja lá quem estivesse mandando os mercenários atrás dele e do cetro, havia entendido a lição: ninguém ia passar pela Lou-reen. Ele sorriu e terminou de subir.

    Maera estava na mesa de observação, dobrada sobre um mapa estelar, refazendo curvas e comparando ângulos. Uma lamparina longa pendia sobre ela, jogando luz dourada sobre o pergaminho e o contorno dos ombros.

    Marco atravessou o salão com passos firmes e lhe entregou uma pasta de couro gasto.

    — Nascer do sol às nove e quatro — disse Marco, os olhos nos papéis. — Inclinação solar de 73,81°. Registro completo das angulações ao longo do dia. — Estendeu os dados com naturalidade, como parte de uma engrenagem bem ajustada.

    Maera pegou os papéis sem levantar muito os olhos.

    — Obrigada. Vou inserir agora.

    Marco caminhou até uma das janelas altas da ala e apoiou-se no parapeito frio. O céu do final de tarde já se tingia de vermelho queimado. Lauris afundava lentamente atrás das muralhas de Yhe-for.

    — Pôr do sol às…

    “Vinte e sete ponto zero um”, disse Nova, com exatidão.

    Marco completou em voz alta, como se tivesse feito a conta ali mesmo:

    — …vinte e sete e um.

    Maera riu, ainda com a pena na mão.

    — Um dia eu quero saber o horário de cabeça assim.

    “Você podia ao menos citar a fonte”, murmurou Nova, direto na mente dele.

    Marco reprimiu o sorriso.

    — Um dia você vai — respondeu para Maera, como se fosse só dele a resposta.

    Voltou para perto da mesa, apoiando-se no canto e observando as curvas que ela traçava.

    — Está ficando boa nisso — comentou.

    — Tive um bom professor — devolveu, sem levantar os olhos, mas com o mesmo sorriso nos lábios.

    Marco observou por mais um instante o traço firme da pena sobre o mapa, depois bateu levemente no canto da mesa com as costas da mão.

    — Vamos subir?

    Maera levantou os olhos, entendendo de imediato. Limpou a ponta da pena num pano escuro e deixou o mapa secando ao lado da lamparina.

    — As estrelas já começaram a surgir?

    — As primeiras, sim — respondeu ele, lançando um olhar pela janela. — E Lauris ainda deixa um pouco de luz no horizonte. Hora boa pra começar.

    Ela recolheu as anotações mais recentes, prendeu os cabelos com um nó rápido e o acompanhou até a escada lateral que levava ao terraço.

    O topo do prédio não fora feito para observações, mas Marco passara as últimas semanas adaptando o espaço. Três telescópios estavam posicionados nos cantos da mureta: um fixo no planeta Maera, outro dedicado ao acompanhamento da lua, e o terceiro livre, ajustado todas as noites conforme a rotação do céu.

    Uma única luz já dominava o leste e Marco a apontou com o queixo.

    — PB-1. Ele reiniciou a translação. Nova órbita, novo ciclo.

    Maera já se posicionava no telescópio móvel, abrindo o caderno noturno ao lado.

    — Horário? — perguntou.

    “Vinte e sete ponto doze”, informou Nova, seca.

    Marco disfarçou:

    — Vinte e sete e doze.

    Maera anotou com um sorriso breve, já traçando a linha de azimute com a régua.

    — Setenta e dois graus — murmurou. — Subiu um pouco em relação a ontem.

    — O suficiente pra confirmar que ele completou o ano — disse Marco. — Curto, mas constante.

    Ela olhou para o céu, pensativa.

    — A vida inteira achei que isso fosse só uma estrela, mas é um planeta.

    Fez uma pausa, e acrescentou com sinceridade quase infantil:

    — Nunca passou pela cabeça de ninguém que aquilo ali… pudesse ser outro mundo.

    Marco manteve os olhos no céu, mas sorriu.

    — Agora passa. O que é ótimo — disse Marco, já se afastando para o próximo telescópio. — Vamos pra Maera?

    Ela assentiu e o seguiu até o telescópio fixo. Marco ajustou a inclinação com cuidado, girando o tambor devagar até travar no ponto exato.

    — Está visível. Mais ao sul do que ontem. Quase dois graus de diferença.

    Maera se posicionou ao lado, anotando.

    — Um vírgula sete?

    — Um vírgula oito, mas gostei do seu chute.

