Capítulo 104 - O Dualismo Presente
“Não fique no passado, não sonhe com o futuro, concentre a mente no momento presente.”
— Buda
Hotel Gigante de Shang Mu
Quarto Executivo Pleno | Noite adentro
Logo após a reunião em Noite da Fortuna, bem no centro iluminado da cidade, Lilac e seu time foram para o hotel sete estrelas.
A suíte que Royal Magister reservou para o intrépido grupo não poupou fundos.
O lugar continha camas separadas em quartos, eram oito, onde cada um tinha uma cama e um guarda-roupa, além de espelho e uma escrivaninha.
Espaçosos, possuíam colchão macio e lençóis de seda, tão vermelhos quanto a bandeira temática de Shang Mu.
A temperatura: 23 ºC.
Já era tarde, o sexteto estava em seus quartos, descansando após longas batalhas.
A noite desta vez guardava descanso e quietude, como um presente recebido com muito agrado.
O ruído abafado do movimento externo era quase inaudível.
Um cheiro delicado de chá verde renovava o ar, discreto como uma promessa — revigorando sem dominar os sentidos.
Harmonia reinava.
Em seu quarto, Lilac, deitada na cama, ainda não tinha encontrado o sono.
Olhava para o teto, com a luz da cabeceira baixa, relaxante.
Ela estava pensativa, embora a tensão não a incomodasse mais.
— “Amanhã começa o torneio. Eu não tenho dúvidas que todos irão dar o máximo, mas…”
Suas lembranças resgataram as palavras de Ying.
A promessa que ela fez para proteger Viktor martelava em sua mente, incessante.
Todavia, a clareza de suas ideias tomou forma: Lilac estava mais centrada, deixando claro que a mudança de rumo não tinha retorno.
— “Viktor mostrou confiança e muito juízo. Mesmo sabendo de tudo que está em sua volta ele não perdeu o brilho, sempre motivado a ajudar o time…”
Ela se virou na cama, buscando uma melhor posição.
Apoiava a cabeça sobre o braço, ainda pensativa.
— “Ying com certeza não gostaria de vê-lo participar desse torneio. Só que, diante a situação, seria injusto com Viktor. Foi por causa dele que ainda temos a missão.”
O sono pesava sobre seus olhos, onde os sonhos já tomavam forma e a convidavam a encontrar o amanhã.
Mas, antes disso, um último pensamento a norteou.
— “Não sei como será, mas com certeza teremos muitos lutadores neste torneio de alto nível. E eu sei, eu sinto… que Viktor nunca irá desistir.”
Com o sensor da luz ativado, a luminosidade do local identificou que ela já estava dormindo, abaixando a luz até que a apagasse por completo.
Para Lilac já era de manhã; para dois outros do time, a noite ainda não tinha acabado.
Minutos depois…
No centro da sala principal da suíte, o relógio marcava quase meia-noite.
Todo de metal, seu acabamento nobre se destacava, quase como um marco.
Mecânico, o tic-tac singelo não incomodava; aliás, servia como uma canção de ninar, afirmando a passagem temporal.
Junto com o ruído, passos marcavam a cada toque das engrenagens, em um sincronismo harmônico.
Era Noah.
O albino, em frente a uma porta, tinha um olhar convicto.
Ele levantou sua mão, mostrando que iria bater.
Mas, por algum motivo, recuou, evitando o alarme.
Seu olhar se tornou distante, sua mão teimava em relutar, porém executou o gesto como se aquilo lhe gerasse angústia.
Ele bateu três vezes na porta, acompanhado por passos atrás.
Era Viktor.
— Hã? Noah? — falou, cuja sonolência se encontrou com a surpresa. — O que houve? Já está tarde…
— Peço desculpas por isso, mas precisamos conversar.
— Co-como assim?! — seu sono deu lugar a confusão. — Co-conversar?
— Sim… — falou, sem desviar o olhar. — Podemos?
— Ah, claro… — Viktor disse, pondo seus tênis.
Pronto, o humano seguiu Noah, em direção ao elevador.
Isso gerou curiosidade.
— Ué, vamos sair do hotel?
— Não exatamente… — Noah apertou um dos botões na parede.
Ao abrir a porta, os dois embarcaram, onde o elevador tornou a se movimentar para cima.
O destino era a cobertura.
— Nossa, aqui é demais!
Viktor logo correu para o parapeito do local, cuja visão privilegiada do centro da cidade o encantou instantaneamente.
Não só isso: o local luxuoso ostentava frigobar, um salão de festas e, mais ao sul, uma área de recreação bastante equipada.
Noah, centrado, parecia já saber do cenário, buscando uma das poltronas em um espaço reservado logo ao centro.
Viktor voltou o olhar, percebendo que o albino estava o esperando.
Contido, o jovem humano foi até onde estava, se sentando ao lado, em outra poltrona.
— O que quer conversar, Noah? — disse, um pouco curioso. — Você parece preocupado.
— Antes que comecemos, você disse que guardaria o que te disse mais cedo… Posso saber o porquê? Fui insensível com você, eu sei disso.
— Não se preocupe com isso, está bem? É bom receber críticas e avisos. Não sou desse lugar, logo tenho que me adequar com o que conseguir de vocês.
Noah reclinou sua cabeça, olhando as estrelas.
Ele olhou para Viktor, com a lua refletida nos seus olhos verdes esmeralda.
— Por que você está em Avalice? E por que está andando com Lilac e as garotas?
— Ei, calma! — o humano sorriu, um pouco sem jeito. — É muita pergunta de uma só vez!
Noah recuou, encostando na poltrona. Ele mesmo se deu conta que estava impávido demais.
— Você está certo… — puxou ar, respirando a seguir.
— Eu não sei porque estou aqui — seco, Viktor respondeu a primeira pergunta.
— Você quer me dizer que está aqui por acaso ou o quê?
— Eu não sei… Na verdade, aconteceu tanta coisa nos últimos dias pra mim que isso definitivamente não faz diferença.
— Do que se refere?
— Coisas pessoais, sabe? O meu mundo gira como o seu, a minha vida segue como a de vocês… Tive meus problemas.
Noah voltou a olhar para Viktor, atiçado pela sinceridade do jovem.
Dotado de uma inteligência acima da média, o albino tentou achar motivos.
— O acaso guarda muitas vieses. Algum acontecimento, tecnológico ou climático, pode ter proporcionado isso.
— Uma cientista em Shang Tu falou o mesmo. Não sei como te responder. Desculpa.
Um silêncio veio.
Os dois, olhando o vasto horizonte iluminado de Shang Mu pareciam disputar quem falaria primeiro.
Partiu de Noah.
— Por que está andando com Lilac? Você foi a primeira pessoa que olhei quando entrou na minha biblioteca.
— Ela me acolheu logo depois de aparecer em uma floresta com criaturas feitas de plantas… Até hoje não sei como não fiquei louco ao ver aquilo.
Os olhos de Noah tremeram, não acreditando no que tinha acabado de ouvir.
— Do que está falando?! Que criaturas são essas? — ele quase saltou da poltrona.
— Noah, calma! Está tudo bem… — Viktor o acalmou, com uma das mãos sobre seu ombro. — Nunca te vi assim tão preocupado. O que houve?
O albino se ajeitou, percebendo que se deixou vulnerável.
Envergonhado, tratou de se recompor.
— Desculpe-me pela falta. Prometo que não irá se repetir.
— Tudo bem. Você não precisa ser tão sério.
— Mas, por favor, fale dessas criaturas.
Viktor o explicou.
Sua aparição conturbada na região da Planícies do Orvalho, cercado de incertezas e criaturas sinistras, foi agraciada pela ajuda de Lilac e suas amigas, o livrando de um fim trágico.
Ao fim do relato, Noah, com os braços apoiados sobre os joelhos, pensava:
— “O que está acontecendo em Avalice? Porque Lilac não me contou isso?” — ele refletiu ainda mais. — “E por que ninguém de Shang Mu está falando isso pelas ruas?”
O silêncio durante seus pensamentos levou segundos, o diálogo de Viktor se mantevera
Enfim, ele falou da confusão em Shang Tu (visto no torneio de artes marciais), o que impactou no porquê de estar com Lilac:
— E, por causa disso, estou sob custódia. Lilac é a responsável por “me vigiar”. O Royal Magister confiou isso a ela.
— Hm, curioso… — murmurou Noah, disfarçando. — “Posso colher mais informações dele…”
A indagação interna do albino deixou claro que Viktor era uma fonte de informações.
A sinceridade do humano deixou Noah à vontade para seguir com suas perguntas.
Havia mais a perguntar.
— Você se lembrou delas lá na lanchonete.
— Está falando das suas amigas Ingrid e Íris?
— Isso mesmo. Se existe um motivo para tê-las citado, eu quero mesmo saber.
— Por que eu me identifico com você.
Isso surpreendeu Noah.
Curioso pelo o que Viktor disse, não perdeu tempo:
— Você se identifica comigo? — sua voz mostrava controle, mas seus pensamentos estavam lotados de curiosidade. — “Esse estrangeiro não para de me surpreender.”
O jovem humano se levantou.
Viktor voltou até o parapeito, caminhando em silêncio.
Não estava mostrando nervosismo ou sequer fugindo do assunto.
Ele buscou só um novo foco.
Noah, repleto de incógnitas, o seguiu, ficando a seu lado.
— Por que veio até aqui? — disse o albino.
— Eu gostei de olhar para a cidade. Aqui é lindo, sabia?
O albino contemplou a cidade, motivo do foco do humano, que relatou:
— No meu mundo, moro em uma cidade muito urbana. Tirando o dojoh do meu mestre, não há mais nada oriental. Mas aqui, tudo emana a essência milenar.
Foi nesse instante que Noah percebeu que o norte de Viktor era a Zona Milenial.
Nesse ponto, o albino comentou:
— Artistas marciais reagem com ensinamentos milenares.
— Isso mesmo! — respondeu Viktor, sem tirar os olhos da Zona Milenial.
Outro silêncio veio.
A fraca brisa se tornou um pouco mais forte, trazendo o movimento de Noah a perguntar.
— Qual o motivo da sua identidade comigo?
— Eu… — Viktor abaixou a voz, mas forçou a resposta. — Eu também sou órfão.
Noah arregalou seus olhos.
O verde deles ficou ainda mais realçado, com as luzes de Shang Mu o iluminando.
Viktor não parou.
— Eu já vivia sozinho. Antes tinha minha avó, que também partiu… — sua voz, cheia de pesares, logo deu lugar a confiança. — Ela viveu intensamente… e eu sigo aqui por eles.
As palavras do humano atingiram o interior sofrido de Noah em cheio.
O estrangeiro tinha ainda uma última coisa a dizer.
— Saber da sua história me fez pensar, refletir. Às vezes fico lamentando por poucas coisas, mas você me lembrou os vários momentos que tive com a minha avó…
Atendo, Noah ouviu cada palavra dele.
— Eu sinto muita falta dela, dos meus pais. Mas tenho certeza de que ficaria pior se ficasse me lamentando e não levasse para frente tudo que eles me ensinaram. Vi isso em você também.
Um golpe poderoso no ego oculto de Noah.
As palavras de Viktor o tocaram o mais profundo que poderiam ir.
Algo dentro do albino foi incentivado, movido por uma vontade que até ele desconhecia.
Seu coração passou a bater forte, tão intenso que sua respiração passou a ficar um pouco mais funda, mesmo que imperceptível por parte de Viktor.
Porém, nada eram flores.
Viktor sentiu o ar mais carregado, uma pressão ocorreu ao redor.
Algo incômodo o suficiente para que tremesse.
— “O que está acontecendo?! Por que estou assim?!” — A sensação opressora lhe trouxe lembranças. — “Isso é… como na cidade mais cedo!”
O vento, que trazia frescor, desta vez moveu uma fragrância azeda, um odor desagradável que só aumentava.
Noah, internamente, incorreu.
— “Droga! Não… Não!” — ele, rangendo os dentes, pareceu sofrer com algo. — “ Preciso me concentrar, senão…”
Suas pulsações, então, se tornaram mais cadentes, diminuindo a sua pressão.
Aos poucos, a reação de Viktor mostrava sinais de alívio, mas que o fez olhar ao redor.
Em silêncio, deixando Noah de lado, observou o movimentar das árvores logo abaixo do hotel, assim como as nuvens.
