A prisão subia em círculos pelo tronco de uma árvore, uma das maiores e mais antigas da floresta de Loryndel, com celas como ninhos vazios cravados na madeira, quase todas desertas. Na altura média, Maryse estava sentada de pernas cruzadas no chão, costas na parede viva. Os pulsos presos por uma algema de aço marcada com runas, feitas para cortar qualquer fagulha de essência. Ao lado, uma bandeja empurrada de volta com o pé: o que tinha sido um jantar agora eram restos de sementes lambidas de fruta.

    Do lado de fora, dois guardas elfos faziam corpo de porta com as lanças atravessadas. Um batucava o cabo no piso, no ritmo de quem espanta o sono; o outro vigiava sem piscar, tentando não encarar os olhos âmbar dela tempo demais.

    O primeiro caiu sem emitir nenhum som: foi ao chão como quem se entrega à cama após um dia de trabalho árduo. O segundo virou o rosto tarde demais: houve um lampejo de lâmina, um único corte e o corpo caiu sobre o primeiro. Uma sombra viva emergiu da noite; atravessou os degraus de corda, enfiou a chave na fechadura, girou devagar. O ferro rangeu baixo.

    Entrou, ajoelhou-se à frente de Maryse e ergueu a algema. Outra chave, um segundo de trabalho, e o aro cedeu. Ela manteve o queixo alto enquanto os pulsos ganhavam peso próprio de novo. Não agradeceu, só levantou.

    O bracelete de metal apareceu na mão enluvada: polido, marcas finas gravadas a cinzel. Maryse olhou de lado, a repulsa estampada no rosto. A sombra não recuou.

    — É a arma que vai te ajudar a tomar a floresta de volta — disse, baixa. — Dos que a estão consumindo.

    Maryse segurou o aro, sentiu o peso e, por fim, a encaixou no pulso. O metal assentou como se tivesse esperando por ela.

    — Você sabe o que fazer — a sombra completou, já desfazendo-se no escuro.

    ***

    Os degraus de corda rangiam sob o peso das botas. Grithin e Lou-reen subiam lado a lado, sombras recortadas pela luz das esferas; atrás, vinham Mavren e Venia.

    Lou-reen quebrou o silêncio, os olhos varrendo a escuridão entre as raízes.

    — Sempre me perguntei por que quase não vemos feras por aqui à noite.

    Grithin não desacelerou.

    — Porque elas nos veem primeiro. — Indicou com o queixo uma marca velha de garras na casca. — Desde que o primeiro clã subiu nestas árvores, aprendemos a não caçar o que não precisamos e a não correr do que não precisa de corrida.

    — Quando eu era pequena — continuou Lou-reen, olhos na mata — ouvia histórias da fera gigante de Loryndel. Manchas como sombra de folhas, silenciosa como neblina. Sonhava em brigar com uma.

    Grithin assentiu.

    — Chamamos de Yaguareté. Ela respeita o território dos elfos como nós respeitamos o dela. Não caçamos perto das tocas nem bloqueamos as rotas d’água; ela não sobe às passarelas. Quando cada lado entende o recado, ninguém precisa provar coragem à toa.

    — Não era para provar coragem atoa, — ela hesitou — era…

    — Eu sei: era o fogo da juventude. Vocês acham que vão viver para sempre e que dá pra consertar o mundo antes do próximo inverno e ainda achar tempo para brincar com feras selvagens. Eu já senti isso. Jovem tenta fazer tudo rápido — disse Grithin, sem olhar pra ela. — Nem sempre é o melhor jeito.

    — Jovem faz o que precisa — Lou-reen retrucou, curto. — Hildrake caiu porque eu cheguei tarde? Não. Ela está de pé porque eu não esperei.

    — Eu sei — ele assentiu, seco. — Também lembro do seu duelo com o seu general. Você não concordava com a forma que ele tratava nossos soldados e o desafiou. Você ganhou. E ganhou o peso junto.

    — O cargo não me assusta.

    — Eu sei. É isso que me preocupa.

    Lou-reen virou o rosto o bastante para um meio sorriso.

    — Preocupação de veterano?

    — Preocupação de quem já enterrou gente talentosa demais — corrigiu, calmo. — Impulso salva vilas, mas também derruba quem carrega o estandarte.

    Ela respirou, segurando a réplica.

    — E prudência faz perder a oportunidade — disse, mais baixo. — Às vezes alguém tem que avançar.

    — Às vezes, sim. — Grithin parou um instante na curva, ouviu a floresta respirar, e retomou o passo. — Mas, às vezes, ir com alguém é melhor do que ir sozinha.

    Os degraus cederam para um patamar mais largo. Grithin falou como quem continua um pensamento que já vinha andando:

    — Já sei quem mandou roubar o berílio.

    — Nome?

    — Um artesão com mãos famosas demais para o próprio bem. O mesmo “benfeitor” por trás de um teste sem autorização… o teste que custou os braços da sargento Wynrae. — Não havia gosto na voz dele, só a lâmina da constatação. — É o mesmo punho.

    — E você não contou a ela porquê… — Lou-reen deixou em aberto.

    — Porque ela avançaria atrás dele hoje à noite. — Ele nem precisou olhar. — Quero o artesão respirando quando chegarmos nele. E quero a sargento inteira quando isso acontecer.

    Eles tomaram a curva seguinte. O corredor abriu para o patamar das celas. Maryse já estava de pé, fora das grades, os braços em cobras, empurrando com desdém os corpos dos guardas para longe.

    Ela ergueu o rosto para Grithin, sorrindo; a boca começou a formar uma palavra.

    Lou-reen passou por ela em um instante.

    A lâmina cortou o ar e, no mesmo sopro, os dois braços-serpente caíram no piso com um baque úmido. No segundo golpe e a lâmina entrou pelas costas, reta, até sair no peito. O corpo de Maryse arqueou. Ela caiu de joelhos, depois de bruços.

    Grithin chegou sem pressa. Avaliou a cena e falou baixo, sem ponta de orgulho:

    — Poder não é autorização para fazer sempre do jeito mais rápido.

    Lou-reen puxou a lâmina, limpou com um gesto. Antes que respondesse, o ar mudou. Uma vibração correu pelo tronco; a madeira da passarela estremeceu, abriu fissuras. Tábuas se ergueram como colunas que respiram, e de cada rachadura, hastes de madeira subiram em espiral, enrolando-se nos cotos sangrentos, prendendo, puxando.

    Os dois generais viraram ao mesmo tempo.

    Maryse se levantou devagar. As pernas haviam se fundido numa cauda que arrastava farpas vivas; os olhos, duas fendas de âmbar. As hastes se apertaram nos ombros e, num estalo, os braços estavam de volta, madeira e carne costuradas por essência. A perfuração no peito não sangrava: escorria seiva; pequenos fios surgiram costurando a pele por baixo, como se a floresta a estivesse restaurando por dentro.

    Uma língua bifurcada sentiu o ar.

    — É isso que o “progresso” traz a Loryndel.

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