Capítulo 029 — Talvez, dessa vez, você não precise lutar sozinha.
O trem reduziu a velocidade até parar suavemente na estação de Ayas-Kin, soltando um último jato de vapor no ar fresco da noite.
Marco foi o primeiro a descer, enquanto Lou-reen e Venia ficaram para trás, conversando com o maquinista sobre os próximos horários e a segurança da linha. Ele pisou na plataforma e parou.
A cidade-floresta se erguia diante dele como um devaneio lúcido. Envolta por uma névoa prateada que dançava sob a luz das luminárias mágicas espalhadas entre os galhos, Ayas-Kin parecia viva. Plataformas suspensas se entrelaçavam pelas copas das árvores colossais, conectadas por passarelas de madeira e metal reluzente. Construções de vidro, pedra e matéria viva respiravam em harmonia com a floresta.
Luzes esverdeadas e azuladas flutuavam no ar como vaga-lumes encantados, revelando jardins suspensos que se mesclavam às moradias. Não havia ruas no chão. Trilhas sinuosas serpenteavam entre os troncos, ligando níveis, pontes e torres elevadas.
Marco deixou escapar um sorriso breve, involuntário.
— É realmente inacreditável… — murmurou, para si mesmo.
Ele estava tão absorto que não ouviu os passos às suas costas.
— Perdeu noção do que é perigoso, civil? — disse Phaedra, surgindo ao lado dele com um sorriso enviesado. — Ou tá achando que entrou num conto de fadas?
Marco se virou, encarando os dois tenentes que haviam ficado para trás. Dephredo estalava os dedos, olhando a cidade com pouco caso.
— Só tá de pé porque teve guarda-costas. E ainda acha que fez bonito.
— Eu estava me defendendo. — Marco respondeu, tentando manter o tom firme. — Vocês dois atacaram primeiro.
— Atacar? — Phaedra fingiu surpresa. — Foi só um teste. Achei que quem andava com a general sabia se virar.
— E você chama aquilo de saber se virar? — Dephredo gargalhou. — Se a Lou-reen não tivesse aparecido, você tinha virado picadinho no vagão.
Marco cerrou os dentes, mas não desviou o olhar.
— Dois contra um. Nem foi justo.
— Ah, não foi justo — zombou Phaedra. — E ainda assim você teve coragem de puxar a lâmina. Só coragem não basta, sabia? Pode ser burrice fantasiada.
Dephredo completou:
— E burrice armada é só um convite pra morte. Você devia entregar essa espada antes que alguém resolva tomá-la de ti… por precaução.
Marco não respondeu de imediato. Só então percebeu o peso estranho no cinturão. A espada parecia mais pesada do que antes do treinamento com Faey. Ele olhou para os dois tenentes, e por um instante, sentiu que talvez estivessem certos. Ele não era um soldado, não pertencia a esse mundo. E aquela espada…
Não era dele.
Os gêmeos se afastaram com risos abafados, satisfeitos. Marco permaneceu onde estava, sozinho por um momento, envolto pela névoa e pelas dúvidas que não cessavam desde que chegou a Taeris.
Foi então que os passos firmes de Lou-reen ecoaram na madeira da plataforma. Ao lado dela, Venia andava com tranquilidade, o olhar atento varrendo os arredores.
— Lá está o Jenff. — Lou-reen apontou às costas de Marco.
Ao se virar, viu apenas um homem aguardando ao final da plataforma: o tenente Jenff Granlyn. Um jovem oficial, de expressão séria, mas que se iluminou ao vê-la.
— Lou-reen! — Jenff adiantou-se com entusiasmo excessivo para um ambiente militar. — Soube que você chegaria hoje e quis estar aqui para recebê-la pessoalmente. Como foi a viagem? Está cansada? Precisa de algo?
Lou-reen franziu a testa e, sem pressa, respondeu:
— A viagem foi tranquila. Onde está o general?
Jenff desviou o olhar por um instante, com um leve gesto.
— Ele está ocupado lidando com um avistamento de uma terrorista na região. Pediu que eu cuidasse de sua recepção e que estivesse à sua disposição durante sua estadia.
Ela manteve a expressão inabalável, apenas assentindo.
— Entendido.
Jenff se alinhou ao lado dela, com um ar solícito que beirava a devoção.
— Eu já organizei seu alojamento pessoalmente, general. Está tudo em perfeita ordem. Se precisar de qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, é só pedir.
Marco observava a interação, notando o brilho quase reverente nos olhos do tenente, enquanto Lou-reen continuava impassível.
Jenff então percebeu o olhar de Marco e voltou sua atenção para ele, com um semblante que endureceu levemente.
— Você é o forasteiro que ela tem que proteger?
— Sim. — Marco respondeu, firme.
O tenente franziu a mandíbula, claramente descontente com a ideia de outro homem tão próximo de Lou-reen.
Um instante de tensão pairou no ar até que a voz firme de Lou-reen cortou o silêncio:
— Vamos. O quartel de Ayas-Kin nos espera.
Jenff apressou-se para seguir ao lado dela, tentando puxar conversa, mas Lou-reen o ignorava completamente.
