Parte 1
“Querido avô,

“Nunca tive o prazer de conhecê-lo melhor em vida, pois você morreu antes que eu nascesse. Que desprazer foi não tê-lo visto e vivido antes junto a você! Por sua causa, nunca mais fiquei com os olhos virados sobre os livros e as escrituras antigas apenas para descobrir o que estava dentro de seu espírito.
“Como eu queria entendê-lo melhor! Na verdade, há muitas coisas que não entendo mesmo com tanta dedicação para estudá-las. Eu queria muito entender o mundo na palma de minha mão como acreditam que eu consigo fazer.
“Mas nada caminhou bem desde que o senhor partiu. Pensava que seria difícil convencer essas pessoas de que o mundo estava em paz, mas elas compraram a ideia no primeiro instante.
“O sofrimento quer se aconchegar no topo outra vez, mas sem haver solução contra ele, e sua escuridão cresce sem parar, e tem sido nada fácil imaginar uma alternativa quando todas as possibilidades são manchadas pela ira e soberba. Foi assim que se criou o mal do século.
“Cada época do tempo humano naturalmente terá seu momento de desespero, como sempre o tempo nos ensinou. Cada uma tem sua contingência, seu próprio acaso, que por regra segue o balanço da roda da vida. Mas há algo errado. Muito errado.
“Não houve outra época que, de forma absoluta, testemunhou tão maligna e inexplicável astúcia de alguma coisa que, de repente, veio restaurar de volta à humanidade seu cordão umbilical do qual ela tanto sofreu por milênios de história para se livrar, justo no apagar das luzes.
“Quando se esperava o bem maior, veio esse desastre, como se toda a esperança fosse esmagada e pendurada diante do abismo.
“Por que isso aconteceu? Qual é a verdade por trás disso? Como o senhor teria previsto essa verdade e ainda assim se tornou amado pelas outras pessoas?
“Mesmo que seja muito tímido e reservado, há uma multidão que o ama incondicionalmente, como se a sabedoria não lhe fizesse mal ou provocasse sua solidão. Só me resta a presunção para me salvar dessas dúvidas.
“Eu recebi uma missão dos monges-chefes do Tibete, avô. Eles me pediram pessoalmente para imitá-lo em carne e espírito. Eu não sei o que isso quer dizer, e o senhor é o único capaz de me dar uma única resposta que me faça o bem de me aliviar dessa preocupação que não sai de mim.
“Eu preciso de suas respostas, a sua verdade. Preciso saber o que motivou o senhor a fazer tudo o que fez num lugar tão infernal e pior que o meu.
“Eu não sei quanta coragem conseguirei mais, ou quanta falta de vergonha eu escancararei, porque vivo um tempo presente melhor que o seu. Um tempo ao qual o senhor teria dado tudo para vivê-lo, longe da guerra total.
“Que ingratidão pior a minha, não é? Parece que não dou valor à vida como ela é. Onde estaria minha razão em dizer isso, afinal?
“Se ao menos eu pudesse me explicar, e dizer que toda imaginação minha é resultado da vida, que presencia as boas obras para, então, tomar uma atitude; ainda acredito que o senhor tenha salvado a natureza, mas faltava alguém que salvasse as coisas vivas.
“Eu temo que seus feitos me tenham feito despertar esse antigo dom de nossa família, avô. Era como se nossa família tivesse conquistado de volta algo que perdeu.
“Sabe de uma coisa muito importante para mim? É como um segredo meu, um que eu queria contar, mas sou desajeitado com meus pensamentos, e muito mais com as palavras.
“Como eu queria dizer que não há melhor maneira de se fazer bondade do que protegendo o passado! Nunca quis tanto dizê-lo a todos os que me conhecem! Numa primeira impressão, até parece que seja impossível, mas é muito mais prático fazer isso usando de todo o bem existente no tempo presente.
