Capítulo 65 - A travessia.
A luz da lareira tremulava sobre paredes de madeira clara, refletindo-se nos arabescos gravados nos móveis.
Um aroma suave de madeira queimada e velas de lavanda misturava-se ao ambiente.
Darius se recostou na cabeceira da cama, o roupão preto mostrando parte do peitoral definido.
Uma garrafa e taça de vinho tinto repousava ao lado de uma escrivaninha.
Ele a ergueu, deixando o líquido escorregar pelos lábios antes de degustá-lo, apreciando o sabor profundo e encorpado.
— Você quase nunca sorri… O que aconteceu, hein? — perguntou Mirielle, abraçando-o por trás e apoiando o queixo em seu ombro.
Duas cartas estavam abertas no móvel de madeira.
Uma trazia um carimbo escuro com o símbolo do sol prateado.
E a outra, um carimbo verde com as garras de um corvo pintadas em preto.
Ele sorveu mais um gole de vinho, sentindo o calor se espalhar pelo corpo.
— Talvez eu tenha descoberto algo interessante. — A voz baixa trouxe um toque de prazer ao degustar o vinho.
Mirielle inclinou-se sobre a cama, a borda do lençol deslizando levemente, revelando um roupão vermelho com um decote generoso. — Isso é o selo do Céu Negro? — indagou, observando a carta com o carimbo preto. — O que pediu para eles?
— Aurora… aquela bárbara. Ela é a única polariana que atravessou do norte até aqui — respondeu Darius, esfregando o queixo pensativamente, o olhar preso no reflexo das chamas.
Ela passeou os dedos pelo braço dele, sentindo o calor da pele. — E isso deveria ser importante?
— O Conflito da Filha Maldita aconteceu há cerca de três anos. Me diga o que você sabe — respondeu o Erienval, pegando uma das cartas.
— Hm… O ponto de partida foi o anúncio de Cyrius Polaris: sua filha, a futura rainha. Em Glaciem, o poder sempre esteve nas mãos dos homens. A notícia, então, chocou o povo e confrontou séculos de tradição.
— Você é mais esperta do que parece — ele provocou, um sorriso sutil de canto.
Mirielle revirou os olhos vermelhos, alisando o cabelo para trás e continuando sua explicação:
— Por governar com mão de ferro, Cyrius sacrificava seu povo nas Ruínas Anciãs em busca de fragmentos de Gelo Real. Alguns polarianos acabaram fugindo do país naquela época. Mas quando a Aliança Estelar Central entrou em cena, tudo mudou. Os crimes do rei vieram à tona, ele e toda a família real foram executados… e a facção oposta tomou o poder, oficialmente.
— Também espalharam que a segunda filha do rei estava morta. Tenho pensado nisso… — Ele apoiou os cotovelos nos joelhos, os músculos tensos sob a luz da lareira. — O histórico mais recente de Aurora existe há cerca de dois anos, quando ela registrou sua cidadania em Ostern, uma cidadela próxima de Tulan. Tulan fica próxima do Mar da Queda. O que você acha disso?
Mirielle deixou escapar um sussurro, enquanto a brisa noturna fazia as cortinas ondularem e o cheiro do vinho misturava-se ao aroma da madeira: — Se ela saiu de Glaciem até Tulan, teria que contornar todo o terreno, pois atravessar o Mar da Queda é quase impossível. Com sorte, um ano de viagem? — Ela franziu a testa. — Espera, o tempo não bate.
Darius inclinou a cabeça para trás, apreciando outro gole do vinho e deixando a taça de lado.
— Ela atravessou o mar. — Deixou a frase pairar no ar, os dedos deslizando levemente sobre o copo.
Mirielle arregalou os olhos, o lençol de seda escorregando sobre os ombros nus.
— O quê…? Como isso seria possível? Dizem que o clima do Mar da Queda está sempre tempestuoso, sem contar as bestas marinhas que espreitam debaixo d’água!
Ele sorriu, inclinando-se para frente. — Os mares congelam por cerca de oito meses durante o período da Queda Branca, no inverno. As feras hibernam e o tempo fica estável, apesar da nevasca constante.
Mirielle piscou, surpresa, o calor da lareira contrastando com a imagem mental do mar gelado. — O quê…? Queda Branca…?
— Usamos um meio de transporte conhecido como “Glaciônave” para realizar as trocas e reabastecer os navios das casas nobres que fazem parte da mesma Nebulosa — explicou Darius, enchendo a taça de vinho e estendendo-a para Mirielle. — Usamos Alcas da Neve para nos comunicar através de cartas.
