Parte 2

As cores do céu e da terra nunca foram tão bonitas. Eram o vermelho, azul e branco cantando em cima das montanhas na procura de contemplação que levasse à compreensão, enquanto caminhava eternamente para fazer a luz do sol se comover com essa lenta e constante revolução do mundo, e torná-la interminável pelo tanto que as estrelas o amavam permanecer assim, viradas para o grande cosmos da Roda da Vida, o Universo enquanto movimento.
Seu exemplo fora seguido pelas paredes, que ficavam de pé concebendo de si uma ventania gélida, ávido de congelá-la e tornar seu azul o predileto de todas as cores do mundo. Porém, tal como lá, o céu não terminava somente em azul, e não estaria mais longe da verdade.
De repente, as cortinas de veludo transparente foram fechadas por uma mão exigente, enrugada, que sobrevia os cantos daquele recinto como se fossem seus, admirando-os eternamente, até que o tempo deles terminasse, para sobrevoar as montanhas, e desaparecer pelo resto das eras do mundo. Aquela figura se aproximava com os braços cruzados, encarando-se perante a todo o templo com a mais plena serenidade a dar como oferta.
Assim que se viu solitário, ele se apoiava por uma bengala enquanto calmamente adentrava a instalação, para deparar-se de volta com uma névoa escura consumindo os arredores. Dentro daquela sombra, por trás de toda sua grandeza, ali reinava a sobriedade contra o excesso, de maneira que o desenho da nuvem não se perdesse para o caos. Suas linhas seguiam um caminho suave, mesmo que a turbulência os fizesse subir e descer.
Ao soprá-la, a nuvem resistiu, como se esticasse no tamanho do fluxo das coisas por si, instigada pelo seu criador. Havia um jovem perdido dentro daquela imensidão, com um incensário decorado que governava o seu olfato. A sombra que havia sido criada desapareceu, e junto de si, seus olhos se abriram.
Estavam realizados, embora se sentissem preocupados, e por vezes incapazes. Dessa forma, o jovem se viu encarregado por aquele semblante, como se ele o conduzisse de volta à realidade inevitavelmente.
A presença enigmática de um guru com toda a preponderância distribuída pelos seus longos noventa anos de vida catalisaram o ambiente a se tornar muito mais vívido e acalorado, como se uma fogueira transparente crescesse para cima da névoa, queimando sobre as mãos e ombros.
“Teus pensamentos jazem mais pesados que uma rocha ao fundo do mar. Tuas vontades crescem enquanto se separam do corpo para tanto pensares sobre existência”, o semblante do jovem muda, sendo iluminado lentamente por aquele fogo interior de seu mestre, recriando sua cor marrom de terra.
Embora seus olhos se fixassem diretamente sobre seu aluno, eles não davam retorno, e se perdiam naquela incerteza e névoa incansável. Seu sopro era para lembrar-lhe de seu propósito, mas não poderia ser eterno, menos ainda lhe carregar a frente para o tracejado do princípio das coisas.
“Até quando te inclinarás diante de tua criação? Até quando ainda serás apenas Phagpo de nome?”
“Quando não houver mais razão consciente capaz de vê-la, Mestre Guru1”, retrucou o jovem, enquanto ofegava ao mesmo tempo que seus músculos contraiam, amedrontados. “No momento em que ela falecer sem dar outro grito de socorro.”
“Mas não há razão fixa nessa terra para te alicerçares, quando toda ela se desfaz pelo tempo, Pequeno Phagu. Esse seria um grave erro”, sua voz se pesou, assim como o fogo, que o circundou, cobrindo-o de grande brasa.
O mestre vestia um chapéu vermelho com a imagem de um homem assentado pacificamente ao olhar de relance para o novo mundo em que ele habitava reencarnado. Seu sentimento era misto, de harmonia controlada, e desarmonia consequente.
“Em teu sangue, existe uma suprema vontade de estabelecer um limite para si. Limites, entretanto, são correntes, como aquelas com que nascemos. Não seria uma falha tua pensar somente no fim das coisas?”
“Como também é pensar que não há fim para as coisas. Movimento não é essência, Mestre Guru”, respondeu, teimando os olhos.
“O que é então, real, se jamais haveria uma fronteira, um lugar onde o significado termina?”
“Bem real somente é a presente e corrente passagem da roda da vida. Ela movimenta e é movida, como todo rio deve fazer, pois como uma flor se atrelaria para flutuar na superfície d’água?”