“Não dá para destruí-lo pensando que de alguma maneira haverá um reinício da natureza. E chega a ser pior pensar que a escolha mais fácil, a da arrogância de pensar que o mundo é somente seu, é a mais optada.
“Parece mais fácil dizer que o acaso é resultado de nossa ignorância, pelo que parece!
“Entretanto, cada vez que faço isso, avô, mais me esqueço de que tenho apenas 17 anos. Eu faço perguntas demais para alguém que está crescendo. De fato isso é verdade, veja: estou num mundo de adultos com suas vidas consolidadas, mal resolvidas, entristecidas ou nada glorificadas.
“Ainda não posso me chamar de salvador ou herói, não da maneira que eu gostaria. Porém, não posso enganar a ninguém, pois parece que o destino se alinhou para que eu siga com esse objetivo, como se ele quisesse isso e ansiasse apenas adiantar o inevitável chamado que devo fazer pela minha família, e pelos meus dons.
“Eu tenho tão pouco tempo de vida, tão pouca sabedoria. É terrível pensar nisso tudo e ainda se deparar com a enormidade que me falta aprender. Mas é sempre bom se lembrar do quão a mortalidade é um frágil e recompensador presente, não é? Como todos nós somos, até em mente, para nós mesmos, e os outros. É de nosso espírito, de quem nós somos.
“Mas não está tudo bem quando tenho muito a aprender, e por isso eu deveria dar a cara à tapa, desafiando a mim mesmo. Bem, acontece que a cada dia de treino, parece que meus limites ficam à espreita para um dia me pegar desprevenido.
“Quanto mais penso nisso, mais o suor que sai de meu corpo frágil em carne se cansa dessa estupidez humana que é tão impaciente até com quem ajuda.
“Às vezes penso que esse suor está me acusando de algo que jamais eu deveria fazer, me obliterando todo. Mas é de sua natureza, ele nunca deixaria de fazê-lo, não importa onde, nem o que visto.
“Assim percorre o mundo, através da certeza absoluta que algumas coisas vão retornar, mas não serão todas, principalmente aquelas que são humanas. Você sabe, não é? Por tudo o que há de bom, espero que sim.
“Tudo isso parece ter sido feito há anos, mas cá estou eu, carregando em mãos uma responsabilidade honrada, mas a que preço?
“Sou somente um pirralho no meio de adultos, que não se dão nem ao trabalho de se importar ao ver uma pessoa morta, porque o tempo se tornou só uma contagem depois de tanto sofrimento que presenciaram. Como eu salvaria pessoas assim?
“Parece que, mesmo com todo esse receio, nenhuma das coisas reais existiriam sem mim — pela minha mente — muito menos ainda sem as outras pessoas, que são sobrenaturais em tudo no que elas se propõem. Seria fácil dizer que o sofrimento é inútil? Eu digo que sim. Todos são felizes, e vivem grandes vidas que me deixaram atônito, avô.
“Era como se eles esquecessem de algo ainda maior e fossem ensinados a ignorar esse sentimento. Ainda penso que elas se preocupam demais em pensar que toda vida se resume somente a um momento, ao invés de olhar o todo, que é o mais importante.
“Eu sei que também há sofrimento quase eterno e infindável no mundo; mas, se alguém tomar um tempo para pensar consigo mesmo – talvez você concorde, perceberá que nem tudo está perdido. Para mim, basta apenas torná-lo irrelevante, algo comum, que deve ser abraçado humildemente.
“A culpa disso tudo é somente nossa, por mais doloroso que pareça. Aceitá-la é o primeiro passo para nos lembrarmos do quão importante, seja de que tamanho for, é a nossa razão, sobretudo quando somos ensinados a imbecilizar o desconhecido!
“Pense em um rio lutando contra um oceano salgado. Uma onda sobe e desce, e daí o oceano se estabiliza, num ciclo lento e constante. Agora, pense numa rocha deslizando lentamente sobre o solo, ou numa raiz que cresce debaixo da terra. Todas elas oscilam.
