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    O quarto de Siegfried estava em ruínas.

    As paredes de pedra, marcadas por uma centena de cortes que destruíram também as tapeçarias e candelabros. Mesas e cadeiras quebradas faziam agora parte da decoração. E nem mesmo a cama de dossel escapou de sua fúria; os seus suportes de madeira haviam quebrado, fazendo a parte de cima desmoronar; o colchão de penas, rasgado, e as penas espalhadas pelo chão.

    O rapaz não se importava. Nem com isso, nem com o frio e muito menos com o escuro. Lili não voltou a aparecer. Não desde que teve a sua conversa com Mimosa. Ainda assim, não conseguia dormir. Sentia-se sujo.

    Estava sentado na ponta da cama, segurando a espada com ambas as mãos. O cabo manchado de sangue seco da sua mão direita — a atadura em volta dela, úmida, e a pele em carne viva por baixo.

    Não podia mais fingir.

    O garoto orgulhoso que havia sido um dia, agora estava morto. Suas escolhas o mataram há muito tempo. A criança que fora era fraca demais para sobreviver, então se tornou um homem. Uma fera.

    “E a fera abomina a honra.”

    Siegfried tirou a lâmina da bainha e o aço anão o encarou de volta. Duro e escuro. Embora Halbar tenha lhe dado uma forma única que simbolizava como cada guerreiro era diferente, os anões se orgulhavam da praticidade, não da beleza. Seria impossível confundi-la com uma espada comum, mas não era qualquer um que saberia dizer o porquê.

    E havia algo ainda mais profundo nela. Algo que apenas um guerreiro de Qaredia seria capaz de notar. Uma pequena inscrição próxima ao punho, feita em runas anãs: Por ela. Mas, mesmo entre aqueles capazes de lê-la, apenas Siegfried sabia o seu significado.

    Lura.

    Não a merecia. Nunca a mereceu. Veio à Thedrit para conquistá-la, mostrar que era digno de pedir sua mão em casamento, mas no fim, a única coisa que provou é que estava errado. Que devia esquecê-la.

    Ela era uma princesa. Casaria com um herói ou o líder de um grande clã — provavelmente alguém que fosse ambos. E esqueceria de Siegfried… Se é que ainda lembrava dele. Três anos era muito tempo, mesmo para uma anã.

    Então, o que lhe restava?

    Siegfried foi encontrar Mimosa no quarto ao lado do seu, dormindo na cama de dossel — enrolada em cobertores de lã e peles de animais, tal como um filhote encolhido em seu ninho.

    — Estamos partindo! — disse e a garota acordou assustada, se pondo sentada na cama, enquanto puxava os cobertores ao peito. O rosto corado de vergonha. Mas o rapaz não pôde deixar de notar: — Por que você tá pelada?

    — Por que você é um babaca!?

    — …

    — É a primeira vez que eu durmo numa cama de verdade, tá? E gosto dos cobertores. São macios e quentinhos. Ei! Por que eu tô me explicando pra você!? Que merda cê tá fazendo no meu quarto!?

    — Nós estamos indo.

    — Quê? Agora?

    — Agora!

    Era possível ver a decepção no rosto da garota. E não era difícil saber o motivo. Eroth permitiu à jovem decorar o próprio quarto e foi o que ela fez, trazendo suas coisas e transformando o local na sua casa. Quentinha e arrumada. Muito diferente do vagão frio e bagunçado que os trouxe até ali.

    — Tá legal — ela disse, com o entusiasmo de um animal castrado. Então arremessou o travesseiro na direção de Siegfried e gritou: — Agora cai fora que eu vou me vestir!

    — Nada que eu já não tenha visto.

    — E nada que você vá ver de novo, pervertido!

    Então jogou outro travesseiro e Siegfried deixou o quarto, sorrindo. Nessa altura, o sol já havia nascido e, aos poucos, a família Kroft acordava.

    A pequena Eva foi a primeira que viu, deixando o quarto do seu irmão mais novo, Benn, e voltando para o dela antes que alguém notasse. Quando a garotinha notou Siegfried no corredor, tomou um susto e correu, se trancando no próprio quarto.

    Depois da pequena nobre, foi a vez de Blossom, a sósia de Ethel. O rapaz tentou ignorá-la, mas a serva fez questão de vir ter com ele:

    — Mestre Arannis. Muito bom-dia.

    — Blossom.

    — Fico feliz em ver que o senhor está melhor. — Não que a expressão dela refletisse suas palavras. O seu rosto era uma máscara e não entregava nenhum traço de emoção. Por menor que fosse. — Vejo que saiu do seu quarto. Se me permite, irei arrumá-lo.

    — Hum.

    — Então, se me der licença.

    — Espera!

    — Pois não?

    — …

    — Algum problema?

    — Naquele dia, no pântano. Você não se perdeu, não é?

    — …

    — Eu te vi lutando. Você fugiu. E eles foram atrás de você. Por quê?

    — …

    — Blossom?

    — …

    — Blossom!

    — Sim?

    — Por que você fugiu?

    — Não sei do que está falando. Sinto muito, mas tenho muito trabalho a fazer.

    E já estava indo embora, quando Siegfried pegou seu braço e a garota parou. Mas não soube o que dizer. Não era Ethel. Ainda assim, não podia simplesmente deixá-la, tão pouco podia levá-la consigo. Então lembrou de Izzie, a garota da Floresta das Aranhas. Ele a abandonou. Não a ajudou. E ela morreu por isso.

    Também deixou Dara para trás…

    — Vem comigo.

    — Perdão?

    — Estamos partindo. Hoje. Agora. Se quiser, eu levo você junto.

    — Eu pertenço à lady Eroth.

    — … Eu falo com ela.

    — Não! — E pela primeira vez: terror. Um puxão e a garota se libertou, mas encarou Siegfried por um momento antes de fugir correndo.

    “Você realmente tem um dom com as mulheres, ein?”, sussurrou Lili em seu ouvido. Ou teria sido ele mesmo? Já não tinha certeza.

    Mimosa levou pouco mais de meia-hora até sair do quarto. O cabelo negro, desgrenhado e cheio de volume; uma saia de lã vermelha que chegava até os tornozelos e uma blusa branca com decote ombro a ombro. Ao invés de focar em se arrumar, a garota gastou o seu tempo recolhendo todas as suas coisas em uma grande sacola que trazia no ombro.

    Mas assim que chegaram ao pátio do castelo…

    — Onde pensam que vão!? — perguntou o lorde Kroft, de espada na mão e com os cães rosnando ao seu lado.

    — Embora! — disse Siegfried. — Já abusamos demais da sua hospitalidade.

    — Nisso concordamos. Mas não me lembro de ter lhes dado licença para partir.

    — A baronesa disse que éramos seus convidados.

    — E são. Agora voltem pros seus quartos!

    Siegfried deu uma olhada ao seu redor, mas não encontrou os ogros. Quanto tempo levaria até que um deles chegasse ao local? Da última vez, foram poucos minutos. Será que conseguia matar o barão Kroft e partir antes disso?

    Nunca teria a chance de descobrir, pois Blossom apareceu bem na hora:

    — Mestre Arannis. A lady Eroth solicita a sua presença.

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