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    Capítulo 065

    Terreno Perigoso

    Bem ao norte de Cyoria, bem no meio de uma cordilheira densamente florestada, havia um vale isolado, desprovido de qualquer vegetação. Em vez disso, era coberto por rochas pontiagudas e quebradas de todos os formatos e tamanhos. Não havia razão óbvia para o lugar ser tão sem vida e desolado, especialmente considerando o quão verdejantes eram as montanhas ao redor. Enquanto estava em um penhasco com vista para o vale, Zorian se perguntava sobre aquilo. Seria o vale tão rochoso e desolado por causa do que habitava ali, ou seria o contrário, os habitantes do vale o escolheram precisamente por ser tão adequado para eles? Provavelmente a primeira opção, mas nunca se podia ter certeza… poderia haver alguma magia geomântica1 sutil cercando o lugar.

    “Zorian”, disse Zach, interrompendo seus pensamentos. “A vista é… bonita, eu acho. Se você gosta de pedras ou sei lá. Mas por que diabos a gente tá aqui, exatamente?”

    “Você não tem apreço pelas maravilhas da natureza”, suspirou Zorian.  Supondo que isso fosse realmente uma maravilha natural, e não algo que os elementais da terra tivessem feito para tornar seu lar mais confortável para si mesmos, de qualquer forma. “Você estava comigo quando conversamos com aquela comunidade de caçadores algumas horas atrás, não estava?”

    “Sim”, Zach assentiu. “Você disse a eles que estávamos procurando elementais e eles nos enviaram para cá. O que é ótimo, mas por que estamos procurando elementais de repente? Você já deveria saber que eu realmente odeio todo esse ato misterioso. Se não começar a explicar as coisas agora mesmo, vou começar uma luta corpo a corpo com você aqui mesmo na beira deste penhasco.”

    Zorian lançou-lhe um olhar incrédulo, antes de apontar para as rochas afiadas e pontiagudas na base do penhasco.

    “Não pense por um segundo que eu não vou”, alertou Zach. “Um recomeço interrompido é um pequeno preço a pagar se isso te ensinar a não fazer mais essas merdas.”

    “Não é nada sinistro”, suspirou Zorian.  “É que é uma ideia bem maluca e eu não queria te incomodar com isso. Eu disse que você podia ficar de fora dessa, não disse?”

    “Você esquece com quem está falando”, Zach deu um sorriso largo. “Eu sou o cara que lutou contra o dragão mais infame do nosso tempo só para ver se eu conseguia, desci o mais fundo que pude na Masmorra antes de morrer e enfrentei toda a força invasora de Ibasan sozinho. Não sou estranho a ideias malucas.”

    “Verdade”, disse Zorian.

    “Além disso”, disse Zach, soando mais sério dessa vez. “Estamos juntos nessa. Pare de tentar fazer as coisas sozinho, está ficando muito irritante.”

    “Tá bom, tá bom, entendi”, disse Zorian, erguendo as mãos em derrota. “Olha… o objetivo de tudo isso é tentar descobrir onde os outros primordiais estão presos.”

    “O quê?” perguntou Zach, incrédulo.  “Estamos tendo tantos problemas com essa coisa do Panaxeth, e você quer encontrar mais?”

    “Sim”, assentiu Zorian. “Bem, talvez. Como eu disse, é uma ideia bem maluca. É que… eu estava pensando que talvez precisasse soltar um primordial no mundo, e percebi que fazer isso com o Panaxeth não seria uma boa ideia. A prisão do Panaxeth fica no meio de Cyoria, e já há muita atenção voltada para ela. Então pensei: por que não encontro o meu próprio primordial? Um que fique em algum lugar isolado, onde ninguém vá nos perturbar enquanto trabalhamos?”

    Zach olhou para ele como se tivesse acabado de declarar que era secretamente um dragão metamorfo e começasse a brotar chifres.

    “Você fez isso de propósito, não fez?”, perguntou ele.