— E-ei… Você devia mesmo estar me contando essas coisas? — murmurou ela, pegando a taça com relutância.
Ele deu de ombros, a expressão descontraída. — E quem acreditaria em uma concubina de um bastardo? Mas a questão é: como ela atravessou o mar congelado até a ponta de Tulan?
Darius estendeu o documento, os dedos quase roçando os dela quando ela o recebeu. O papel antigo farfalhou suavemente, misturando-se ao estalar da lareira.
Mirielle leu o conteúdo enquanto degustava o vinho, os olhos se abrindo cada vez mais, e o lençol escorregando ainda mais sobre a cintura.
Quando acabou, quase cuspiu o vinho ao ler determinado trecho, engasgando e tossindo.
“NEBULOSA VARKYS — CASA ERIENVAL
REGISTRO DE EXPEDIÇÃO / RELATÓRIO DE PERDA
Protocolo: 01428147
Arquivo Confidencial: Divulgação proibida sem sigilo escrito.
Objeto: Perda de contato com Glaciônave Skjold: Unidade SKJ-07
Área: Braço Norte do Mar da Queda: Trilha do Cabo (faixa glacial “Fenda de Halg”)
RELATÓRIO:
Durante a janela operacional autorizada, a Unidade SKJ-07 partiu da enseada de Erienval (Ponto de Salto E-3) com destino ao ponto de reabastecimento da Casa Ignis. Tripulação composta por 9 membros, missão: levantamento de rota e instalação de chamas-guia.
Último despacho das Alcas da Neve ocorreu ás 17h do horário do norte, contendo relatório parcial. A partir das 19h, NENHUMA ave retornou com resposta. Tentativas subsequentes de reenvio foram impossibilitadas por evento meteorológico local e ausência de resposta no destino. Equipe de busca (SKJ-02) acionada, mas sem retorno dos comunicadores de mana. A Unidade SKJ-07 encontra-se listada como não responsiva / desaparecida até segunda ordem.“
— Por Unitas… ela… Ela roubou? M-mas como…?
— Ela tem determinação. E se realmente conseguiu chegar a Tulan, firmar-se em Ostern e depois rumar para Varsília…— disse ele, fazendo uma pausa. — Então nós temos alguém bem importante conosco.
Mirielle deixou escapar um riso curto.
— Eu posso matá-la?
— Sozinha? — Darius arqueou uma sobrancelha. — Acha que consegue?
— Ela… matou Tannor. — Mirielle cuspiu o nome como quem engole veneno. — Aquele imbecil era insuportável, mas ainda era nosso. Vou fazê-la gritar em nome dele. Acabar com aquela ferocidade… — Lambeu os próprios lábios enquanto perdia-se numa fantasia interior. — Só de pensar, eu…
Darius a puxou para perto, tomando um beijo cujo as línguas se entrelaçaram.
— Leve alguns homens da Confraria com você, por precaução. Lembre-se que sua missão é sequestrar os irmãos. Mas faça o que quiser depois disso. — Sua voz foi um mapa frio de instruções.
Mirielle pousou a mão no rosto dele, um beijo rápido na bochecha — provocação e pacto ao mesmo tempo. — Não se preocupe, querido. E Flint? Resolveu?
— Está na palma da minha mão, como sempre esteve. — Darius sorriu, e o veludo armazenou o som. — Hoje… aqueles bárbaros vão desejar nunca ter nascido.
— Inacreditável! Pela primeira vez em cinco anos de festival, podemos estar presenciando o nascimento do mais novo guloso coroado dos Reis da Pança!?
O mestre de cerimônias, um baixinho bigodudo de voz esganiçada, apontava para Hazan, que devorava coxas atrás de coxas, enquanto os outros competidores já pendiam entre a rendição e o balde.
Diz-se em Ariasken que, durante o Festival do Despertar, a verdadeira coroa não pertence ao rei, mas ao vencedor do torneio “Reis da Pança”.
A cada edição, uma carruagem colossal parava em algum ponto da cidade, erguendo mesas e cadeiras para a multidão que sonhava o ano inteiro com a chance de participar.
O desafio parecia simples, mas era um massacre: devorar vinte coxas de Aves de Targul, criaturas avantajadas, do tamanho de cabras, mas com gosto de galinha.
