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    Capítulo 066

    Perfeição Maculada

    Já fazia quase seis anos que Zorian vivia neste mês que se repetia sem parar. Para ser sincero, parecia ainda mais tempo. Tantas coisas haviam acontecido, e sua visão de mundo havia passado por mudanças tão radicais, que ele sentia que só seria correto se tudo tivesse acontecido ao longo de uma década ou mais. Isso o fez se perguntar como o Zach original se compararia ao garoto que ele conhecera — eles pareciam vagamente semelhantes à primeira vista, mas sem dúvida eram apenas semelhanças superficiais. Não havia como Zach ter permanecido o mesmo por várias décadas; Zorian simplesmente não conhecia o garoto muito bem antes do loop temporal e, portanto, não conseguia identificar as diferenças.

    Ainda assim, Zorian havia passado pouco mais de meia década no loop temporal e, durante todo esse tempo, nunca havia realmente se sentado com a mãe para conversar sobre as coisas. Algumas pessoas teriam ficado muito envergonhadas com isso, mas Zorian não. De fato, ele sentia que uma das coisas realmente boas sobre o loop temporal era que ele podia praticamente eliminar a interação com os pais.

    Agora, pela primeira vez em anos, ele ia puxar conversa com a Mãe… e seria sobre Daimen.

    Ele nunca imaginou que algum dia gostaria que seus pais falassem mais sobre seu irmão mais velho, mas a vida era engraçada assim às vezes.

    “Na verdade, isso me lembra de uma coisa”, disse a mãe. “Seu pai e eu vamos a Koth visitar Daimen.”

    Ah, ótimo. Ele estava esperando que ela mencionasse a viagem deles a Koth. Felizmente, isso não era algo para o qual ele precisava direcionar a conversa — apesar da escolha de palavras dela, o assunto estava claramente em primeiro plano em sua mente. Ela encontrava um jeito de trazê-lo à tona em cada recomeço.

    “Bem, isso foi um pouco repentino”, comentou Zorian, despreocupado. “O que motivou isso?”

    Se sua mãe ficou surpresa por ele demonstrar interesse real em assuntos familiares, ela não demonstrou.

    “É apenas apropriado que visitemos Daimen de tempos em tempos”, disse ela em tom de sermão. “Faz quase um ano desde a última vez que nos vimos. Laços familiares são importantes.”

    “Aham”, disse Zorian em tom condescendente. “Não faria mais sentido o Daimen vir visitar vocês? Parece que seria bem mais fácil do que vocês viajarem até Koth.”

    “Bem”, disse ela, pausando um pouco. “Você provavelmente tem razão. Mas sabe como o Daimen é determinado. Ele anda muito animado com o que quer que esteja procurando. Não tem como ele tirar uma folga agora, nem mesmo para visitar a família.”

    “Entendo”, disse Zorian. A parte velha e amarga dele sabia que eles nunca teriam sido tão compreensivos se ele tivesse tentado fazer o mesmo. Não, se ele tivesse ignorado a família por quase um ano, perdendo todos os jantares em família e coisas do tipo, nunca teria ouvido o fim daquilo. Mas isso não ajudava no momento, então ele afastou esses pensamentos e se concentrou em outra coisa. “Já que ele não virá até você, você irá até ele. Justo. Mas, se esta é uma reunião de família, por que você não está obrigando o resto de nós a viajar com você? Não é muito bem uma reunião de família se mais da metade nem sequer está presente.”

    “Como você sabe que não estamos obrigando você a vir conosco?” perguntou ela, curiosa.

    Zorian hesitou por um instante. Droga… ela ainda não tinha mencionado essa parte, não é? Bem, isso era bem fácil de resolver…

    “O quê, você vai me impedir de ir para a academia no último minuto?” perguntou Zorian com uma sobrancelha arqueada. “Ou Fortov? Ou arrastar Kirielle por um país completamente estranho, onde ela pode pegar dez doenças exóticas diferentes em questão de dias?”

    “Na verdade, que bom que você me lembrou da Kirielle…”, começou ela, apenas para ele interrompê-la quase imediatamente.

    “Eu faço isso”, disse ele.