Tudo voltou ao normal.
— Noah, você também sentiu? — falou, olhando para o albino.
Se recompondo, Noah ajeitou o colarinho, como se estivesse escondendo algo. Isso passou despercebido por Viktor.
— Do que está falando? — Noah disse, fitando o humano.
— Eu tive uma sensação ruim agora… — comentou, ficando mais acomodado em seguida. — Hm, acho que só foi impressão minha. Já está um pouco tarde…
Noah manteve o olhar, como se estivesse investigando. Ele percebeu que Viktor estava sendo novamente sincero.
— “Devo me acalmar. Está tudo bem… e ele também.”
Seja o que tenha acontecido, o jovem humano, de certa forma, teve uma participação.
O albino, voltando ao assunto, falou:
— Você disse que se identifica comigo… O fato de sermos órfãos é só um detalhe — indagou Noah. — Tem algo além disso, mais significativo.
Viktor sorriu, voltando a olhar para a Zona Milenial.
Ele respondeu:
— Você está certo em dizer isso — ele olhava para a Zona Milenial. — Essa sua vontade de seguir em frente que me motiva.
— Seguir em frente…? Poderia me explicar isso?
— Mesmo na dor você não parou de lutar, de salvar sua vida. E você era uma criança ainda… Como não me identificar com alguém que o tempo inteiro esteve lutando para ser quem é?
Outra vez as Íris dos olhos de Noah tremeram.
Só que, ao contrário de antes, obteve controle emocional, já que só em olhar para Viktor e ver seu sorriso lhe causou uma sensação boa e agradável.
Acima de estar à vontade: era paz.
Durou segundos, quase imperceptível, mas o sentimento perdurou por um período maior em sua mente.
Noah se mostrou curioso por saber mais de Viktor, porém a inversão de papéis veio rápido.
Ele pensou em dizer algo afrontoso, de quem queria descobrir mais nuances, mas deu dois passos para trás.
Foi nesse instante que ele percebeu o porquê de Lilac ter tanta estima pelo estrangeiro.
— “Ele não é só sincero. Há inocência, ele guarda mais coisas. Conversar com ele é como se eu estivesse olhando para um espelho e quisesse que ele fosse a imagem refletida.”
E essa projeção também lhe mostrou algo além:
— “Poderia colher mais informações, e eu sei que me entregaria, mas ele não é a pessoa a qual devo pedir isso.”
Tomado por um senso de moralidade alta, Noah escolheu preservar a integridade do humano.
Incapaz de seguir com seus questionamentos, recuou na sua busca.
A conversa se transformou: de uma discussão sobre o que estava acontecendo e desconfiança por, pasme, camaradagem.
Com esse sentimento na mente, ele tomou uma postura um pouco diferente: se virou para Viktor, como se estivesse prestes a lutar.
Por instinto, o humano entrou em prontidão, natural em lutadores.
Mas, mesmo assim, sua serenidade se manteve.
— O que foi, Noah? Por que está assim?
— Eu não sei de suas habilidades de combate.
— Hã? Mas… Você deseja que eu prove para você então?
— Não.
Seco, Noah respondeu, trazendo mais dúvidas a Viktor.
Entretanto, o albino não demorou em explicar seu ponto.
— Você se saiu bem com o Sheng. Não te vi recuar e sequer mostrar temor ou coisa do tipo. Isso já é uma prova de força. Outros cairiam na provocação, mas você não se desestabilizou.
Outro sorriso surgiu no rosto de Viktor, uma resposta espontânea, sabendo que o reconhecimento por sua bravura veio além de Lilac.
E esse foi o momento que Noah expôs um lado até então desconhecido: o apreço.
— Tem coisas que você precisa saber antes de se aventurar no mundo da luta em Avalice, estrangeiro.
— E o que seria?
A pergunta franca, a que moveu o desenrolar da noite incessante, veio acompanhada pela resposta, que traria uma nova direção.
Em poucas palavras, mostrar mais de Avalice.
Sua história e cultura, das artes marciais.
Com a palavra, Noah:
— Vou te mostrar o que é Nirvana.
“Aquele que vence os outros é forte; aquele que vence a si mesmo é poderoso.”
— Lao Tsé
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