Os cabelos escuros se revelaram caídos, distinto dos demais por sua grandeza. Uma franja caía sobre os olhos marrons, numa maneira de fazer plena as verdades do espírito, até mesmo no momento em que elas são apresentadas por uma boca mortal.
“Não é preciso debruçarmos os cotovelos em algo para conhecer o mundo, porque ele se movimenta através de um mesmo ponto. Essa é sua grandeza, que cria a inércia sobre a qual se estabelece um sonoro degrau para ser subido e transcendido, Mestre Guru”, disse-lhe, enquanto abria seu peito na direção do homem. Ele se levantou lentamente, com os olhos erguidos até ele. “Será tão difícil compreender o real? Aceitar sua dificuldade seria sinônimo de irresolução?!”
As mãos do mestre se abrem, queimando-as do mesmo modo que a sala. Sua acalorada pressão caía, como uma força celeste que a montanha somente poderia ofertar a seus ávidos contempladores. Seu adversário tremia, enquanto pairava de frente a si, concentrando fixamente na vida que lhe escapava como uma saltitante brisa da montanha brincando com suas amigas entre as árvores em pleno verão.
Com um estalar de dedos, os braços do jovem foram consumidos pelo fogo, tornando-os cinzas a cair sobre o chão. Por um momento, escapava-lhe a tensão de reviver o que mais temiam os pensamentos seus. Talvez, eles jamais cobiçariam encontrar-se naquela tormentosa e quente tempestade, sobrepujante entre toda a escuridão.
“Então, de que vale debruçar-se sobre cotovelos fracos, Phagu? Por que ainda colocas tuas expectativas no que não te é controlável?”, o fogo surgiu sobre as mãos do jovem, que os tornava azuis conforme a névoa sombria de seu corpo resistia.
“Porque tudo o que cria o não-princípio, para que seja convertido infinitamente em sabedoria, deve ser preservado e apreciado, não destruído. Jamais desleixado.”
Mas não faltou desejo de incendiar essas intermináveis e malignas dúvidas do coração. O mestre não se convencia, em palavras, ou em gratidão. Prostrando-se violentamente, ele cruzou o olhar com seu aluno. Ali, lhe reteve por instantes um pequeno sentimento de piedade, extinguida em seguida pela glória do dharma.
“E se és tu a causa para esses males a serem derrotados? Que sejam eles derrotados diante de teu nome, para todo o sempre”, respondeu-lhe, mais uma vez concentrado diante de seu tão amado pupilo, um filho suficiente na honra para a qual deve se espreitar a morte.
“O erro, Mestre, é pensar que a bondade não é um bem universal! Um exemplo inscrito nas coisas sencientes, igualmente nas que se opõem a elas. Ela é a grande provocadora do movimento, portanto, da bondade.”
“Se assim for, toda vida estaria condenada a crer que é inútil.”
Seu corpo se preenchia de fogo enquanto era pressionado pelas paredes invisíveis daquele inferno pequeno, como se fosse uma mera parte apanhada às mãos. Seus braços tremeram, assim como seu coração tremulou diante daquele calor insuportável, como se esperasse seu próprio julgamento diante dos malignos seres do Submundo, juntamente da coroa dos ombros, que ficaram ainda mais pesados, pois seu acolchoado queimava solenemente, mesmo que não desaparecesse.
“Aquilo que não está ao teu controle será a causa de tua discórdia e fim. Perecer é esquecer.”
A dor tomou uma forma trágica, e não se queixava perante aos pesados obstáculos de lã e lamelar à sua frente. Os grunhidos aumentaram cada vez mais, tal como os dentes, cerrados em resistência ao desafio, enquanto ouviam as preces desesperadas e suspirantes vindas dos pulmões.
“Mas dentre todas as coisas para tirar-me a vida, o ódio não será uma delas!”, com a voz fraquejada e dolorosa, sua boca também sangrou.
Uma lâmina pequena nasceu de si, tocando suas mãos, quase de prontidão para cortá-las se não fosse pela rapidez, muito menos pelos próprios desejos. Seus membros se angustiaram, temendo que virassem pó ao contrário de morrer. De joelhos levantados, os pés também se queimaram, prestes a ter os sapatos desaparecidos, sem que dessem, para si, uma chance de glória e reconhecimento perante a tanto sofrimento. Foram essas as preces da matéria que rodeava o corpo do guerreiro, consciente, de vontade firme, que fazia espera dentro de sua língua.