    — Curvatura?

    — Mantida. Mas talvez um leve desvio na leitura orbital, ou alguma interferência atmosférica.

    — Vamos comparar com as leituras de ontem — sugeriu, já rabiscando na margem da folha.

    O silêncio se instalou entre eles, confortável. Apenas o som do pergaminho sendo riscado, o girar de engrenagens e o céu se fechando cada vez mais em estrelas.

    Marco parou por um instante, os olhos erguidos, virou-se lentamente para o horizonte oposto, onde o céu ainda estava limpo.

    — Meu planeta está aí, em algum lugar — disse, num tom calmo.

    Maera se virou para ele, os braços cruzados sobre a mureta.

    — Você sente falta?

    — Sinto. Mas… tô me acostumando com Taeris.

    Fez uma pausa, olhando em volta.

    — Apesar de às vezes parecer que esse lugar ainda não é meu.

    Ela se aproximou um pouco mais, apoiando-se ao lado.

    — Talvez ele não fosse mesmo. Mas… você tá construindo um novo agora.

    Marco não respondeu logo. Observou o céu mais uma vez antes de sorrir.

    — É… Acho que sim.

    Maera assentiu. Sem dizer nada, deu a volta até o telescópio. Abaixou-se devagar, encostando o olho na ocular.

    Ficou alguns segundos em silêncio.

    — Ué. — Murmurou, franzindo a testa. — Ele… piscou?

    Marco ergueu o olhar.

    — Como assim?

    — O brilho. Tinha um ponto fixo, azul. Apagou por um instante e depois voltou.

    Marco já se movia em direção ao telescópio.

    — Deixa eu ver.

    Ela se afastou um passo e Marco olhou. Ajustou, apertou os olhos.

    — É ela. — disse, seco. — Uma lua, passou rápido, bem rente. Mas foi trânsito, sim, a primeira lua confirmada.

    Ele recuou, animado, os olhos ainda grudados no céu.

    — E se tem uma, pode ter mais.

    Maera sorriu, olhando para cima também.

    — Queria poder ver mais de perto — murmurou. — O traço já não é suficiente. Dá vontade de enxergar além da curva.

    Marco assentiu, os olhos ainda no céu.

    — Já tô trabalhando nisso.

    Ela virou-se levemente, curiosa.

    — Sério?

    — Fui atrás do vidraceiro da base. Peguei uns blocos de vidro bruto e ele topou me ajudar com o polimento.

    — Polimento?

    — Isso, tô tentando moldar uma objetiva maior. Quanto maior a curvatura, mais luz entra. Se der certo, melhora o alcance.

    Maera sorriu, apoiando o cotovelo na mureta.

    — Gosto quando você fala “melhora o alcance”. Soa como se fosse simples.

    — Não é, mas tô errando menos, já é alguma coisa.

    Maera olhou para o céu um instante a mais, depois voltou os olhos para Marco.

    — Obrigada.

    Ele virou o rosto na direção dela, sem entender de imediato.

    — Pelo quê?

    — Por isso tudo. — Ela fez um gesto leve com a cabeça, englobando o céu, os telescópios, o caderno em mãos. — Por me mostrar que eu posso fazer parte de algo.

    Fez uma pausa.

    — Pela primeira vez na vida, eu sinto que pertenço a algum lugar. Mesmo que esse lugar seja… o céu, intocável.

    Marco soltou uma risada curta.

    — O céu não é intocável. — Virou-se para ela, o sorriso mais largo agora. — Eu sou um astronauta, lembra?

    Ela riu também, balançando a cabeça.

    — É, tem isso.

    — Mas sério. — Ele apoiou os braços na mureta, olhando o horizonte que escurecia. — Eu tô feliz de ter te conhecido também. Aqui em cima… é como se eu ficasse mais perto do que realmente importa. Longe das confusões de Taeris.

    Virou o rosto para ela.

    — Você entende?

    Maera assentiu, sem falar nada.

    Depois de alguns segundos, ela cruzou os braços e olhou pra ele de lado, com um meio sorriso.

    — E o treinamento com a general? Sobrevivendo?

    Marco bufou, rindo.

    — Sobrevivendo é generoso. Aquilo lá não é treino, é tortura com hora marcada, mas… tô ficando rápido.

    — Rápido o suficiente pra escapar dela?

    — Ainda não, mas o bastante pra não morrer tentando.

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