    Ela piscou surpresa, momentaneamente atordoada e em silêncio.

    “Como é?” perguntou ela.

    “Você queria me perguntar se eu levaria Kirielle comigo para Cyoria, certo?” Zorian ‘chutou’. “Imagino que tenha sido por isso que você tocou nesse assunto em primeiro lugar. Eu faço isso. Eu a levarei comigo para Cyoria.”

    “Simmm!” Kirielle gritou, astutamente escondida, fora de vista, para poder escutar a conversa.

    Zorian revirou os olhos diante da irrupção dela, e até a mãe sentiu a necessidade de lançar um olhar exasperado na direção de Kirielle. Não que a diabinha tivesse percebido — ela ainda estava escondida e fingindo que não os estava espionando.

    “Isso foi surpreendentemente fácil”, comentou a mãe, voltando a atenção para ele. “Sei que Kirielle tem sido um pouco difícil ultimamente. Fico feliz que você consiga enxergar além disso.”

    “Sim, bem, agora que resolvemos isso, podemos voltar a discutir seus verdadeiros motivos da sua pressa para ir a Koth tão repentinamente”, disse Zorian.

    A mãe lhe lançou um olhar avaliador.

    “Por que você se importa tanto com isso?” perguntou ela. “Não que eu esteja reclamando do seu interesse por assuntos familiares. Na verdade, acho que é algo positivo. No entanto, você não pode negar que isso é um pouco incomum para você.”

    “E você não pode negar que esta viagem é um tanto incomum”, retrucou Zorian imediatamente. “Você está deixando Kirielle nas minhas mãos por pelo menos dois meses e provavelmente mais, o que provavelmente não lhe agrada nem um pouco…”

    “Tenho certeza de que você se sairá bem”, interrompeu ela.

    “…e você está deixando sua empresa sem uma liderança adequada no meio do verão, o que tenho certeza que está deixando meu pai mais do que um pouco louco”, concluiu Zorian, ignorando o comentário dela.

    Não que o negócio deles não pudesse sobreviver sem eles por alguns meses. A empresa que seus pais construíram já havia passado da fase em que eles precisavam se envolver pessoalmente em cada pequeno detalhe ou negociação – contanto que nenhuma crise surgisse, eles poderiam facilmente deixar tudo para seus subordinados por alguns meses. Mas e se houvesse uma crise? Não havia como seus pais não estarem pensando nisso e se preocupando. Principalmente seu pai, que parecia achar que a maioria de seus funcionários era preguiçosa ou incompetente. Isto é, se Zorian tivesse interpretado corretamente as reclamações aleatórias de seu pai ao longo dos anos.

    “Seu pai realmente tem hesitado um pouco em deixar a empresa por conta própria por tanto tempo”, admitiu a mãe. “Mas é…”

    Ela hesitou, visivelmente considerando se contava a verdade ou não. Não pela primeira vez, Zorian se perguntou se deveria simplesmente usar seus poderes mentais e ler os pensamentos dela. Ele realmente não queria. Mesmo que eles não se dessem muito bem, havia algo profundamente imoral em se intrometer nos pensamentos de sua mãe assim.

    “É o quê?” perguntou ele lentamente.

    “Você está muito insistente hoje”, comentou ela, com uma expressão infeliz no rosto.

    “Você continua me criticando por não pensar na família e na nossa reputação”, disse Zorian, sem conseguir esconder um toque de irritação na voz. “No entanto, agora que você claramente tem algum tipo de emergência familiar em mãos, está me mantendo no escuro. Acho que tenho o direito de ser um pouco rude.”

    “Não é uma emergência familiar”, disse ela, esfregando a testa, frustrada. “Pelo menos não do jeito que você esteja pensando, pelo menos. É só que…”

    Ela suspirou profunda e pesadamente, como se carregasse algum tipo de peso enorme nos ombros.

    “Você pode conjurar algumas daquelas barreiras de privacidade que impedem que o som saia da área? Isso não é algo que eu quero que Kirielle ouça.”

    Zorian assentiu e prontamente ergueu uma barreira de duas camadas — uma para bloquear o som e outra para impedir que alguém entrasse sem exercer uma quantidade considerável de força física. Só para o caso de Kirielle decidir ser um pouco mais ousada do que o normal.

    “Está feito”, disse Zorian à mãe. “E agora, do que se trata?”

    “Daimen vai se casar”, ela finalmente admitiu.

    Zorian a encarou por um segundo, tentando processar aquilo. O quê? Esse era o grande segredo?

    Ok, então ele conseguia entender por que seus pais considerariam isso uma grande notícia. No entanto, ele esperava que eles ficassem… bem, mais felizes com isso. Pelo jeito que a mãe se comportou, ele teria pensado que alguém havia morrido, não que um casamento tivesse sido anunciado.

    “Eu não entendo”, admitiu Zorian após alguns segundos. “Por que isso é tão ruim? Se bem me lembro, você até fez uns comentários incisivos para ele, dizendo que ele não era mais tão jovem e que deveria pensar em se estabelecer. Há algo de errado com a noiva?”

    “A garota é ótima”, suspirou a mãe. “Ela vem de uma família poderosa de magos que são influentes em seu estado. Ela é basicamente da nobreza local.”

    “Então ele vai se casar com alguém da nobreza?” perguntou Zorian. “Engraçado, eu esperava que você ficasse radiante com isso.”

    A mãe lançou-lhe um olhar nada divertido.

    “Não? Você não gosta do fato de ele se casar com alguém da nobreza?” perguntou Zorian, perplexo. Ele honestamente não entendia por que a Mãe desaprovava tanto isso. Isso parecia exatamente algo que ela adoraria.

    “Não é uma coisa boa que ela seja da nobreza local. Isso só piora as coisas”, explicou a mãe. “Já é ruim o suficiente que ele queira se casar com uma estrangeira distante, quando há tantas garotas locais perfeitamente boas com quem ele poderia se interessar. Filhas de famílias influentes que ficariam felizes em forjar laços conosco em troca de trazer um mago gênio do calibre dele para o seu círculo. Mas, deixando isso de lado, eu aguentaria isso se fosse apenas uma garota aleatória que ele tivesse conhecido em Koth e trazido para casa. Mas essa garota… ela é praticamente uma princesa. Não tem a mínima chance de ela concordar em se mudar para Altazia com Daimen. Em vez disso, será ele que ficará em Koth com ela.”

    “Ahh…” disse Zorian, finalmente entendendo qual era o problema. Se Daimen se casasse com essa garota e permanecesse permanentemente em Koth, seus pais não ganhariam nada com isso. Mesmo que ele se casasse com alguém da nobreza, seria uma nobreza estrangeira muito distante. Isso só daria aos pais um leve direito de se gabar, mas nenhum dos benefícios práticos que viriam de se casar com uma família influente de Eldemar (ou pelo menos de um país do mesmo continente).

    E mais, se Daimen permanecesse em Koth, seus pais só veriam seu filho favorito (e sua nova família) de vez em quando. A distância entre Koth e Eldemar não era algo que se cruzasse casualmente.

    “Então”, disse Zorian. “Imagino que vocês já tentaram convencê-lo a desistir por meio de suas cartas?”

    “Sim”, disse a mãe. “Escrevemos longamente para ele explicando por que essa é uma péssima ideia. Não importa o quão incrível ele ache essa garota, ele poderia se sair muito melhor aqui em Eldemar.”

    “Mas Daimen não ouviu vocês?” supôs Zorian, não sem certo um prazer malicioso com a situação.

    “Ele disse que a ama”, disse ela, balançando a cabeça tristemente. “Ele não vai ceder um centímetro nesse assunto. Ele nem vai adiar o casamento, muito menos cancelá-lo. Continua insistindo que ela é perfeita e que ele não pode deixar a oportunidade escapar. É tudo tão 

    repentino! Por que ele não me ouve!?”

    Zorian estalou a língua. Ele não sabia por que ela estava tão surpresa. O amor sempre tornava as pessoas irracionais, e Daimen sempre fora idolatrado pelos pais por ele desde que Zorian conseguia se lembrar. Por que ele desistiria do que aparentemente era o amor da sua vida só porque seus pais não aprovavam?