    “O quê? Descrever a ideia da maneira mais perturbadora possível?” perguntou Zorian com um sorriso irônico. “Sim.” Ele balançou a cabeça.  “Mas é verdade — era basicamente nisso que eu estava pensando.”

    “Mas por quê?” perguntou Zach. “Isso é sobre encontrar uma maneira de você sair do loop temporal?”

    Zorian olhou surpreso para seu companheiro viajante do tempo.

    “Não fique tão surpreso”, zombou Zach. “Você já me contou como o próprio espaço pareceu entrar em colapso quando Panaxeth tentou sair da prisão. É natural imaginar se esse tipo de buraco espacial poderia ser usado para criar algum tipo de passagem para fora deste lugar. Eu também pensei nisso. Admito que não tenho ideia de como você conseguiria fazer isso…”

    “Nem eu”, admitiu Zorian. “Mas foi a única coisa em que consegui pensar.”

    Zach murmurou pensativamente. “Achei que você tinha dito que o reinício entrou em colapso imediatamente quando Panaxeth saiu da prisão?” disse ele.  “Da última vez que falei com você, você achava que Panaxeth sair da caixa era uma das condições para encerrar o loop temporal. Você mudou de ideia sobre isso ou tem alguma maneira de contornar isso?”

    “É óbvio que o loop temporal pode ser enganado de várias maneiras”, disse Zorian. “Por isso, pensei que talvez se confinássemos a área em uma dimensão de bolso e depois liberássemos o primordial, o loop temporal poderia não detectar isso como uma violação.”

    “Por que você… ah!”, disse Zach, arregalando os olhos ao perceber aonde Zorian queria chegar. “Porque o primordial ainda está tecnicamente aprisionado! Ele teria que romper a dimensão de bolso que criamos antes que o loop temporal o considerasse ‘livre’.”

    “Essa é a ideia”, disse Zorian, assentindo.

    “Mas o primordial teria alguma dificuldade em fazer isso?”, perguntou Zach, franzindo a testa. “Duvido que consigamos criar uma prisão remotamente tão forte quanto essas prisões divinamente criadas que os mantêm atualmente.”

    “Sempre poderíamos empilhar várias dimensões de bolso ao nosso redor”, disse Zorian.  “Pelo menos eu espero. Não sei como funcionam as dimensões de bolso, mas elas obviamente podem ser empilhadas umas sobre as outras até certo ponto. Caso contrário, o loop temporal não seria capaz de recriar as várias dimensões de bolso espalhadas pelo mundo.”

    “Sabe, isso levanta uma questão importante”, disse Zach. “Onde vamos encontrar alguém para nos ensinar a fazer dimensões de bolso? Quer dizer, essa é uma das disciplinas mágicas mais raras que existem. Acho que nunca encontrei um mago que consiga criar uma. Admito que nunca procurei muito por esses segredos, mas ainda assim… Pior ainda, você está falando sobre a criação de dimensões de bolso de uma escala e sofisticação absurdas — precisamos de alguém que seja incrivelmente bom nessa habilidade mágica obscura, não alguém que mal consiga fazê-la. Encontrar uma pessoa assim… Acho que isso pode ser ainda mais difícil do que reunir todas as peças da Chave.”

    Zorian ouviu pacientemente as preocupações de Zach, assentindo levemente de vez em quando. Tudo aquilo era verdadeiro.  E ainda assim…

    “Tenho quase certeza de que já conheço uma maga que é muito boa em criar e manipular dimensões de bolso”, disse Zorian.

    “O quê? Quem?”, perguntou Zach.

    “Silverlake”, disse Zorian, suspirando pesadamente. Ele realmente não queria admitir que precisava dela, mas…

    “A bruxa maluca que te mandou matar o caçador cinza?” perguntou Zach, incrédulo.

    “A própria”, confirmou Zorian. “Pense nisso. Por que mais não conseguimos localizar a maldita cabana dela? Recuso-me a acreditar que as proteções dela sejam boas o suficiente para resistir a uma varredura sistemática de toda a área feita por nós dois. Simplesmente não é possível. E ela também não está alterando nossas memórias — a menos que seja uma maga mental divina que faça até os anciões Aranea parecerem crianças em comparação, eu pelo menos conseguiria dizer que minha mente foi adulterada depois do ocorrido.”