“Nossa razão também oscila com o mundo, tanto passivamente, através das percepções, quanto ativamente. O mundo oscila também, por nossa causa, e ele existe e se mantém tão belo por nossa causa.
“Alguns já desistiram dessa jornada e optaram pelo caminho de autorrealização para encontrar a verdade por si. Mas e se não for esse o caminho, avô? Se todos podem complementar a verdade de alguma maneira, então eu me pergunto: e se fosse possível fazer algo por aqueles que colocam um ingrediente a mais no que existe?
“Por mais que seja muito sal, muito açúcar, ou farinha demais, o desânimo sempre vem, porque parece que a receita está errada. Daí nem se fala, eu fico assustado e louco somente de ver que não há alternativa melhor.
“Foi desde então que comecei a me perguntar: por que fazer isso tudo por eles? Por que dar a mínima para isso? Por que eu deveria ser fiel, fazer o que é certo, se a receita sempre estará errada?
“Por que ainda pensar sobre isso quando parece que, a cada dia, se torna inevitável a vinda do destino bipolar à raça humana? Sempre somos assolados por padrões que se contrariam: um lado certo, um lado errado, nos quais não se vê desastre maior ao negar sua existência.
“Será inevitável a chegada do dia em que o ser e o não-ser.1 , o dharma e o karma2, se tornarão antagônicos? Seria escrito nas estrelas que o homem mortal estaria destinado a presenciar, murcho e faminto, uma batalha interminável dos vícios, sem mesmo haver a chance de testemunhar o princípio, o desabrochar milenar da roda da vida?
“A resposta é tão estúpida e boba. Bastou um jovem para pensar sobre isso, por mais que parecesse apenas um pensamento de uma criança inocente. Uma intenção, no fim das contas, é uma semente plantada pela imaginação, e para imaginar, é preciso projetar algo que alguém viu. Só podemos ver pelos nossos sentidos, os outros também, e somente assim se pode viver uma vida digna.
“Nada nessa vida é independente, nada pode viver sozinho; cada parte da Terra precisa da outra para viver e ser grande. Não existe realidade sem universalidade, muito menos a transcendência sem haver a comunhão de ideias contrárias, e a compaixão por elas.
“Os melhores mestres, bodhisattvas3 do passado, foram aqueles que tiveram os melhores amigos e companheiros, aos quais deram tudo: amor, graça e lealdade. Eram aqueles que se sentiram tocados pela ignorância humana e queriam ensinar, verdadeiros professores, como você um dia já quis antes de trilhar a medicina. Eis então, a razão de eu tanto prezar as outras pessoas, sejam quais forem.
“Pois há alguém que não sabe. Ou seja, um homem somente é sábio porque ele também, no início, não era sábio, e assim, sua sabedoria foi negada, complementada pelo não-ser, que não é inimigo das coisas que vivem. Aliás, quando digo ‘negada’, é de fato, destruída e exaurida de dúvidas. É por este ciclo que se constrói a realidade.
“Para mim, a vida é essencialmente um desafio a ser aceito, não enfrentado. Ela é uma bela flor, cujas pétalas, antes de tudo, aceitaram sua murchidão para que pudessem enfrentar juntas a imensidão do rio. Mas para demonstrá-lo, é preciso haver coragem que se acanhe no desalento, como um mestre faria.
“A lama é o melhor professor da natureza. É do erro que procederei para o acerto. Por isso eu escolhi não ser mais humano. Falta pouco para a flor de Lótus nascer e lavar-se por inteiro, até tornar-se pálida como uma nuvem. Aquela emocionante passagem do capítulo das Flores dos Saṁyutta Nikāya.4 Ela me inspirou a persistir em meu aprendizado. Sim, ela mesma. Meu mestre a leu em plena noite de meditação, e senti o vento sussurrar retamente: ‘segue esses passos em meio ao barro.‘ Quem tamparia os ouvidos em meu lugar?