    Dito isso — e Zorian não conseguia acreditar que estava pensando nisso — ele realmente concordava com Daimen. Que direito os pais deles tinham de se intrometer entre ele e sua nova noiva? Em última análise, a decisão era dele.

    Embora, admitiamente, também fosse direito dos pais largarem tudo e irem até Koth para tentar convencê-lo do contrário pessoalmente.

    “Suponho que você ache que ir lá e tentar convencê-lo pessoalmente será mais eficaz do que cartas”, supôs Zorian.

    “Nunca se consegue ser tão convincente em uma carta quanto pode sendo fisicamente presente na frente de alguém”, disse a mãe. “Mas não sei se isso será suficiente, só isso. Ainda assim, temos que tentar. Sei que ele é jovem e está apaixonado, mas está cometendo um grande erro e precisa saber disso.”

    “Hmm”, murmurou Zorian. “Tudo bem. Não vou me envolver nisso e tenho certeza de que você não espera que eu me envolva. Obrigada por explicar as coisas, pelo menos.”

    “Não espalhe isso por aí”, alertou ela. “Estou lhe contando isso porque sei que você sabe guardar segredo. Ainda há uma chance de consertarmos isso.”

    “Tudo bem”, concordou Zorian tranquilamente. “Uma pergunta rápida, então. Você sabe no que Daimen tem trabalhado em Koth e onde ele está agora?”

    “Não, ele sempre foi muito reservado sobre isso. Ele estava preocupado que alguém interceptasse suas cartas e chegasse ao seu tesouro antes dele. O mundo dos caçadores de tesouros é muito competitivo, pelo que ouvi dizer. Combinamos que ele viria nos buscar em Jasuka assim que chegássemos lá.”

    Zorian assentiu. Mais ou menos o que ele esperava, na verdade. Fazia sentido que seus pais chegassem a Jasuka, já que a cidade era o principal porto de entrada para navios que entravam na região de Koth pelo norte, e fazia sentido que Daimen fosse encontrá-los lá. Infelizmente, esse encontro aconteceria tarde demais para os propósitos de Zorian, então ele precisava de alguma pista para rastrear seu irmão mais velho.

    Como, digamos, a identidade de sua noiva.

    “Você sabe o nome dessa garota com quem ele quer se casar?” perguntou Zorian. “Ou talvez o nome dessa família nobre deles e de que país ela é? Estou curioso.”

    “O nome dela é Orissa Siqi Taramatula, da família Taramatula”, disse a mãe. “Eles são do estado de Haramao, seja lá onde for. Supõe-se que sejam muito distintos, porque a magia da família deles se baseia nessas… abelhas mágicas que eles cultivam.”

    “Abelhas?” perguntou Zorian, curioso.

    “Sim. Eles criam várias espécies de abelhas mágicas e usam a magia secreta da família para controlá-las e direcioná-las. Elas são supostamente muito versáteis”, explicou a mãe. “Produzem um tipo de mel extremamente valioso, podem ser mortais em batalha e são muito boas em rastrear coisas. Foi esse último fator que levou Daimen a contatá-los. Ele contratou os melhores rastreadores para sua missão, e a filha do chefe da família veio junto com o grupo. Uma coisa levou à outra e, bem… agora temos essa situação em nossas mãos. Tomara que a família dela esteja tão desanimada quanto nós e possamos obter a ajuda deles.”

    Ha. Parecia que Daimen finalmente descobriria o quão desagradáveis seus pais podiam ser quando desaprovavam as escolhas dos filhos.

    De qualquer forma, isso provavelmente já era informação suficiente para rastrear Daimen — essa família Taramatula parecia ser trivialmente fácil de localizar, e eles provavelmente sabiam onde Daimen estava. Ainda assim, talvez não custasse nada ver se ele conseguia arrancar mais alguma coisa da mãe — talvez Daimen tenha deixado escapar algo importante em suas cartas.

    Ele abriu a boca para fazer outra pergunta, mas foi interrompido por uma batida na porta.

    Ah, certo. Ilsa estava ali para falar com ele.

    A mãe fez um gesto para que ele abrisse a porta, e Zorian a atendeu. Continuar a conversa teria que esperar até que ele lidasse com a representante da academia.

    * * *

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