Capítulo 6: Preces Surdas
Não pensaram ou disseram mais outra palavra. O Inspetor havia quebrado toda a sua face perante a eles; não que isso lhe fosse uma decepção, mas se acreditava muito que falar seria o demarcador para sua presença, para seu futuro dentro da própria instituição. Mas não era desconfiança, nem raiva. Cambaleavam entre um sequestro ou uma traição por não haver noção nenhuma da responsabilidade que assumiram; nem para dizer que o fizeram por sua conta, já que ninguém escolheu estar naquele horário, mas sim estar junto de seus colegas mesmo tão tarde. Tanaka se endireitou e cerrou os dentes de preocupação.
“Não quero bisbilhotar o que os outros fazem de podre aqui, mas ninguém sabe como isso funciona”, Tomohiro balançou os braços incessantemente.
“Isso é tudo menos uma tarja só. Escute: é um sistema só. Auxilia a identificar quem está ligando na emergência, se tem ficha criminal, seu ID,” o Inspetor Hiroshi se ajoelhou para cumprimentar Tanaka e tranquilizá-lo. Ele se embaralhou com a língua, após uma breve interrupção. “É impossível definir as cores somente através disso. Isso é besteira, tentaram fazer nossos colegas de bobo.”
“Esses não são os critérios ideais para o sistema, visando somente reconhecer quem realiza a chamada?”, questionou o inspetor.
“Senhor, é impossível diferenciar fichas criminais pelo seu conteúdo, e adivinhar quem é quem. O sistema não deveria ser prioritário no processo legal. Nunca foi feito para isso”, disse-lhes, com um aceno firme. “Supondo que haja algum sentido no sistema, então a tarja, na verdade, tem algo a ver com um tipo de medição de postura legal, comportamento em relação a alguma coisa. É o governo no caso.”
“Mas quem era a garota?”, perguntou-lhe o seu superior mais uma vez.
“Parece que ela havia trabalhado por um tempo em algumas empresas de tecnologia. Ela nunca quis ser especial”, respondeu o oficial. “Inspetor, há pessoas que, se você procurar muito bem, têm a ficha limpa, zerada. Quando elas faziam camada no sistema, a tarja era de outra cor.”
O ar suspenso sobre o analista ficou mais pesado, carregando um fardo em suas palavras. Quanto mais dizia, mais se fazia certo do contato aterrorizante que Hiroshi fazia em seus ombros. Permanecendo amedrontado, ele insistiu em encontrar por uma verdade.
“E você não pode nos confirmar que não é um erro de programação?”, o Inspetor permaneceu firme, enquanto era oposto ao olhar de Mikami, mais flácido e preocupado, detido de um outro mundo.
“Não dá para saber: o código daquele sistema é fechado, e quando foi programado, nem pensa em tentar abrir: é patenteado. Custou muito caro! Veio do Ocidente por acordo do governo e da polícia. Você não pode nem apontar o dedo e falar algo. Ou eu poderia?”, entristeceu-se, indignado.
“E como eu queria ter feito algo contra isso. Demorei muito para entrar no setor de chamadas. Peço o perdão de vocês, mas estava bem além do que eu podia!”, arrependido, não se conteve no sofrimento, lacrimejando os olhos.
“Não esqueça do que você fez para os demais. Não me decepcione com esse falatório inútil”, Hiroshi levantou a sua cabeça, e apertou sua mão. Puxou o corpo dele para mais perto dele, e para a porta. “Mesmo com tantos anos de experiência, não é como se perdêssemos a juventude durante esse tempo, ou deixássemos de ter dúvida, ou sombra. Meu cagaço é grande como o seu.”
Mas, assim que ele se aprumou para mais perto da estante, de repente ele próprio decidiu largar a própria lanterna e desligá-la, de maneira a ocultar seu rosto por um momento, antes que ele se aproximasse da janela, para deixar a luz da vida urbana dar um tom mais claro sobre ela.
Hiroshi, dessa forma, pareceu extremamente preocupado e desapontado, pois havia muito o que foi retirado de suas mãos, para ser suspenso no ar, como um pêndulo sem direção.
“Vou dizer uma coisa para ficar de uma vez. Os outros também: estejam livres para falarem. Está além de ser um esquadrão ou de sermos uma equipe”, ergueu sua postura, colando as costas sobre a parede.
“Não houve um teste desse sistema nessa mesma época?”