“Mesmo que a ignorância no erro, e também no esforço contra o erro, se conforte para crescer e ser a inimiga do conhecimento, ela é também uma parte necessária para sua existência. A sujeira escapa da limpeza, como a ignorância da sabedoria, e sempre em seguida ela retorna duas, três ou mais vezes, até se multiplicar, se explicar, ensinar, afirmar, estabelecer, clarificar, analisar…
“A essa altura deve estar claro que não há como haver o simples sem o sério, menos ainda o sério sem o simples. A matéria, por sua natureza, não conhece seriedade ou simplicidade, pois ela não é viva, e não foi feita para ser. Um homem que prefere a matéria, portanto, busca a não-vivência5, o eterno sofrimento, a morte enquanto escape da vida, não aceitação.
“Isso deveria ser óbvio, mas não é, avô. Algo está atormentando as pessoas, e muitos ignorantes creem que a única forma de purificar o mundo é destruindo parte do que ele já é.
“A justiça é somente a consequência, não a razão! Pois quando o inesperado bate na porta, os grilhões da realidade serão esticados por aquele que o vir, fazendo um barulho ensurdecedor, que o lembra de onde ele está. Isso é bom, porque aquele que conhece a sua prisão eventualmente conhecerá seu escape.
“É por isso, também, que nunca vou conseguir escapar do meu outro ‘eu’. Mas ao menos, sei que no fim, não é preciso um nome para se fazer gentileza, ou me desfazer dele. Confesso que sinto até mesmo agora enquanto escrevo que eu ouviria um sermão seu dizendo que penso como um velho mesmo sendo tão jovem. Não vou mentir, você está certo mesmo, seu chato!
“Mas aceito sua honra, e com estas mãos, me preparo para tomar a frente de um serviço que havia de se terminar desde o princípio dessa vida. Apenas não conte aos demais que essas foram minhas palavras.
“Eu quero ser um professor, um mestre. Por mais doloroso que seja seu caminho, não há um exímio lutador que se compare a sua coragem. Não há mestre amparado no desconhecido, e no impossível, sem antes ele escurecer e purificar a ignorância de toda a sua discórdia e malícia que lhe impõem injustamente.
“No fim, esse é meu sonho. Na verdade, é meu dever, vovô. Nunca o vi, mas sei que você estaria ao meu lado, nessa decisão. Fique em paz onde tenha estado, esteja e estiver, num outro lugar, curando as pessoas que mais amou os males do corpo, do mundo. Por isso, ofereço-me para sacrificar minha lembrança de você.
“Selo essa decisão em nome de todos que compõem honrosamente a silenciosa e invisível grandeza do Monastério da Libertação.
親川斎
Itsuki Oyakawa.


- O ser é aquilo que permanece pela força de um fluxo movido pela consciência, como se fosse um rio, que somente porque ele se move em relação a quem o percebe. Então, não-ser é tudo aquilo que se opõe ao ser, e o liberta, quando finalmente se adentra para nadar na correnteza e ver o restante do mundo se mover em relação a ele. São respectivamente chamados de आत्मन् e अनात्मन् (Ātman e Anātman, alma e inalma).[↩]
- Princípio e retorno, movimento e consequência.[↩]
- Do Sânscrito बोधिसत्त्व, significa alguém que é destinado à budidade, um estado de libertação espiritual. Bodhisattvas fazem votos em prol de sua missão de ensinar aos leigos a alcançar a plenitude de uma bodhicitta (mente iluminada), disposta a desprender-se de dogmas básicos, como as paixões e vícios em geral.[↩]
- lit. Discursos Agrupados, reunidos. É uma coleção de saberes que faz parte do cânone de escrituras sagradas em Pali (uma língua franca bem antiga do nordeste da Índia). São datadas do século 1 e 2 D.C, nascendo junto do Budismo primitivo, sendo traduzido em inúmeras línguas orientais posteriormente.[↩]
- Compare com a ideia de não-ser.[↩]
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