    “Você acha que ela esconde a cabana dentro de uma dimensão de bolso?”, perguntou Zach.

     “Não vejo o que mais poderia ser”, disse Zorian.

    “Hm. Bem, acho melhor darmos um jeito de pegar esses ovos idiotas logo, então”, disse Zach, dando de ombros despreocupadamente.

    Como se aquilo fosse o fim da história. Zorian suspeitava que, mesmo que trouxessem os ovos para Silverlake, aquilo seria apenas o começo de suas dores de cabeça com ela.

    De qualquer forma, aquele era o fim do assunto por um tempo. Após uma breve discussão sobre a melhor rota a seguir pelo labirinto rochoso, eles usaram um feitiço de voo para flutuar penhasco abaixo e chegar a um dos maiores afloramentos rochosos que se projetavam do vale. De lá, decidiram conservar mana tentando avançar a pé. Além disso, os caçadores alegavam que os elementais da terra não gostavam que as pessoas voassem sobre suas casas e atiravam pedras em quem os ofendesse dessa forma.

    Uma hora depois, perceberam que haviam encarado o lugar com muita leviandade.  A paisagem não continha predadores tentando emboscá-los, mas era excepcionalmente difícil e perigosa de atravessar a pé. O solo era acidentado e irregular, com um arranjo labiríntico de cristas e saliências rochosas, e frequentemente era muito menos sólido do que parecia à primeira vista. Um passo descuidado poderia facilmente fazer com que ele se desfizesse sob os pés, com consequências desastrosas — as pedras do vale eram muito angulares e afiadas, e às vezes até tinham o formato de facas e estrepes2, então qualquer queda ou movimento desequilibrado facilmente levava a ferimentos graves.

    Nem Zorian nem Zach acabaram se machucando, mas isso tornou seu progresso terrivelmente lento e miserável.

    “Ugh”, disse Zach, disparando casualmente uma fraca onda de desintegração na rocha próxima para alisá-la um pouco. Assim que todas as arestas e espinhos foram removidos, ele se sentou na pedra e lançou um longo olhar para Zorian. “Devo dizer que os caçadores com quem conversamos têm uma certa propensão por eufemismos. Quando disseram que os elementais eram ‘um pouco difíceis de alcançar’, eu esperava algo mais fácil do que isso.”

    “Bem, eles estão morando nestas montanhas há meses”, disse Zorian. “Talvez para eles, isso seja apenas complicado, e não uma jornada árdua. Mas sim, isso está ficando um pouco ridículo. Nesse ritmo, vamos levar um dia inteiro para chegar ao centro.”

    “Então… vamos voar até lá ou o quê?” sugeriu Zach.

    “Os caçadores disseram que os elementais atiram em pessoas que voam sobre a casa deles”, disse Zorian, balançando a cabeça. “Sei que provavelmente conseguiríamos sobreviver ao bombardeio deles, mas estamos aqui para pedir conselhos. Não queremos irritá-los antes mesmo de as negociações começarem. Deixe-me tentar uma coisa.”

    Dito isso, Zorian rapidamente tirou uma poção vermelha brilhante de sua mochila e a engoliu.

    Os caçadores cinza tinham sentidos incríveis. O mais proeminente deles, é claro, era a capacidade de sentir magia, mas isso era apenas a ponta do iceberg em relação à capacidade de um caçador cinza de perceber o ambiente.  A essa altura, Zach e Zorian já haviam descoberto que os caçadores cinza também possuíam uma capacidade incrivelmente aguçada de sentir correntes de ar e vibrações no solo. Juntamente com sua incrível percepção mágica e outros sentidos mais mundanos, isso dava aos caçadores cinza uma consciência quase onisciente de tudo ao seu redor. As poções de percepção dos caçadores cinza que Zach e Zorian vinham criando nos últimos reinícios ignoravam tudo isso, concentrando-se principalmente na percepção mágica dos caçadores cinza. Isso acontecia tanto porque estavam explorando um território novo e precisavam priorizar, quanto porque, mesmo que pudessem condensar toda a percepção dos caçadores cinza em uma única poção, era duvidoso que qualquer um deles conseguisse processar a informação sem desmaiar.

