Capítulo 71: Dói
O silêncio predominou na cabana após alguns instantes. Karolina não queria falar nada para me machucar, assim como eu não queria dizer nada sobre o que aconteceu.
Era um pouco desconfortável. Sentia palavras entaladas na garganta que não iriam sair tão cedo.
Sendo sincera, preferia tomar várias facadas do que sentir esse sentimento. Meu peito doía.
— Você quer vê-las? — comentou Karolina, virando seu rosto. — Talvez seja melhor conversar com sua nova família do que com a sua antiga.
Facada.
Podia ser apenas um pequeno comentário bobo, mas suas intenções estavam muito mais do que evidentes. Karolina não gostava de onde havia me enfiado.
— Você é a minha família. Uma membra essencial da minha família — respondi. — Me deixa triste saber que você pensa…
Mas havia abandonado.
Eu havia abandonado-a.
Nem terminei meu raciocínio por esse pequeno detalhe. Não queria pensar mais nisso.
Por que apenas fujo de meu erro?
— Só de saber que você ainda me considera sua irmã me deixa melhor. — Karolina levantou-se, estalando os dedos agora limpos. — Bem. Não posso deixar de fazer você conversar com a sua família, é óbvio!
O sorriso em seu rosto se abriu. Mas não era como qualquer outro.
Não podia sentir nojo ou brincar como sempre fiz. Agora aquilo carregava um peso junto, um peso que não podia suportar.
Apesar de tudo que fiz, ela continuava sorrindo sem pensar no amanhã. Como era possível? De certa forma, eu queria ser como ela.
Uma pessoa a se admirar. Ou talvez… de se invejar.
O portal se abriu na nossa frente, ligado à loja que havia mencionado antes. A chuva de sangue ainda não havia parado nem por um segundo.
Karolina fez gestos com sua cabeça, indicando-me para ir na frente.
Me sentia receosa, um pouco nervosa por estar me encontrando com minha família de novo. Por mais que pudesse ser…
Ah!
Deixamos isso pra depois. Já falei demais!
O som do sangue nos sapatos era evidente. Cada poça era um possível cadáver, uma vez que não sabia a origem de todo esse líquido.
A porta parecia distante.
Era perto e, ao mesmo tempo, distante. Confuso, né?
— Olá…? — disse, esperando alguma resposta. — Tem alguém aí?
Estava entreaberto. Não parecia tão destruída e o interior não estava bagunçado. De alguma forma, não haviam roubado nada dessa loja.
Quero dizer, Karolina deve ter tentado.
Inclusive…
Os habitantes haviam sumido! Onde estava toda essa gente? Aguaforte era pra ter muito mais pessoas do que só essas!
— E aí? Vai entrar ou não? — disse Karolina, batendo em minhas costas.
Encostei minha mão na maçaneta, empurrando de pouco a pouco. Porém, antes que pudesse fazer qualquer coisa, fui atacada por um grande vulto que surgiu.
— S-Seven! Você ainda não está boa para realizar esses movimentos! — disse a voz que mais reconheceria nesse momento.
Kaori estava olhando preocupada para mim.
— Onde que você tava, menina!? Te procurei tanto! — gritou a mamãe. — Me preocupou à toa!
Era um sorriso de felicidade. Um genuíno sorriso de felicidade.
Bem diferente do que havia presenciado anteriormente. O peso era muito diferente.
Claro que era diferente.
— Oi, mamãe! — respondi. — Também estava procurando a senhora!
Abracei-a com todas as minhas forças. Minha roupa, que antes estava limpa, agora estava suja mais uma vez.
Queria reclamar que ela havia manchado minha camisa, mas o êxtase de tudo não deixava que isso acontecesse.
Havia encontrado ela!
Hahahaha!
Gritaria para sempre a favor desse momento.
— Então, você que é a garota parecida comigo? — perguntou papai, olhando para Karolina. — Se bem que…
Ela a pegava pela mandíbula, analisando cada canto de seu rosto. Logo os seus dentes foram expostos, além de seus olhos serem mais abertos com suas mãos de marionete.
— Acho que você está se confundindo — respondeu, tirando as mãos de seu rosto. — Não teria esse gosto chulo de cabelos pretos. É tão sem graça!
Ahn?
Ué?
Ela não conseguia ver a forma verdadeira dela?
Isso é sério? Hahahaha!
Se bem que elas são idênticas mesmo. A arcada dentária e o formato do rosto eram algo que indicava bastante sobre isso.
Talvez o sangue tivesse efeito em nossas aparências, mas não queria pensar tanto nisso. Não queria pensar muito, afinal, nem lembro como era o rosto de Karolina antes do experimento.
Antes de todas as agulhas…
— Você não pode ver. Pensei que todos os jovens poderiam enxergar minha verdadeira forma. Fico feliz que estava enganada. — Papai dirigiu-se a mamãe, pegando-a no colo. — Bem, vocês ainda tem que se entender um pouco… Vou dar um pouco de espaço.
Mamãe estava com uma cara confusa por sua ação repentina, mas não podia esconder seu rosto vermelho como nunca.
— M-mas… — murmurou ela.
As duas fugiram para dentro da loja, deixando-me apenas com Karolina e Kaori naquele momento.
— Ahehehe… — Kaori riu de forma desajeitada, enquanto arrumava seu cabelo pra trás. — Você está bem? — Estendeu sua mão para mim, que estava jogada ao chão.
— Definitivamente não. — Peguei sua mão, e logo veio um impulso que me puxou do solo em segundos. — Mas… estou feliz que você pareça bem. Talvez só um pouco suja de sangue.
— É. Talvez só um pouco suja, mas foi necessário para deixar a cidade segura.
Assim que Kaori mencionou isso, logo uma grande dúvida veio à mente.
— Inclusive, onde estão todas as pessoas? Eu não vejo ninguém.
— Cidadãos? Ah… Grande parte deles está num centro de segurança que nós montamos aqui — respondeu. — O mestre da guilda decidiu construir um com a ajuda da comunidade no ano… passado, eu acho. Me deixa contente saber que ele serviu de algo.
O mestre da guilda, né?
Hmnmm…
É verdade, essa cidade não segue o sistema de igrejas implantado pelo império. Talvez seja esse o motivo de quererem tanto quebrar ela por dentro…
— Uh… Quem é essa ao seu lado, Karina? — perguntou Kaori, se aproximando de meu ouvido. — É alguma amiga sua?
Suspirei.
Como iria explicar a existência dela? Mamãe nem ao menos sabia de tudo que escondo, imagina Kaori!
Mas, antes mesmo que falasse algo, Karolina interrompeu.
— Apenas passei para dar um reforço. Ou, quem sabe, só quisesse falar um pouco mais com minha querida amiga.
Estava encostada na parede do estabelecimento, os braços cruzados.
Sabia que era melhor assim. Mas por que meu coração doía mais?
Ela só…
Não sabia o que fazer. Estava num beco sem saída e tudo desmoronava em minha mente. Então, tomei a reação mais desesperada que pude ter.
Sorri em resposta.
— Favor não ser nojenta assim!
Iria esquecer o que havia acontecido.

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