“É difícil esperar muita coisa quando eles mandam alguns meia-boca técnicos para lá. Todos terceirizados”, Tanaka retrucou, encolhendo-se entre seus próprios joelhos.
“Então, foi aí que veio a ligação da garota. Aconteceu na mesma hora, e isso pouca gente sabe. Adivinha: desmentiram de vez, logo em seguida. Não deram muitas pistas, muito menos margem para perguntar. Eu juro, por mais que não haja provas: alguém de má fé o espalhou”, explicou-lhes, confinado ao antigo mundo que lhe havia surgido de antemão, para abri-lo de pouco a pouco para a vindoura juventude no seu arredor.
Grande era a surpresa de ouvir testemunho fardado, tão convicto no labor, feito uma história chocante àquela altura da ocasião. Uma raridade sem igual. Um momento de pequena luminosidade em meio a uma temível e alarmante escuridão, a julgar todos que negaram a luz. O Inspetor estalou os dedos, e outra vez, chamou-lhes mais a atenção.
“A história não acaba aí, inclusive. No entanto, não esperem que eu tenha uma bola de cristal: eu não sabia, menos tinha ciência de qual dia isso tudo aconteceu; só me disseram que foi real. Não desisti, e fui atrás também”, disse. Por uma leve pausa, escolheu se levantar e apontou a lanterna para si, sobre o rosto. Era para não haver dúvidas de que falava com sinceridade, sem torcer os dedos.
Convidou-os para ouvi-lo, e imediatamente, ele os acalmou, para conquistar seu respeito pela sinceridade, como fez antes, no princípio. Quando o desânimo provou ser mais convincente, o sargento deu-lhes ligeiras bofetadas, para esconder-se em meio aos retraídos dissentidos.
“Há um bom tempo – bastante e antes de muitos dos senhores que aqui estão entrarem na Academia Metropolitana – houve um vazamento de dados.”
Aquele evento não se esclareceu direito inicialmente, pela sua sequência ser, como todas as outras, repetitiva. Afinal, a questão residia no que de fato significavam as atitudes da polícia, porque a hesitação, enquanto, ao mesmo tempo, não havia muita margem para haver fé na vocação que os policiais agarraram e tomaram para si.
“Isso não deveria acontecer, senhor”, retrucou Mikami. “Que evento teve lugar nessa época?”
“Fukuoka. Tivemos um rolo inteiro para lidar com aquelas mulheres. Bem, acontece que, antes que a polícia entrasse, várias das garotas nesse esquema desapareceram, pelo menos dez. Talvez por acaso, foi logo depois do esquadrão especial de investigação da cidade, Nakasu, ser formado, e ninguém piou mais a respeito disso há quatro anos. Esse tipo de silêncio me faz querer ficar longe de um banheiro pelo tanto de merda que ele faz feder.”
“Como assim?! Tráfico humano nem era criminalizado nessa época. Como infernos eles levaram a cabo essa acusação?”, perguntou Tanaka.
“É só ler o direito penal: eles trocam um crime pelo outro. As pessoas têm mais dó daqueles que imigraram para cá em busca de condições melhores de vida”, disse-lhes o sargento, engatinhando até o centro da sala.
“Olha, o que ele disse aqui aconteceu porque o governo oferecia um visto que facilitava esse trânsito: o de entretenimento – deve se chamar assim na lei – aqui no Japão. Dois anos é muita coisa para um visto desse tipo: por muito tempo foi o mais requisitado à alfândega”, assim que continuou Hiroshi, o sargento outra vez estalou os dedos e observou de relance cada um dos presentes.
“Eles não foram presos por tráfico! Os desgraçados são ligeiros,” explicou Mikami, mantendo a jovialidade que seu linguajar permitia, dentro das circunstâncias, expressar para o bem dos desesperados.
“Todos presos por estadia ilegal no país. É uma pena drasticamente menor em comparação ao crime de tráfico humano. Não é tão desonroso também”, Hiroshi estendeu-lhe a mão, como se quisesse continuar, mas não pudesse dar espaço ao seu subordinado.
“Essa merda é absurda!”, exclamou Mikami. “Dá vontade de quebrar os dentes por causa dessa picaretagem. Sabe como eles ficavam? Antes da proibição, mal torciam os dedos ou consideravam ser presos sequer um dia. E se não é pela estadia ilegal, tudo bem, há punições mais brandas! Muito raramente o motivo da prisão deles seria: abuso ou sequestro. Daí, o tráfico humano vem disfarçado de trabalho remunerado livre, pondo as autoridades no chinelo, para aturar por não terem recurso na Constituição.”
“A lei sempre foi uma merda, dificilmente fica pior.”
“Por isso mesmo, Mikami: ninguém compilava dados sobre isso até pouco tempo atrás”, o superior replicou. “Olha que insanidade! Eu conheço gente que se rasgaria todo por não fazer um serviço bem feito! Por que será que de repente, um país com péssima resposta ao tráfico humano leva para cadeia um setor inteiro da Yakuza diretamente responsável por isso em Tóquio?”
Apesar da insistência de Hiroshi para a obediência, algumas perguntas o fizeram pensar sobre o prazer de se esperar todo aquele tempo, com todos solitários, sem amparo do Comissariado da Polícia.
“O movimento foi lá, todo mundo. Não levou muito tempo, até porque foi, também, juntinho daquele caos todo na cidade. E aí vem o problema: aquelas coitadas que desapareceram vêm de várias partes do Japão. Fora da mídia, o esquema se expandiu para outras cidades, como aqui. Ficou incontrolável.”
“Mas nas escondidas, houve muita preocupação, porque alguns negócios naquele distrito estavam se movimentando. O lugar começou a crescer.”
O Inspetor Hiroshi parou os olhos. Ele os arregalou de súbito, incapaz diante da dúvida de dar uma resposta satisfatória, até de repente vir uma linha solta sobre sua cabeça que se amarrou num nó forte sobre outra pela mão da sabedoria.
“Eu nunca me dei conta de uma coisa até hoje: eu me lembro que saí para tomar café nessa mesma época, mas não sei quando. Fui chamado por conta de um erro em que várias notificações de ligação foram acionadas no outro escritório, e eu só repassei para o Inspetor-Chefe.”
O jovem Mikami então se levantou, parecia que estava chegando à mesma conclusão, mas se embolou no próprio caminho, com o receio comum de sentir-se observado e regrado. Todos emudeceram a voz numa única vez, como se soubessem de algo, elevando o espírito bem além da altura de seus desejos. O sistema de ligações, a atualização e o descontentamento da polícia de Fukuoka tinham similaridade. As dúvidas de todos os unia, mas paravam pelo silêncio, sem saber como se encontrar. ‘Jamais, dificilmente,’ diriam em voz alta. Quando pensou consigo, estalou os dedos. Foi tão alto que acordou até os adormecidos de tanta preocupação.
“Tanaka, em que dia o sistema foi implantado? Não costuma ter a data no canto quando há a checagem da versão?”, perguntou Mikami, ainda insistindo em pôr os olhos sobre cada fresta da porta emperrada.
“O sistema atualiza e a data muda, então já deve ter passado. São quatro anos já”, respondeu. “Além disso, eu não estava lá quando aconteceu.”
“Mas como era antes? Não tinha nem perto disso, nem tarja, nada”, inquiriu o sargento, esperando extrair o mínimo que permitia sua curta experiência de vida.
“O parâmetro até onde sei, que era martelado até cansar, era filtrar as ligações e usar os dados providos pelas operadoras para identificar o usuário. Mas não tinha nada, não aparecia ficha, só o nome quando possível!”, disse.
“Então, por que instalaram a porcaria de um sistema instável numa época de ano movimentada na delegacia, e com os canais ocupados?”, Mikami rasgou-se por entre a dúvida. Naquele momento, Tanaka havia entendido a pergunta depois de muito ponderar. Travou a própria cara e endureceu as bochechas.
“Não foram testes, então…”, convenceu-se, arregalando os olhos.
Aprofundados naquela imensidão de dor e também hesitação, se entremeou a realização de cada um: a rejeição. Mikami então olhou para cada um ali, e viu que boa parte deles tinham vidas comuns e autênticas e não competiam na difícil hierarquia da carreira policial.
Não havia engano, eles sabiam: eram pouco ou quase nada chamados para os encontros e festas promovidos pela polícia; se já eram mal convidados, hoje nem mais são. Nem para as festividades mais bobas, para descansar do serviço, ou para as comemorativas, em homenagem à promoção de um colega de trabalho.
Ninguém havia contado, mas a antipatia de seus superiores veio no lugar, dizendo-lhe que ele não fez nada demais, senão chamou alguém que quebrava a norma da conveniência de apenas chamar os ‘dispostos à coletividade’. Foi assim, ele pensou, que entrou nesse meio e veio para o turno da noite.
Não se via tanto dever e comprometimento do alto escalão, que muitas vezes não dava nem o mínimo de empatia, seja através do profissionalismo ou pela sinceridade. Não era um sentimento de peito somente, mas um de consideração por todos que lhe deram a confiança, e não o fazia bem pensar que essa injustiça continuou.
“É assim que vão nos sacrificar”, murmurou Mikami.
Então, sua inquietação teve o encontro certo com a hora. Depois da conversa, o som das viaturas à distância diminuía, subia até se brincar no caos. A sirene foi tão alta que quase ensurdeceu todos, e no entremeio, um susto.
Antes que dissesse sobre sua decepção, eles escutaram três tiros bem distantes e intermitentes vindo de mais distante. Isso os alertou ainda mais. Sentiram-se inúteis ao ponto da própria raiva tomar por inteiro seus corpos. Uma incógnita reação vinha rumo ao desamparo.
“Eles chegaram”, agonizou Hiroshi em terror, como um pai incapaz de defender seus filhos.
“Não há mais missão de paz aqui. Me ajudem a abrir isso aqui, vamos logo! Vamos, vamos!”, o sargento os chamou para o serviço, com todo o fôlego do mundo.
Mikami então não se conteve e empurrou a porta, tentou quebrá-la e fez um barulho alto. Mas não teve sucesso nenhum. A porta não só estava trancada, mas emperrada com tudo o que fosse possível.
Não adiantaram os chutes e os socos, nem os dentes cerrados pelo esforço. Os outros até se comoveram para ajudar, e engatinhar do jeito que dava para evitar as janelas. Não seria muito empolgante ou feliz que um colega fosse deixado para trás nessa missão, quando era necessário ainda mais vindo daqueles oficiais.
Mesmo com tanta cooperação, e quase quebrando sua fechadura, a sua resistência foi provada e nada a deslocou, porque havia um peso enorme sobre a porta; por isso nada mexeria, mas o que custava torcer para que caíssem?
Não foi como esperado. Além das portas serem protegidas e não terem frestas, eles não se depararam com a possibilidade de que havia uma estante enorme sobre lá.
Após tanta barulhada feita sobre a entrada, o jovem travou as mãos sobre seu coldre. Mikami então os calou e quase quebrou as mãos dos outros que o seguiram. Os outros pensaram que foi porque não daria certo, e já sentiam no Sargento a impaciência. No entanto, as pupilas delas caíram como um ponto.
“Vão embora logo!”, Mikami sussurrou raivosamente. “Abaixem-se!”
O oficial endureceu a postura, puxou a pistola de seu coldre e apontou sobre a porta. Era só ele e o Hiroshi que estavam armados. O velho Inspetor se escondeu atrás de uma mesa, pois agora não era mais questão de confiar no julgamento dele, mas de achar uma saída. Pediu para que se abaixassem e se escondessem. Mikami percebeu que fez barulho demais. Teria sido melhor o silêncio? Não, talvez não fosse o caso. Aqueles passos não vieram acelerados até ele, não tinham pressa; logo, menos podia ser uma surpresa.
Uma estante foi arrastada, e mais passos foram ouvidos. O som de um clique então ressoou sobre a fechadura, que girou lentamente. Um guarda-mão de uma escopeta fez sua presença, como um carimbo. Estavam preparados como nunca. Armados até os dentes. Estava tão silencioso que não se ouvia a voz dos invasores; ao contrário de seus rifles, engatilhados em vários cliques doloridos. Tratavam-se de armas pesadas logo atrás.
Mikami puxou o ferrolho da pistola, engatilhou-a e se afastou, e moveu os outros à força consigo. Uns tropeçavam sobre si sem saber a quem obedecer. Hiroshi se escondeu sobre o monitor de um computador, e apontou para a porta.
Os outros desarmados se agacharam e se calaram. Não se atreveram a pôr uma chave na fechaduras, não dariam sinal para o assalto. Intimidava-os com nada que equivalesse ao anseio de saborear a cobrança dos pecados de quem os odiou, e então gestualizou, estendendo o polegar e o indicador sobre os olhos, até estendê-los na direção da porta, temendo que toda atenção do mundo não fosse suficiente para cobrir sua salvaguarda.
De súbito, através da pressa e de um forte impulso, a porta foi arrombada, dando os primeiros instantes. Seu livramento tomou forma, muito rápido. Desceu-lhes então o respaldo de se jogar sobre o chão, mas a paciência de aguardar o momento certo, por medo de haver em seu julgamento um péssimo dedo para decidir. Mas, a sombra os afugentou.
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