Capítulo 66 - Perfeição Maculada (3/3)
A semana seguinte foi relativamente movimentada, com muitas coisas acontecendo. Uma invasão à base de Ibasan sob Cyoria estava sendo organizada, os Adeptos da Passagem Silenciosa estavam sendo convencidos de que a viagem no tempo era real e que deveriam lhes dar acesso ao portão Bakora e aos especialistas associados novamente, algumas mudanças estavam sendo planejadas para a excursão pelas várias Salas Negras de Altazia e o plano para convencer vários especialistas a revelar seus segredos mais bem guardados avançava lentamente. Felizmente, não era mais apenas Zorian trabalhando sozinho em todas essas coisas, como antes, então esse tipo de carga de trabalho era fácil de manter.
Dito isso, tudo isso era irrelevante para o simulacro número dois, cujo trabalho era simplesmente ir para a escola e desaparecer no final do dia. Estranhamente, o número dois não se importava com sua tarefa. Ele sabia que seus antecessores haviam se mostrado pouco entusiasmados com a tarefa, mas, pessoalmente, a considerava do seu agrado. Talvez fosse porque o original o havia criado logo após terminar outra sessão de negociação com os Adeptos da Passagem Silenciosa, mas ele sentia que esse tipo de tarefa relaxante era exatamente o que precisava.
Ainda assim, prestar atenção às aulas estava fora de questão, então ele pegou alguns livros avançados para ler durante as aulas e os intervalos.
Foi durante um dos intervalos que ele encontrou Neolu observando-o curiosamente por cima do ombro.
“O quê?” perguntou ele. Ele estava bastante surpreso, na verdade — não era como no reinício anterior, onde os simulacros anteriores acabaram se tornando amigos secretos dela durante suas curtas vidas. Ele tinha certeza disso. Então, por que exatamente ela estava se interessando por ele e suas escolhas de leitura?
“Por que você está lendo dicionários de línguas xlóticas?” perguntou ela, curiosa.
Ah. Certo. Claro que ela se interessaria por isso. Afinal, ela própria era de Xlotic.
Ele havia descoberto bastante sobre Neolu no reinício anterior, em parte porque a própria Neolu sentiu a necessidade de lhe contar sobre si mesma e em parte porque ele precisava reconstruir o que seus simulacros haviam feito, questionando sutilmente as pessoas e lendo seus pensamentos. Neoluma-Manu Iljatir (abreviadamente Neolu) era filha de uma casa comum, porém muito rica, de Kontemar — um dos maiores estados sucessores ikosianos na costa xlótica. A pele mais escura, bronzeada, dela sugeria isso, mas esse tipo de cor também era comum no sul de Altazia e no arquipélago de Shivan, e, portanto, não era uma pista definitiva. As marcas azuis, semelhantes a tatuagens, em suas bochechas e testa eram a marca registrada de sua casa, e ninguém sabia se eram meramente cosméticas ou se continham algum tipo de magia secreta da família Iljatir.
Para Neolu, viajar de Xlotic até Eldemar para estudar magia era bastante incomum, para dizer o mínimo. Não era como se Xlotic não tivesse muitas academias de prestígio. Afinal, a cidade já foi o coração do império Ikosiano, e embora o Cataclismo tenha afetado gravemente a região, isso ainda contava para alguma coisa. Mesmo assim, o pai de Neolu decidiu mandá-la até Eldemar para sua educação mágica. Oficialmente, era porque a academia de Cyoria era a academia de magia mais renomada do mundo e ele queria apenas o melhor para sua filha, mas corriam rumores de que ela havia se envolvido em algum tipo de escândalo em casa e ele a queria longe das vistas das pessoas por um tempo. Mandá-la para uma academia de magia distante, mas prestigiosa, provavelmente era uma boa solução, na opinião dele.
Isso era apenas um boato, e mesmo que Neolu estivesse ali em exílio não oficial, certamente não se poderia dizer isso pelo seu comportamento. Ela parecia bastante feliz por estar em Cyoria e nunca deu a menor demonstração de ressentimento em relação à família ou ao lar. Era possível que os boatos fossem apenas bobagens, neste caso, e que ela só quisesse mesmo ir para um país estrangeiro para estudar, e seu pai não teve coragem de recusar o pedido.
Bem, não importa. Pelo menos não era da conta dele. Quanto a ele ler os dicionários Xlotic, bem… ele estava, na verdade, tentando se tornar útil ajudando o simulacro número um, que estava se encaminhando para Koth naquele momento. Ele estava em contato mental com seu colega simulacro há algum tempo e, embora os dicionários que lia estivessem meio desatualizados, era melhor do que nada.
Claro, ele não podia dizer isso a Neolu.
“Eu estava pensando em visitar Xlotic assim que me formar na academia”, disse ele a ela.
“Sério!?” ela ofegou. “Ah, que maravilha! Acredite, é um lugar lindo. Você deveria visitar minha casa quando vier — posso te levar para um passeio pela cidade e te dizer onde ir se quiser ver algo interessante.”
Hmm. Isso sim era uma ideia interessante. Zach não disse que era fácil convencer Neolu de que viagem no tempo era real? Talvez devessem recrutá-la como guia quando fossem procurar a peça da chave que supostamente estava perdida em Xlotic. Ela provavelmente não conseguiria ajudá-los muito, mas poderia pelo menos garantir que não cometessem grandes gafes sociais e atuar como tradutora enquanto se situavam. E talvez falar bem deles para sua Casa, para que pudessem, com sorte, acessar seus contatos pela região.
“Vou me lembrar disso”, disse Zorian. “E aí, você acha que poderia me ajudar a traduzir algumas coisas? Tenho uma lista de frases que peguei de um amigo meu que esteve em Xlotic, mas não consigo encontrá-las nos livros…”
* * *
Assim que o simulacro de Zorian finalmente alcançou Koth novamente, rastrear Daimen se mostrou bem fácil. É verdade que isso só aconteceu porque ele conseguiu arrancar da mãe a identidade de sua noiva. Acontece que Daimen não era tão motivado quanto a Mãe imaginava — em vez de perseguir incessantemente qualquer objetivo que o levasse a Koth, ele estava dando uma pausa para passar um tempo com sua namorada na propriedade da família Taramatula. Bem, considerando que ele já vinha fazendo isso há várias semanas, ‘um pouco’ provavelmente era um eufemismo. Enfim. Tudo o que Zorian precisava fazer era falar com um membro de alto escalão da Casa, perguntar onde estava Daimen, extrair a informação da mente quando ele alegasse não saber de nada sobre o assunto e, então, seguir para o local com Zach a tiracolo.
Foi assim que os dois se encontraram esperando em frente à entrada da propriedade Taramatula, insistindo teimosamente que queriam falar com Daimen e ignorando os guardas, que eram igualmente teimosos em afirmar nunca tinham visto tal homem na vida.
Para ser sincero, Zorian estava meio surpreso por eles ainda não terem tentado se livrar deles violentamente. Ele sabia que as Casas em Eldemar tendiam a ser um pouco impulsivas quando se deparavam com visitantes que não entendiam a indireta. No entanto, se eles tivessem tentado, Zach e Zorian eram totalmente capazes e dispostos a derrubá-los e continuar fazendo o mesmo com qualquer reforço que a Casa enviasse. Talvez eles pudessem sentir isso de alguma forma?
Por fim, uma mulher de meia-idade, de aparência bastante severa, vestida de branco e laranja, chegou para ver o que estava acontecendo. Ela disse que se chamava Ulanna, mas não mencionou sua posição na Casa nem que tipo de autoridade exercia.
“Você diz que é o irmão mais novo de Daimen?” perguntou ela com uma sobrancelha arqueada. Ulanna falava ikosiano gramaticalmente perfeito, ao contrário da maioria das pessoas que encontravam em Koth, embora seu sotaque fosse bastante carregado.
“Sim, Zorian Kazinski. Você pode mostrar isso a ele como prova”, disse Zorian, entregando-lhe uma pintura enrolada que ele havia roubado descaradamente do quarto de Daimen em Cirin. A pintura retratava três alunas do ano de Daimen na academia, com pouca roupa e posando sugestivamente. Ele supostamente havia ganhado aquela pintura de presente das garotas em questão e sempre a mantinha em lugar de destaque em seu quarto, ignorando a objeção de sua mãe de que era ‘obscena’.
A mulher desdobrou a pintura lenta e dramaticamente, examinou estoicamente o conteúdo com uma sobrancelha arqueada e então lançou-lhe um olhar levemente divertido.
“Entendo”, disse ela. “Se nada mais, você parece ter um senso de humor parecido com o dele. Vou mostrar isso a ele. Tenho certeza de que há uma história interessante por trás disso.”
“Ah, com certeza”, disse Zorian com um sorriso radiante. “Tenho certeza de que ele adoraria contar todos os detalhes.”
Cerca de quinze minutos depois, Ulanna retornou com Daimen a tiracolo.
Fazia um tempo desde que Zorian vira o irmão pela última vez, mas ele não havia mudado muito desde então. Ele ainda era o mesmo cara alto, bonito, com um porte atlético e musculoso e um andar confiante. Zorian o reconheceria em qualquer lugar.
Zorian, no entanto, havia mudado muito desde o último encontro. Ele havia se tornado bom o suficiente em magia para notar que Daimen havia discretamente lançado um feitiço de adivinhação para confirmar que ele realmente era Zorian e não um impostor disfarçado. Ele havia se tornado bom o suficiente em seus poderes mentais para saber imediatamente quando estava na presença de outro indivíduo psíquico.