    Recentemente, porém, Zorian decidira experimentar um pouco com a parte de percepção de tremores dos caçadores cinza e encomendou uma poção que concederia essa habilidade ao alquimista com quem estavam trabalhando. Era a poção que ele acabara de beber, e este seria seu primeiro teste real em campo.

     Cerca de 10 segundos depois de beber a poção, Zorian sentiu a pele formigar antes que sua consciência… se expandisse. A princípio, ela estava abafada, mas mudou rapidamente no momento em que Zorian deu um passo à frente. Ele sentiu o pé tocar o chão de uma forma que nunca sentira antes, e uma sensação alienígena que quase o fez cair ali mesmo. Uma pulsação forte e vívida emanou de seu pé, espalhando-se pelo labirinto rochoso ao seu redor antes de ser refletida de volta até ele. Em menos de um segundo, ele tinha um mapa tridimensional dos arredores gravado em sua mente.

    “Me dê alguns minutos para me acostumar com isso”, disse ele a Zach.

    Após quinze minutos andando de um lado para o outro e pulando no lugar, Zorian tinha quase certeza de que conseguia interpretar rudimentarmente o que seu novo sentido lhe dizia. No entanto, mesmo isso, que provavelmente era apenas uma sombra do que o verdadeiro caçador cinza era capaz, deveria lhe permitir navegar sem esforço pelo vale. Ele fez um gesto para que Zach o seguisse e eles reiniciaram sua jornada em direção à casa dos elementais.

     A viagem foi muito rápida dessa vez. Cada passo que Zach e Zorian davam enviava pulsos vívidos pelo solo ao redor, mapeando os arredores na mente de Zorian e permitindo-lhe identificar qual terreno era instável demais para suportar o peso deles. Zorian sentiu que provavelmente era assim que a caçadora cinza sempre conseguia detectar armadilhas enterradas com as quais Zorian tentava prendê-la, mesmo quando não tinham nada de mágico. Cada vez que ela dava um de seus malditos saltos, as ondas de choque geradas pela aterrissagem pulsavam pelo solo ao redor, informando-a não apenas sobre a disposição do terreno ao redor, mas também sobre seu conteúdo.

    Mas isso era um pensamento para outra hora, pois não demorou muito para que finalmente chegassem ao lugar que procuravam.

    Eles sabiam que tinham chegado porque as rochas ao redor se desfizeram em pedaços e seis elementais da terra saíram dentro delas para bloquear seu caminho.

    Eles eram um grupo diverso.  Uma era uma enorme rocha com quatro pernas curtas e um par de braços rochosos gigantes que provavelmente poderiam esmagá-los e transformá-los em pasta com um único golpe de mão. O outro era algo como um gato-lagarto de seis patas esculpido em pedra brilhante, com suas escamas afiadas e eriçadas pela intrusão. O terceiro era uma cabeça humana gigante e alongada, subindo e descendo silenciosamente pelo chão, que ondulava e fluía como água em sua presença. O quarto era uma centopeia de obsidiana incrivelmente realista, parecendo mais um monstro de verdade do que um espírito elemental.

    O quinto e o sexto elementais de terra, no entanto, eram claramente os líderes do grupo. Ambos tinham cerca de três metros e meio de altura, aparência bastante humanoide e estavam armados com armas de metal de verdade, que pareciam feitas por humanos, em vez de feitas de pedra e similares. Um deles tinha uma figura musculosa, quatro rostos dispostos ao redor da cabeça e carregava nas mãos uma espada enorme. O outro parecia um velho, com uma barba feita de pedras afiadas como facas e uma longa cauda em forma de chicote arrastando-se atrás dele. Este carregava uma enorme maça nas mãos, brandindo-a no ar ameaçadoramente.

    Após alguns segundos tensos, o elemental de quatro rostos deu um passo à frente em direção a eles.

    “Proibido”, disse-lhes simplesmente. Zorian meio que esperava que a voz do elemental fosse estrondosa e grave, considerando seu tamanho e composição, mas, na verdade, era muito nítida e falada em volume normal.

    “Nós trazemos presentes”, respondeu Zorian, tirando uma caixa do bolso do paletó e mostrando o conteúdo ao elemental gigante à sua frente. Zach fez o mesmo.

    As caixas continham um par de pedras vermelhas do tamanho de um punho, brilhando com uma luz interior. As chamadas ‘pedras coração-de-dragão’ eram altamente cobiçadas por algumas criaturas mágicas, incluindo elementais de terra. Essas pedras eram difíceis de obter, já que, via de regra, só podiam ser encontradas nas profundezas da Masmorra, e os humanos não tinham nenhuma utilidade real para elas além de fabricar joias caras e negociá-las com criaturas que as cobiçavam. Felizmente, Zach já havia encontrado uma caverna inteira cheia delas em algum momento, então foi bastante simples adquirir algumas.

    No momento em que os elementais de terra viram as pedras, mudaram rapidamente de tom. Os elementais menores ao redor tentaram se aproximar para olhar mais de perto, mas os dois líderes rapidamente os fizeram recuar com alguns movimentos ameaçadores. Depois disso, o elemental de quatro faces falou novamente, limitando-se novamente a uma única palavra.

    “Venham”, disse ele simplesmente.

    Os quatro elementais menores ficaram para trás, enquanto os dois gigantes humanoides os conduziram a uma das grandes formações rochosas que se revelaram ocas. Lá dentro, encontraram um interior que não pareceria terrivelmente deslocado de uma habitação humana — havia mesas, cadeiras, prateleiras, armários e até alguns vasos de plantas. Itens obviamente de fabricação humana estavam espalhados pela área, alguns deles irremediavelmente quebrados. Zorian presumiu que fossem troféus de batalha para alertar e intimidar visitantes humanos contra traições, mas era difícil ter certeza — espíritos eram notórios por terem um senso estético muito estranho, então talvez os elementais simplesmente achassem o arranjo agradável aos olhos de alguma forma.

    No fundo da câmara, oposto à entrada, estava o elemental que eles vieram ver. Stonechild, o elemental ancião.

    Zorian não sabia o que esperava ver. Um enorme monólito de pedra com um rosto gigante esculpido nele? Uma montanha em miniatura? Uma versão maior dos elementais humanoides que os escoltaram até aquele lugar?

    O que ele definitivamente não esperava era se ver diante do que parecia ser um garoto de dez anos. E não um garoto toscamente esculpido em pedra — a forma de Stonechild era incrivelmente realista e vivida, e ele parecia nada mais do que uma verdadeira criança humana, ainda que uma cuja pele fosse um pouco mais acastanhada do que era comum naquela região tão ao norte.

    Havia apenas uma coisa que indicava a natureza elemental de Stonechild: seus olhos eram completamente negros, desprovidos de qualquer estrutura interna que um olho humano de verdade deveria ter. Era como se alguém tivesse se proposto a fazer uma réplica humana impecável, mas, no fim, perdeu a paciência e decidiu simplesmente encaixar um par de pedras preciosas negras polidas nas órbitas oculares e pronto.

    “Bem-vindos”, disse Stonechild, com a voz firme e soando muito natural. Ele sorriu para eles, tranquilizando-os. “Não recebemos muitas visitas aqui, então minhas maneiras estão um pouco enferrujadas e tenho pouco a oferecer a vocês. Peço desculpas antecipadamente pela minha má hospitalidade. Gostariam de um copo d’água?”