Cada coxa pesava quase três quilos e vinha mergulhada numa mistura de pimentas que faria até um dragão chorar. O recorde dos últimos anos? Vinte e três minutos e quinze segundos.
Heroico.
Naquele dia, porém, Lunna observava boquiaberta da plateia: em apenas doze minutos, Hazan engoliu cada coxa como se fosse pão no café da manhã.
Aplausos, gritos e ânsias se misturavam na multidão.
Quando ele terminou, ainda insatisfeito, soltou um arroto retumbante.
Buuuuuuurp!
O golpe de misericórdia. A moral dos competidores foi enterrada junto com as sobras de frango.
— Senhoras e senhores! Temos um novo campeão dos Reis da Pança! — anunciou o bigodudo, suando. — E com direito a recorde! A recompensa: dois meses de estoques fresquinhos das gloriosas Aves de Targul! O campeão deseja dizer algo?
— Muita coisa, na verdade — respondeu Hazan, erguendo o indicador com seriedade. — O frango estava cozido além do ponto, o que deixou a textura um pouco difícil de mastigar. A pimenta, apesar de forte, abafou os temperos, mas se eu fosse arriscar, diria que usaram orégano, limão, alho, sal e uma pitada de mel-
O apresentador tampou a boca dele com a mão.
— H-hahaha! Nosso campeão também é crítico de cozinha, vejam só!
Desgraça… esse moleque quase entregou a receita secreta da minha bisavó!
Um ajudante pregou imediatamente uma placa com o nome de Hazan no mural dos campeões, ao lado de “Kaylor Valur” e “Aric Corval”.
Lunna puxou o jovem pela blusa, enquanto ele ainda lambia os dedos.
— Hazan, chega! Quero ver o Aspen lutar!
Quando iam embora, o bigodudo correu até eles, ofegante:
— E-espere, rapaz! Você esqueceu de escrever um endereço para receber o prêmio. — Entregou-lhe a prancheta com a inscrição.
Hazan lançou um olhar de canto para Lunna, que usava uma blusa verde com capuz, escondendo os chifres.
— Escreve o endereço do orfanato.
— O quê? Mas o prêmio é seu!
— Não discute, escreve logo.
Lunna assentiu, tímida, e fez o que ele pediu.
— Rapaz, você cuida bem da sua irmãzinha! Sorte a sua, menina! — elogiou o homem, torcendo o bigode.
Lunna abaixou a cabeça, meio envergonhada.
— Mandaremos os estoques a cada duas semanas. E obrigado pela participação, foi… inesquecível!
Hazan só bocejou, acenou displicente e foi embora sem olhar para trás.
Enquanto isso, vários competidores ainda gemiam de dor no estômago.
Pelas ruas festivas de Ariasken, a cidade vivia o último dia do festival em meio a gargalhadas, música e cheiro de comida.
— Olha só, Lunna! — apontou Hazan, empolgado. — Três espetinhos de lagartos da terra por apenas vinte moedas de bronze! Isso é barato, não é?
Ela colocou a língua pra fora em sinal de nojo. — Blergh! isso não é nada apetitoso! E você não tá preocupado com o Aspen!? Prometeu que ia ver a luta dele!
— Preocupado? Nem um pouco. Ele vai vencer, relaxa.
— E como você sabe?
— Simples: fui eu que treinei ele.
Lunna riu, mas Hazan continuou, mudando de assunto:
— E esse capuz? É por causa do sol?
Ela abaixou o rosto, hesitando. — N-não… é só pra evitar problemas.
— Que tipo de problemas…
Antes que terminasse, alguém esbarrou em Lunna, jogando-a no chão.
O homem ia se desculpar, até perceber os chifres verdes à mostra.
— Sua escamosa! Não vê por onde anda? Essas raças metidas a superiores acham que podem tudo nesse país…
A voz morreu na garganta quando percebeu a sombra atrás dela.
Um jovem da mesma altura o encarava, mãos nos bolsos da calça surrada, camisa preta desbotada e pulsos envoltos em faixas brancas.
Os cabelos castanho-avermelhados estavam desgrenhados, e os olhos, alaranjados, brilhavam de forma quase animalesca.
O detalhe que realmente o paralisou, porém, foi a expressão: mandíbula trincada, dentes à mostra como de uma fera rosnando, e as veias do rosto latejando com fúria.
— E-eu não quis… desculpe! — balbuciou o homem, fugindo às pressas.
Lunna se levantou, batendo a poeira das roupas. — