Índice de Capítulo

    O saco improvisado balançava enquanto Hazan dava o último nó no galho. 

    O tecido era uma colcha de retalhos de sobras da alfaiataria de Lumélia, com cores mais escuras e texturas diferentes costuradas às pressas, mas firmes o suficiente para aguentar socos.

    Hazan usava as mesmas botas e calças marrons de sempre. E graças a Lumélia, uma camisa preta parecida com a que usava, embora o tecido fosse diferente.

    — Aí está — disse Hazan, dando dois tapinhas na lateral do saco. — O nome disso é “saco de pancadas”.

    Aspen inclinou a cabeça, confuso.

    — Saco de… pancadas?

    Lunna estreitou os olhos, ainda mais confusa.

     — Então… a gente tem que bater nisso?

    — Mais ou menos. — Hazan deu uns tapinhas no saco, com um sorriso de canto. — Isso serve pra treinar sequências de golpes. Pra errar aqui, em vez de errar quando vale a sua vida.

    Aspen esboçou uma careta assustada, pois sentiu que aquilo não era uma piada.

    De longe, Cassandra observava tudo com um sorriso sutil, os cabelos escuros presos no mesmo coque prático de sempre, embora algumas mechas rebeldes estivessem soltas. 

    Liara, ajoelhada entre flores no jardim, ergueu os olhos curiosos sem soltar a enxada.

    Aspen deu um passo à frente, a hesitação estampada no rosto.

    Estalou os dedos na esperança de acalmar as mãos cobertas por ataduras.

    Copiando de memória os movimentos de Hazan, fechou a mão e disparou um direto rápido. 

    O soco acertou, o saco balançou… e voltou com tudo contra o nariz dele.

    PÁ!

    O meio-elfo caiu de bunda no chão, tapando o nariz na mesma hora. Quando abaixou as mãos, o sangue escorreu quase de imediato.

    — Aspen! — Lunna correu até ele, seguida por Zara e Rashid, os irmãos pequenos de pele morena.

    Liara chegou logo atrás, puxando um pano limpo do bolso. Ajoelhou-se ao lado do elfo e, com delicadeza, limpou o nariz dele, mesmo enquanto ele resmungava baixinho.

    — Q-quando for assim, v-você tem que esquivar, menino!

    Cassandra, claro, já estava rabiscando a cena no caderno, sorrindo sozinha.

    Hazan soltou um suspiro, estendendo a mão para Aspen.

    — Levanta.

    O garoto, ainda meio tonto, aceitou a ajuda, enquanto era observado em silêncio pelo lutador.

    O direto dele foi limpo… bem limpo. Ele disse que esteve treinando sozinho, mas… não esperava que fosse tão bom. Só precisa ajustar os hábitos ruins e a falta de força.

    Mas não disse isso em voz alta. Apenas comentou:

    — Você sabe os movimentos, mas não tem prática de verdade. Foi por isso que aquele garoto te derrubou nos becos.

    Aspen abaixou os olhos.

    Bargo… ele realmente acabou comigo.

    — Quero que preste atenção, Aspen. — Havia algo na voz do lutador, uma firmeza que não admitia descuido. Sem pensar, Aspen endireitou a postura e fixou o olhar nele.

    Hazan começou dando saltos leves, e então, entrou na postura básica de boxe.

    Lançou jabs e diretos, esquivou e movimentou-se ao redor do saco de pancadas com leveza.

    Os olhos azuis do meio-elfo brilharam ao observar cada ataque e mudança de postura.

    É tão diferente de quando eu faço… Será que um dia, vou conseguir fazer isso também?

    — Isso aqui é boxe. Punhos, passos, jogo de cintura. Já isso… 

    De repente, mudou totalmente sua postura, erguendo os braços e o joelho direito. Agora, os ataques eram mais brutos, com cotoveladas que cortavam o vento. Zara e Rashid se afastaram com medo, escondendo-se atrás de Liara.

    Ele não parou ali. Subiu a perna em um chute alto, o impacto reverberando pelo couro e esticando a corda que prendia no galho.

    O saco retornou desgovernado, pronto para derrubá-lo como fez com Aspen.

    O lutador se adiantou, e no tempo perfeito, interceptou-o com uma joelhada precisa que enrugou todo o couro.

    Bam!

    — E isso é muay thai. Cotoveladas, joelhadas, chutes, e muito contato direto.

    Surpresa e admiração eram as palavras que definiam o que Aspen sentia naquele momento. 

    — Escolha um desses. E quando escolher, não tem mais volta — alertou o rapaz, de braços cruzados.

    Enquanto Aspen refletia sobre como prosseguir, uma pequena fissura surgiu no saco. A fissura se transformou num rasgo, cujo terra começou a escapar.

    — H-Hazan… — O jovem de cabelos loiros apontou com o dedo indicador, trêmulo.

    — Hm? — Hazan olhou, notando que o saco estava destruído. — Porcaria, meu precioso!

    Ele se apressou e desamarrou o nó da árvore.

    Droga, e eu ainda me segurei! Couro reforçado é o cacete, eu fui enganado!

    — Eu quero boxe.

    Hazan ergueu a cabeça. Encarou Aspen por cima dos ombros, vendo o garoto limpar o sangue do nariz com as costas da mão.

    Arqueou a sobrancelha.

    — Por quê?

    — Eu tenho braços longos, e me movimento fácil. O boxe aproveita isso. O muay thai ia precisar de contato direto, de aguentar mais pancada. Não é meu ponto forte…

    Hazan respirou fundo, quase escondendo um sorriso. 

    Esse moleque pensa bem… até demais pra idade.

    Hazan bateu de leve no ombro de Aspen, que ainda parecia meio perdido com a novidade do saco de pancadas improvisado.

    — Então, o combinado é esse: três quilômetros todo dia. Quando terminar, vai decorar as sequências que eu te passar e fechar com esquivas e passadas.

    Aspen respirou fundo, tentando parecer mais confiante do que realmente estava.

    — Certo… três quilômetros, sequências, esquivas. Eu dou conta.

    — Se falou, tem que cumprir.

    Depois de costurar o saco com os tecidos velhos que Cassandra tinha em casa, Aspen começou a treinar as sequências que Hazan lhe mostrava.

    O lutador observava de longe, sentado na grama ao lado de Lunna, quando Rashid apareceu correndo, os olhos brilhando de admiração.

    — Hazinho! — Ele abriu um sorriso largo. — Desculpa por duvidar de você, agora eu acredito que derrotou um pujante! Me ensina também, vai? Eu vou ser o mais forte do mundo!

    Hazan riu baixo e bagunçou o cabelo do garoto.

    — O mais forte, é? Sonho grande, hein. Mas ainda não é sua hora.

    — Hihi! — Zara surgiu logo atrás, com sorriso debochado. — Pra que ficar dando soquinhos, se eu posso acabar com você usando magia? Lunna me disse que Aurora é maga, e magia é sempre a melhor opção!

    Rashid virou-se para ela na hora.

    — Cala a boca! Não é não!

    — É sim! — ela retrucou, já começando a cutucar o irmão no braço.

    Os dois engataram numa briga de gato e cachorro, cada um tentando falar mais alto que o outro.

    Com um assobio baixo, o rapaz observava a peça teatral.

    Uau, Aspen e Lunna ensinaram eles direitinho.

    Não demorou para os irmãos mudarem de briga para torcida, gritando juntos cada vez que Aspen acertava o saco mais forte.

    Quando o treino terminou, Aspen caiu sentado na grama, exausto, mas com um sorriso no rosto.

    Os irmãos ergueram Aspen no ar como forma de parabenizá-lo, mas isso não foi muito encorajador para o elfo.

    — A gente economizou nossa mesada pra participar do Obelisco do Despertar da Pena Azul! — disse Lunna, quase saltando. — Nem acredito que começa amanhã!

    — A idade mínima para participar é quatorze anos! — completou Aspen. — Se a gente mostrar afinidade para mana ou aura, podemos ser recrutados pela guilda!

    — E já decidiu o que quer ser?

    A pergunta o pegou desprevenido. Desde que entrara em contato com Hazan, um lutador nato, estava interessado em seguir os mesmos passos. E a resposta para isso era…

    — Eu quero ser um pujante — declarou, os olhos firmes.

    Cassandra arregalou os olhos com a declaração, e Hazan apenas sorriu.

    — Se é isso que deseja, só pare depois que conseguir.

    O elfo bufou, cerrando os punhos determinado.

    — Eu posso participar também? — Hazan falou, apontando para si mesmo.

    Da última vez, Agnis disse que eu não tinha as veias de mana ou aura, mas é bom confirmar.

    — Claro! — Lunna falou. — Vai com a gente, Hazan! Vai ser diverti-

    Aspen puxou o chifre de Lunna, interrompendo sua fala.

    Lunna o encarou com uma veia pulsando na bochecha, mas ao observar a expressão medrosa do irmão, não entendeu. 

    Até que olhou na mesma direção que ele, e fez a mesma feição.

    Aurora estava parada na entrada do orfanato, de braços cruzados.

    Andou até Hazan, cumprimentando-o num aperto de mão, gesto esse que intrigou os irmãos devido ao sorriso debochado do lutador. 

    — Precisamos conversar.

    Aspen empalideceu, engolindo em seco.

    — A… a dívida… — murmurou para a irmã. — A gente não vai conseguir participar do Obelisco desse ano…

    Mesmo assim, respirou fundo, reuniu coragem e foi até Aurora, segurando um punhado de moedas de prata trêmulas na palma e um contrato amassado entre os dedos.

    — Aqui… é o que conseguimos juntar.

    Aurora pegou o papel, leu sem pressa. O olhar frio passou pelas moedas. Soltou um suspiro breve, quase um bufo de tédio.

    — Isso está errado.

    — N-nós sabemos! — falaram juntos, quase engasgando.

    — Fazemos qualquer coisa para pagar o resto, é só dizer, Aurora! — Lunna implorou.

    Aurora ergueu a mão. Os irmãos encolheram, os olhos fechados, esperando o pior. Nada. Quando arriscaram espiar, viram apenas uma moeda de cobre descansando em sua palma.

    — Isto basta.

    O medo evaporou num instante. O peso saiu de seus ombros, e sem pensar, pularam sobre ela em um abraço apertado.

    A pele dela era gelada, mas o calor dos dois a envolveu por todos os lados. Hazan, observando de longe, percebeu algo raro: um vacilo.

    Não havia frieza ali, só surpresa genuína, como quem não sabia o que fazer com aquele gesto. Por um segundo, os braços dela permaneceram rígidos, suspensos no ar, antes que a máscara voltasse a cobrir o rosto.

    — Não façam isso de novo. — A voz saiu baixa, mas firme. Ela se afastou rápido.

    — Desculpa! — responderam os dois em coro, juntando as mãos em um gesto pacífico.

    Hazan guardou para si aquela rara visão de sua companheira sem armadura.

    Talvez fizesse bem a ela se deixasse essa muralha cair mais vezes.


    Alguns olhares se voltaram para a dupla que já estavam há alguns minutos sentados em uma mesa para dois.

    Ao lado, havia uma janela, onde o céu trocava seu brilho alaranjado pela penumbra da noite.

    Os fregueses mais antigos de Hazan não perderam tempo: alguns sorriram de canto, murmurando piadinhas sobre como ele parecia um “galã de taverna”, enquanto outros só disfarçavam a curiosidade diante da presença de Aurora, cuja beleza fria e insólita destoava de qualquer um ali.

    Aurora estava com um pequeno mapa aberto sobre a mesa.

    — Se o navio está fora de questão, vamos precisar contornar o terreno a pé. Não vai ser fácil. Não dá pra levar muita comida, então vamos ter que caçar ou reabastecer em vilas próximas — comentou, traçando o caminho no mapa com o indicador, com a seriedade habitual no tom.

    Ela ergueu o olhar, esperando alguma reação de Hazan, mas o que encontrou foi ele devorando uma tigela lotada de coxas de frango.

    — Você vai continuar se empanturrando como um esfomeado, ou vai prestar atenção? — ela indagou, franzindo o cenho.

    Hazan levantou o polegar sem parar de mastigar. — Eu consigo fazer os dois.

    Aurora estreitou os olhos, respirou fundo e optou por ignorar, voltando ao mapa.

    — O que eu disse antes é apenas especulação. Ariasken não é uma cidade pequena, e para coletar informações de forma eficiente… eu usava carruagens constantemente.

    — Usava? — Hazan repetiu com a boca ainda cheia.

    Aurora hesitou. Depois soltou um suspiro pesado.

    — Por algum motivo, cocheiro nenhum quer fazer negócios comigo.

    Hazan, que nesse momento estava virando uma caneca de cerveja, quase engasgou. 

    Ele bateu a caneca na mesa, rindo tão alto que fez duas mesas próximas olharem.

    Hahaha! Eu não acredito! Você é tão insuportável assim quando eu não tô por perto!?

    Embora uma veia estivesse claramente pulsando em sua têmpora, a polariana manteve a compostura.

    — E você? — perguntou, o tom controlado. — Nada de estranho aconteceu quando tentou pegar uma carruagem?

    Hazan revirou os olhos como se aquela fosse a pergunta mais absurda do mundo.