    Zach e Zorian se entreolharam, incertos. Isso… não era bem como eles imaginavam que o grande elemental ancião se comportaria com eles.

    “Eu aceitaria um copo d’água, sim”, disse Zach, dando de ombros.

    Stonechild assentiu para si mesmo, satisfeito, e caminhou até uma prateleira próxima, que continha vários jarros de cerâmica e uma coleção de recipientes de vidro de vários tipos. Stonechild pegou o que era claramente um pote de picles a princípio, mas hesitou por um momento antes de colocá-lo de volta na prateleira. Em seguida, pegou um copo de verdade.

    Zorian observou o elemental mais velho servir um copo d’água para Zach, mexendo-se nervosamente. Por mais estranho que pareça, Stonechild o preocupava muito mais do que os dois enormes guardas elementais que estavam vigilantes na entrada do lugar. Ele não parecia tão imponente quanto eles, mas sua aparência era um sinal de perigo por si só. Era sabido que, quando se tratava de espíritos, quanto mais humanos eles eram, mais cauteloso era preciso ser perto deles. Não necessariamente porque isso os tornava mais poderosos, mas porque significava que eles entendiam os humanos o suficiente para fingir ser um. Essa compreensão, por sua vez, significava que eles podiam contra-atacar, lutar e manipular humanos de uma forma que seus semelhantes mais ignorantes não conseguiam.

    A compreensão que Stonechild tinha da mentalidade e da cultura humanas o tornava muito mais perigoso do que seria se fosse apenas um pouco mais poderoso do que um elemental comum de Terra.

    Foi interessante ver esse tipo de elemental aqui, em plena natureza selvagem. Os elementais estavam entre os espíritos mais antigos conhecidos pelo homem, mas também entre os mais alienígenas e incompreensíveis. A grande maioria deles não conseguia sequer falar de uma maneira humanamente compreensível, muito menos entender a lógica e as atitudes humanas. Essa incapacidade de humanos e elementais se entenderem, somada ao fato de que os elementais frequentemente ocupavam terras cobiçadas pelos humanos e que os elementais normalmente reagiam a provocações atacando qualquer humano ao seu alcance (a maioria dos elementais tinha dificuldade em distinguir um humano de outro), levou a muitos conflitos amargos entre os dois grupos no passado. Elementais que entendiam a humanidade no nível de Stonechild eram extremamente raros e geralmente envolviam o elemental em questão se aliando a uma comunidade humana por várias gerações. A maioria deles servia como espíritos protetores de várias Casas ou negociava algum tipo de acordo comercial com as autoridades locais em troca de serem deixados em paz.

    Para Stonechild viver naquele local isolado, longe de qualquer comunidade humana significativa, e ainda assim saber tanto sobre eles… era estranho. Zorian suspeitava que ele pudesse ter vivido originalmente em algum lugar ao sul, mas foi afastado de seu antigo lar por alguma razão.

    “Ouvi dizer que vocês trouxeram presentes para mim”, Stonechild disse finalmente.

    “Com certeza”, Zach sorriu. Os dois entregaram suas pedras de coração de dragão ao elemental, que as aceitou sem qualquer entusiasmo ou comentário aparente. Ele girou as pedras nas palmas das mãos por alguns instantes antes de colocá-las de lado na mesa próxima.

    “É um bom presente”, disse Stonechild. “Mas é realmente um presente? Eu jamais diria que sou um especialista na humanidade, mas, pela minha experiência, sua espécie raramente é tão generosa sem motivo.”

    “É um presente”, disse Zach. “Queremos algo de você, mas estamos dispostos a pagar por isso. Essas pedras são suas, independentemente do que você decida fazer.”

    “Mesmo se eu expulsar vocês dois agora?” perguntou Stonechild, curioso.

    “Mesmo assim”, confirmou Zorian.

    “Hmm. Acho que gosto de vocês dois”, disse Stonechild. “Então, o que vocês querem de mim? Já aviso de antemão que não gosto de lutar. Eu e minha espécie não seremos seus mercenários, não importa quanto vocês estejam dispostos a pagar.”