Ele fechou os olhos momentaneamente. Daimen era psíquico. Claro. A única coisa em que Zorian era um tanto especial, e Daimen também precisava ter. Para dizer a verdade, porém, ele já esperava por isso. Isso certamente explicaria de onde vinham aquele seu incrível senso social e a capacidade de persuasão — mesmo quando criança, Daimen conseguia lidar com situações sociais nas quais até homens adultos teriam dificuldade. Mas quão bom Daimen era em controlar seu dom? Zorian sentiu vontade de enviar uma sonda telepática para ele para verificar, mas se conteve. Talvez mais tarde. A situação ainda estava um pouco tensa naquele momento, e não havia razão para levantar mais suspeiras.
Além disso, se Daimen fosse ‘Aberto’ e tivesse algum controle sobre isso, então ele deveria ter notado que Zorian era como ele. Por que ele não disse nada a ele ou aos pais?
É, ele definitivamente precisava confrontá-lo sobre isso em algum momento.
“Zorian?” perguntou Daimen. “É você mesmo?”
“Quem mais eu poderia ser?” retrucou Zorian. “Sei que não nos vemos há um tempo, mas você já se esqueceu mesmo da aparência do seu irmãozinho?”
Daimen riu sem jeito. “Não, claro que não. É que isso é muito inesperado. Você não deveria estar na escola ou algo assim?”
“Deveria”, admitiu Zorian. “Mas decidi fazer uma viagem para Koth. Aí lembrei que você já estava aqui e pensei que seria educado passar por aqui para dar um oi.”
“Aham”, disse Daimen. Ele o olhou com um olhar avaliador. “Diga-me honestamente: você está aqui em nome dos nossos pais?”
“Não”, disse Zorian, balançando a cabeça.
“Então você não vai tentar se intrometer entre mim e Orissa?” ele perguntou.
“Não, por que eu faria isso?” disse Zorian. “Fico feliz por você. Mas você está por conta própria quando se trata de lidar com a Mãe e o Pai.”
“Seu pestinha”, rosnou Daimen. “Então por que diabos você escolheu isso como prova de identidade, hein?”
“Era uma pintura linda”, comentou Ulanna estoicamente ao lado dele. “Você deve ter sido muito popular na época da escola, senhor Kazinski.”
Daimen ignorou o comentário dela e se concentrou em Zorian.
“Parece que você está tentando me meter em encrenca, é isso que estou dizendo”, disse ele a Zorian.
“Tudo o que sei sobre como tratar um irmão adequadamente aprendi com você, querido irmão”, disse Zorian com um sorriso doentio.
“Ah?” perguntou Ulanna. “Parece que você tem umas histórias fascinantes.”
“Sim, tem umas boas”, disse Zorian. “Minha favorita é quando ele achou que seria engraçado trancar o irmãozinho fora de casa por horas a fio.”
“Na verdade, eu só queria a casa só para mim, e você não queria sair e brincar lá fora como uma criança normal”, apontou Daimen. “Além disso, eu paguei um preço por isso.”
“Sim, foi por isso que eu disse que era minha favorita”, disse Zorian.
“O que aconteceu exatamente?” perguntou Zach, fazendo com que Daimen e Ulanna se concentrassem nele pela primeira vez desde o início da conversa. Ele estivera estranhamente quieto até aquele momento, apenas observando a interação de lado e sem dizer nada.
“Zorian aprendeu a arrombar fechaduras só para poder entrar em casa de novo, só isso”, explicou Daimen, irritado. “Quer dizer, que tipo de criança faz isso? E aí um policial idiota que não fazia ideia de que ele estava tentando invadir a própria casa, o vê e o prende por arrombamento. Nossa, como a Mãe ficou furiosa quando descobriu. Com nós dois, na verdade, mas principalmente comigo, já que eu era mais velho e deveria ficar de olho nele em vez de expulsá-lo de casa para fazer minhas próprias coisas.”
“Perfeitamente compreensível”, comentou Ulanna.
“É, é, eu era meio pestinha quando criança”, disse Daimen, com desdém. “Quem não era? Enfim, entrem, vocês dois. Devo dizer que é impressionante que vocês tenham conseguido viajar até aqui, de Eldemar…”
“Muito irresponsável também”, acrescentou Ulanna, ao lado dele.
“Bem, sim, mas eu sou a última pessoa que pode dar sermão nas pessoas sobre isso”, disse Daimen. “Cara, comparado a algumas das coisas que eu fazia quando tinha a idade deles, isso não é nada!”
Ulanna ergueu uma sobrancelha para ele.
“Érr”, disse Daimen, hesitante, antes de se virar para Zach e Zorian. “E que diabos vocês dois estão esperando? Um convite por escrito? Entrem logo antes que eu me enterre ainda mais! Juro, hoje definitivamente não é meu dia…”
Com isso, Daimen se virou para o prédio principal da propriedade e marchou em sua direção, confiando que eles o acompanhariam. Com um dar de ombros despreocupado e um sorriso pelo trabalho bem feito, Zorian o seguiu. 1
- curiosidade besta: O nome em inglês do capítulo é “Marred Perfection”, que faz trocadilho com married, relativo a casado/casar. Perfeição Maculada provavelmente se refere ao casamento ideal que enfrenta obstáculos dos pais de Zorian.[↩]
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