***
Marco sentia o vento fresco da noite acariciar seu rosto enquanto subia com cuidado pelos galhos da imensa árvore. Ele nunca tinha escalado algo assim antes—na Terra, os prédios eram a única coisa que chegava perto do céu dessa maneira, mas não ofereciam essa sensação de conexão com o mundo ao redor. Cada galho era forte, como se a própria natureza houvesse moldado aquela árvore para suportar seus passos.
Quando finalmente atingiu a copa, ele se deparou com uma vista deslumbrante. O céu de Ayas-Kin se abria à sua frente, limpo e repleto de estrelas, cintilando como diamantes sobre o tapete verde da floresta. Lá de cima, ele podia ver a cidade espalhada entre as árvores, luzes suaves pontilhando as plataformas e passarelas suspensas. Era uma visão quase mágica, um contraste entre o brilho celestial e a serenidade da floresta viva.
— Você se acostuma rápido. — A voz de Lou-reen soou atrás dele, e Marco se virou no mesmo instante.
Ela estava ali, sentada sobre um galho ligeiramente abaixo do seu, olhando para ele com um meio sorriso.
— Eu só queria ver o céu sem a floresta cobrindo tudo. — Marco explicou, movendo-se um pouco para dar espaço para ela.
Lou-reen subiu com agilidade, sem esforço algum, e se acomodou ao seu lado. Por um momento, nenhum dos dois falou, apenas olharam para o céu.
Depois de um tempo, Lou-reen quebrou o silêncio.
— Acho que estou começando a entender seu fascínio pelo céu. — Sua voz soou mais suave do que o normal. — É libertador.
Marco virou-se para encará-la. A luz prateada das estrelas realçava seus traços, dando-lhe um ar sereno.
— Quando eu era criança… — ele começou, o olhar preso no infinito — eu via fotos da Lua, de Marte, das galáxias distantes… E me perguntava se um dia a gente ia descobrir que não estava sozinho.
Lou-reen o observava, sem interromper.
— A verdade é que a humanidade inteira passou séculos olhando pro céu, esperando um sinal. Qualquer coisa. Vida fora da Terra, um planeta habitável, um milagre, sei lá.
Ele deu um sorriso sem humor.
— E então… eu vim parar aqui. Um outro planeta, outra civilização, outra vida. Tudo que a gente sempre quis descobrir. E mesmo assim…
Ele respirou fundo.
— Mesmo assim, eu tô aqui em cima de uma árvore, me perguntando se pertenço a esse lugar. Se tenho como continuar fazendo o que amo. Se o céu que eu queria explorar… ainda é meu.
Lou-reen franziu o cenho.
— Você não parece alguém que desiste fácil.
— Não é sobre desistir — ele respondeu. — É sobre não saber o que fazer se não tiver as ferramentas. Os telescópios, os dados, os satélites… e se aqui simplesmente não for possível? E se meu papel já acabou?
Ela ficou um tempo em silêncio.
— O exército aceita recrutas — disse com leveza, tentando aliviar a tensão.
Marco soltou uma risada seca, lembrando das palavras afiadas dos gêmeos.
— Já me disseram que coragem sem preparo é só burrice armada.
Lou-reen arqueou uma sobrancelha.
— Não é mentira. Mas todo mundo começa despreparado. A diferença é quem se adapta.
Lou-reen permaneceu em silêncio por alguns instantes, seus olhos fixos no céu estrelado. O vento noturno soprava suavemente entre as folhas, carregando o cheiro fresco da floresta. Então, com um tom mais baixo do que o normal, ela falou:
— Desde que me entendo por gente, o exército foi tudo que eu conheci.
Marco voltou-se para ela, atento ao jeito pensativo de sua voz.
— Meu primeiro brinquedo foi uma espada de madeira. — Ela soltou uma risada breve, sem humor. — Meu pai dizia que eu tinha que aprender a me defender antes de aprender a brincar.
Ela fez uma pausa, como se reorganizasse os pensamentos.
— Sempre fui mais forte do que as pessoas ao meu redor. Desde criança, eu superava os outros nos treinamentos. Então, me ensinaram que era meu dever proteger os mais fracos. Que essa era minha função.
Lou-reen suspirou, desviando o olhar para a imensidão estrelada.
— Foi o que fiz minha vida inteira. O que eu soube fazer. Cada batalha, cada inimigo derrotado, cada ordem cumprida… tudo girava em torno disso. Não havia outro propósito.
Marco a observou, vendo pela primeira vez uma vulnerabilidade oculta por trás de sua força inabalável.
— E agora?
— Agora… — ela disse, mais baixo — tem algo que escapa. Um inimigo que eu não consigo ver, nem prever. E tudo que eu sei fazer… talvez não sirva pra isso.
Marco a olhou. Pela primeira vez, ela não parecia uma fortaleza.
— Talvez… — ele arriscou. — Você não precise lutar sozinha dessa vez.
Lou-reen cruzou os olhos com Marco, um sorriso sutil e desafiador surgindo no canto dos lábios.
— E talvez você precise parar de reclamar das ferramentas que não tem… e começar a usar os punhos. A gente descobre juntos do que eles são capazes, que tal?
Marco retribuiu o olhar e o sorriso.
— Vamos lá.
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