    “Só queremos conhecimento”, disse Zorian.

    “Só conhecimento?” repetiu Stonechild, estreitando ligeiramente os olhos negros. “E ainda assim você está disposto a pagar um preço tão alto, só pela chance de me pedir isso. Certamente não é ‘apenas’ conhecimento, então. Que tipo de segredos proibidos estão buscando?”

    “Queremos saber onde os primordiais foram aprisionados”, disse Zach.

    Até então, Stonechild tinha se mostrado muito sereno e seguro de si. Para ser honesto, isso contrastava um pouco com sua aparência infantil. No entanto, quando Zach mencionou o que eles buscavam, Stonechild chegou a recuar um pouco.

    “Por que vocês buscariam o sangue ancestral?” perguntou Stonechild, inclinando-se na direção deles. “Não importa quais sejam seus motivos, vocês estão apenas convidando o desastre. Não há ganho algum nisso.”

    “Você diz isso, mas ouvi dizer que existem pessoas que ganharam grandes poderes vinculando o sangue dos primordiais a si mesmas”, disse Zorian. Não era algo que ele pretendia fazer, mas ainda queria ouvir o que Stonechild tinha a dizer sobre isso.

    “Artefatos de guerras esquecidas no início dos tempos”, disse Stonechild, acenando com a mão no ar em sinal de desdém. “Se vocês encontrarem um desses por aí neste vasto mundo, sem ser reivindicado por ninguém, isso é obviamente uma grande dádiva para vocês. Mas mexer nas gaiolas que retêm aqueles de sangue ancestral é uma completa tolice. Desde o tempo em que foram aprisionados, ninguém jamais recebeu presentes da parte deles.”

    “Você está dizendo que eles são ativamente maliciosos?” perguntou Zach, curioso.

    “Você odeia os insetos que comem suas plantações? Você tortura mosquitos por beberem seu sangue?” perguntou Stonechild. “Nós não somos nada para eles — elementais e humano, ambos.”

    “Certo, certo, não somos pessoas para eles, então eles podem fazer o que quiserem conosco”, disse Zach. “Mas tudo bem — não queremos nada dos primordiais em si. O que realmente nos interessa são aquelas dimensões de bolso sofisticadas que os contêm.”

    “Dimensões de quê?” Stonechild perguntou, inclinando a cabeça para o lado, confuso. Aparentemente, ele nunca tinha encontrado esse termo específico e não conseguia entender o significado pelo contexto fornecido.

    “As jaulas deles”, esclareceu Zach. “Aquilo que os mantém fora da nossa realidade.”

    “Ah”, Stonechild assentiu. “Isso é… menos perturbador. Mas eu o aconselho a esquecer a ideia de qualquer maneira. Romper as prisões provavelmente está além da capacidade de vocês… felizmente… mas vocês podem acabar entrando em contato acidentalmente com o prisioneiro ou atrair atenção indesejada. Poucas prisões assim são realmente desprotegidas.”

    “Nós realmente gostaríamos de dar uma olhada em uma, de qualquer forma. Você acha que poderíamos chegar a algum tipo de acordo?” disse Zorian, apontando para as pedras coração-de- dragão com a cabeça. “Há mais pedras dessas de onde essas vieram. E talvez tenhamos mais presentes para você também.”

    “Mesmo se eu estivesse disposto a ajudá-los com isso, honestamente não sei onde o sangue ancestral foi enterrado”, disse Stonechild. “Não posso ajudá-lo.”

    O elemental mais velho, disfarçado de criança, olhou para as pedras por um segundo antes de voltar a atenção para eles.

    “No entanto…” disse ele. “Talvez eu conheça alguns outros elementais que possam te ajudar.”

    “Ah, isso também serve, eu acho”, disse Zorian. “Suponho que você estaria disposto a nos passar essa informação?”

    Stonechild deu um largo sorriso.

    “Por um preço”, disse ele.

    * * *

    1. Magia de terra[]
    2. um tipo de estaca[]

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