Mas seu sentimento, seu apego ao viver, não era pouco, por mais que ele soubesse que a morte não lhe escaparia daquela vez. Porém, ninguém, senão o espírito interno dele, sabia o quanto ele amava. Diante dessa incerteza, muitos temeram observar-se depois de tantos anos de vivência na Terra, e não reconhecer a si mesmo, como se seu espírito apenas aguardasse sua nova vinda após a morte, porque não era capaz de escapar da mundanidade que lhe cercava.
Porém, a chave para essa pergunta não parecia ser a resposta para as outras. Nessa condição, não bastava apenas receber em mãos todas essas coisas sem antes reconhecer que cada uma delas se fundamenta nas pequenas mudanças do ciclo da vida, que ressoam para sempre, como a corda de um violão.
“Você desconhece o quanto as pessoas merecem experimentar um pesadelo, Mestre!”, gritou-lhe.
“Tão injusto já é o mundo, e tu lhes ofereces mais dor? Para que escolherias este mal?”, estendeu-lhe a mão, esticando o fogo para que ele queimasse mais profundamente.
“É para que acordem depois livres, e salvos conclamados por meu sangue!”
O jovem exclamava dolorosamente, sentindo sua carne se desfazer como um nada, mas na ilusão de que não poderia existir somente por si. Assim que viu sua lâmina se manter resistente, contra todas as mazelas do fogo, ele se inclinou, pondo seu rosto na direção de todo o inferno que o rodeava.
Mas, antes que ele chegasse ao seu mestre, seu rosto ficava ainda vermelho, tornando-se osso puro, como o de seu crânio que aparecia cada vez mais que ele ousava. Por um momento, ele sentiu raiva, uma vontade de impor a si uma chance. Enquanto havia fogo de um lado, do outro a escuridão se fazia presente contra a certeza da luz e do calor. O frio que se criou teve ao seu controle uma grande ventania que balançava os dois de sua posição.
Nada era para sempre. O vento permaneceu como uma grande e leal serva da batalha enquanto persistia o incensário em lhes apresentar a luta pela realidade. Mas o seu cheiro controlador e esotérico estava desaparecendo, e a fumaça branca que dele surgia se tornava tão sombria quanto aquela névoa.
O calor não poderia lhe dar a graça de saber ter consigo o vento ao seu favor, pois ele era o primeiro a ser buscado pelo frio, como faz a brisa de inverno. Semelhante à natureza, como seu maior admirador e imitador, a fumaça preta, através da sombra do jovem, foi soprada com grande velocidade na direção de seu mestre, como toda brisa gélida de uma montanha chama os mais desavisados para conhecer o mundo de cima, cruzando além de toda a realidade.
Vários sons incompreensíveis surgiram desse embate, como disparos longínquos mas tão próximos, somados à força do aço refletido numa sequência de golpes intercalados. O odor de incenso desaparecia, fazendo o fogo se desesperar para crescer em cima daquela sombra.
No decorrer daqueles instantes, a ventania se exauriu, desfazendo o odor de vez, como se quisesse dar fim ao embate. Porém, mesmo com todo esforço em prol da vitória, o fogaréu cresceu mais uma vez, numa explosão iminente que balançava a tudo ao seu redor, sem haver falta.
“Se nada o move, então tudo há de derrotar-te, como o teu mal”, assim que o mestre disse essas palavras, ele ergueu os dois dedos de sua mão direita, realizando sua última cartada contra seu adversário, numa rápida e intermitente explosão.
Num piscar de olhos, eles se viram num clarão inacabável que acendeu o templo como uma lareira solar. Dali em diante, o calor se cristalizou, tornando-se mínimo como pedrinhas de magma, de prontidão para serem atiradas. Assim que elas subiram na direção do teto, o mesmo de cor azul como o céu, elas caíram como meteoritos com a missão de fazer o julgamento de sua eterna mortalidade.
Mas todo movimento encontra, desde que primeiro foi observado, um potencial fim, que se remenda e se desfaz, subindo além da roda da vida, das turbulentas águas sob as quais a flor de lótus vive escondida.
- Do Sânscrito गुरु, significado aquilo que tem peso, logo venerável. Título comum dado a professores que significa mestre. E sim, note a redundância, já que guru também identifica um mestre que é espiritualmente realizado, distinto dos demais.[↩]
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