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    A noite cobria a floresta em camadas de sombra. Lanternas pendiam dos cabos, desenhando poças de luz pálida que oscilavam com o vento. As passarelas se estendiam em linhas sobre o vazio, a madeira cedendo um fio sob o passo de Kalamera. Marco vinha meio passo atrás, olhos no escuro entre as copas e no corredor às costas, como quem espera ver um elmo surgir a qualquer instante.

    Ele parou e pegou o antebraço dela. Não foi um puxão, só o bastante para ela se virar.

    — A gente devia voltar — disse. — Avisar os generais. Do jeito que foi… não tá certo.

    Ela olhou para a mão dele, depois para o rosto.

    — Certo pra quem?

    — A gente nocauteou um oficial.

    — Eu nocauteei — corrigiu, sem mudar o tom. — Você só veio.

    Ele manteve a mão onde estava mais um segundo, e então soltou.

    — Isso pode dar ruim pra você. Pra nós.

    — Pior é esperar e deixar alguém perder o que eu perdi. — Ela apontou com o queixo o caminho adiante. — Anda.

    Marco ficou um instante, ainda parado na poça de luz. Depois alcançou o passo dela. A lua filtrava por entre as folhas e riscava o piso de claro e escuro enquanto os dois seguiam.

    — Eu tinha seis invernos — Kalamera disse, mais para a noite do que para ele. — Fizeram um teste comigo, sem permissão. Uma manopla “aprimorada”. Disseram que ia ser rápido, que era só encaixar e acender a runa. Ela puxou mais essência do que deveria e a peça começou a tremer no meu braço. Alguém falou “calma, segura”, e aí veio o clarão. Quando acordei, não tinha mais os braços.

    Marco não achou palavra nenhuma que prestasse.

    — O Império sempre teve próteses simples: duas articulações movidas por essência. Seguram uma caneca, empurram uma porta. Servem para o dia-a-dia.

    Ela respirou, sem drama.

    — Me deram um desses braços simples. Eu botava no lugar e ele obedecia… até eu tentar levantar um martelo. Aí tremia, falhava, perdia toda a minha cabeça só pra mexer um alicate. Não era o bastante. Então eu desenhei outro. Depois mais outro.

    Um brilho rápido cruzou o olhar.

    — E não só o cotovelo: rotação, pinça, palma, punho. Passei a falar com metal como quem fala com gente. Voltei pra forja e consegui entrar no Colégio. No começo me olharam estranho, então comecei a usar as mangas compridas para esconder. Reclamaram que meus socos doíam mais por causa do metal, então comecei a usar próteses de metais mais leves. Meus socos ainda doíam.

    Caminharam mais alguns passos.

     — No último ano tem o exercício de sobrevivência noturno. Reclamaram que eu teria vantagem por causa dos braços de metal. Eu fiz a prova sem eles e fui a primeira a terminar. Pararam de reclamar.

     Marco assentiu, sem achar comentário melhor que o próprio passo.

    — Na Academia, duas mãos não davam mais. Fiz as outras duas e, em pouco tempo, virou automático. Quatro braços como se sempre tivessem sido meus. As mangas nos de cima ficaram por costume.

    — E agora você quer impedir que alguém passe pelo que você passou — ele disse, mais como constatação do que pergunta.

    O alarme soou.

    Uma nota grossa, comprida, varrendo as passarelas. Outra respondeu mais longe. Depois mais uma, ainda mais distante.

    Kalamera travou na passarela.

    — Já estão atrás da gente.

    Marco não parou.

    — Então a gente continua na frente. Vem.

    Ela correu dois passos e brecou.

    — As forjas antigas… eu não lembro o caminho por aqui.

    Marco fechou os olhos um instante e puxou da cabeça o mapa: níveis, pontes, curvas.

    Nova, rota pras forjas antigas. Agora.

    “Até que enfim,” ela bufou. “Sobe duas plataformas, pega a passarela do corrimão duplo, rampa espiral, atravessa o arco grande. Depois segue reto até a passarela larga.”

    — Por aqui. — Ele apontou. — Duas plataformas, corrimão duplo, rampa espiral… arco grande, e reto.

    Correram.

    — Como você decorou tudo olhando uma vez? — Kalamera perguntou, sem perder o fôlego.

    Marco tocou a têmpora, meio sorriso.

    — Eu te disse: consciência superior.

    ***

    A cauda acertou a lateral de Lou-reen sem aviso. O ar saiu do peito dela num golpe mudo e a general foi lançada como pedra de funda. A primeira árvore entrou na trajetória e estourou ao meio quando o corpo dela atravessou o tronco e um anel de lascas voou em todas as direções. Antes que os pedaços caíssem, ela já tinha rasgado a segunda: madeira cedendo num estalo seco, um túnel irregular aberto de lado a lado. Folhas e pó de casca pairaram por um instante. Lou-reen sumiu na escuridão da mata, além dos troncos partidos.

    Grithin entrou no vazio que Lou-reen deixou. A lâmina baixou pelo ombro e bateu em escama; o baque foi seco, a faísca riscou o ar e os cabelos-serpente se voltaram para ele em um estalo.

    Ele recuou um passo, outro, deixando as bocas morderem o ar.

    Parou a poucos metros. A madeira sob as botas tremeu do impacto. Ele conseguia sentir a essência sento puxada das copas para o colar no pescoço dela em fios que ele quase podia contar. A nuca de Grithin arrepiou; o estômago encolheu. O instinto dizia que ela estava chamando uma fera.

    Os olhos dele desceram para a base do pescoço dela: o colar. Era por ali que Loryndel estava sendo puxada para dentro dela. Grithin firmou o punho na guarda e expirou, entendendo o que tinha diante de si.

    Um cometa de chamas riscou o canto do olho dele: Lou-reen voltando à batalha em alta velocidade. Sem parar, ela cortou a lateral de Maryse num arco baixo. A lâmina entrou pela barriga e saiu nas costas; o rasgo abriu um palmo e fechou quase no mesmo sopro. O sangue mal caiu e a carne puxou de volta, fibras juntando sob as escamas, que se reacomodaram num estalo curto.

    Grithin puxou ar para avisar do colar, mas um silvo do alto cortou sua voz. Uma serpente despencou do galho sobre ele. Ele girou o tronco; a cobra bateu na plataforma, enrolou o corpo e armou o bote. Outras duas deslizaram dos cabos e levantaram a cabeça em leque.

    Ele entendeu. Maryse também estava puxando as serpentes da floresta.

    Lou-reen elevou o calor e avançou. Uma cobra chicoteou o tornozelo dela; outra mirou o antebraço da lâmina. O fogo pegou de raspão e as duas recuaram, as escamas estalando.

    Maryse veio com a cauda, varrendo baixo; os braços-serpente fecharam por cima, presas abertas.

    Lou-reen travou a base, deixou a cauda passar raspando e girou o quadril. A lâmina subiu em cruz e decepou duas cabeças no ar. A terceira veio pelo flanco; ela desceu o fio e queimou o pescoço num toque curto e o cheiro de escama queimada subiu.

    Grithin caiu ao lado dela, a guarda alta.

    — Sem incendiar a floresta, por favor.

    Ela ia retrucar, mas viu as fagulhas caindo pelos vãos. Pedaços de tábua em chamas batiam nas plataformas de baixo. Um preso gritou por água, outro encolheu no fundo da cela.

    O barulho de botas chegou rápido: soldados, elfos em sua maioria, com as lanças erguidas e olhos arregalados. Alguns já avançavam para a passarela.

    — Ninguém entra! — Grithin segurou a linha com um gesto. — Contenham o fogo nas plataformas inferiores e levem os presos para longe daqui.

    Os soldados correram para executar as ordens. Lou-reen puxou o calor de volta para dentro da lâmina; só o fio ficou vivo. Maryse sorriu, o colar pulsando no pescoço.

    — Vamos juntos — disse Grithin, sem tirar os olhos dela.

    Lou-reen assentiu, pés firmes no centro da passarela, e foi para cima.

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