    — Carruagens? — Ele riu, inclinando-se para trás na cadeira. — Eu já corri essa cidade inteira sem gastar uma única moeda. — O sorriso malandro se abriu no rosto. — E mesmo se eu usasse… tenho certeza de que não seria tão insuportável quanto uma certa pessoa que eu conheço.

    Aurora não piscou. Seus olhos emitiram um brilho frio.

    E se eu só matar ele aqui? Isso vai resolver metade dos meus problemas.

    Ao perceber a encarada, Hazan desviou o olhar, disfarçando com um gole na caneca.

    — Queríamos o navio pela velocidade — ela explicou, soltando um suspiro. — Cruzar o mar até a outra costa levaria no máximo duas semanas. A pé, vamos levar um mês. Precisamos de montarias.

    Hazan levantou uma sobrancelha, ainda mastigando. — E?

    — Nenhum dono de estábulo quis vender cavalos para mim.

    Dessa vez, Hazan não riu. O osso de frango parou a meio caminho da boca, e ele arregalou os olhos.

    — Ei… você tem certeza de que não tá acumulando inimigos demais por aí? — Ele se inclinou para a frente, baixando o tom e usando a mão para abafar o som. — Aquele marinheiro do outro dia parecia pronto pra te jogar no mar.

    — Você pode ter certeza que não. Se eu defino alguém como inimigo, considere-o morto.

    Houve um silêncio tenso na mesa. Hazan deu de ombros, terminou a cerveja de uma vez só e a bateu na mesa, terminando com um arroto tão alto que ecoou pelo salão.

    Alguns clientes olharam torto, outros riram como se fosse típico dele. Hazan apoiou o queixo na mão e falou com naturalidade:

    — Tá vendo? É assim que se faz amigos. Pensa nisso quando reclamar do preço em vez de barganhar.

    Aurora arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços devagar.

    — Não era questão de barganha. A “Grande Aproximação”  aconteceu há anos… e aquele preço simplesmente não fazia sentido.

    Ela apontou para a janela ao lado deles.

    — Aquela lua pálida no céu se chama Selunyth. Quando se aproximou de repente, dezenas de milhares morreram. O mar enlouqueceu: marés altas, correntes violentas. A gravidade… quebrou as regras. Em certas regiões, o peso esmagava colheitas, rachava fundações. Em outras… esmagava animais e pessoas.

    O sorriso de Hazan morreu. Ele se endireitou, atento.

    — E aposto que não foi só isso — murmurou.

    Aurora assentiu, os olhos fixos no horizonte, embora seu semblante continuasse frio.

    — A densidade da mana quebrou muitos magos. Alguns reinos, em Absolis, se aproveitaram disso… atacaram enquanto os magos ainda se adaptavam. Chamam essa época de “Era de Prata”.

    Hazan engoliu em seco, percebendo o peso da história nas palavras dela.

    — O Rei Solud foi o mais cruel. Anexou territórios, subjugou reinos inteiros, assassinou descendentes… Só parou quando Leônidas Ignis esmagou seu exército e restaurou o trono. — Aurora deixou a voz deslizar, um eco sombrio, antes de completar: — O atual rei tentou reparar os danos, e deu nomes antigos a algumas cidades… como lembrança.

    — Então… Ariasken era um reino? — Hazan arriscou.

    Ela inclinou a cabeça, firme.

    — Sim. E há outras cidades com nomes de antigos territórios. Mas não estamos aqui para aulas de história. — Gesticulou para o mapa. — Sua preocupação é enfiar nessa cabeça todas as rotas possíveis até Sohen.

    Hazan tentou continuar, curioso, mas Aurora cortou:

    — E, antes que pergunte… sim, ele enfrentou um exército de 10 mil homens sozinho. Dizem que era um Pujante Imperador.

    Horas se arrastaram enquanto a taverna se esvaziava ao redor deles, até que precisaram se mudar para a pousada de Randolf, o único lugar disponível para continuar os cálculos. 

    A luz fraca das lamparinas iluminava o mapa aberto sobre o chão de madeira, cheio de anotações e linhas traçadas.

    Aurora apontava com o indicador, descrevendo os picos mais traiçoeiros e as florestas densas, explicando a Hazan como a geografia podia favorecer ou arruinar uma emboscada.

    Hazan escutava atento, franzindo a testa ao tentar visualizar a topografia em sua mente. De vez em quando, Aurora fazia perguntas que o desafiava.

    O mundo lá fora podia ser vasto e perigoso, cheio de imprevistos e armadilhas, mas ali, analisando um mapa naquele chão iluminado por lamparinas, os dois ficaram um pouco mais próximos.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota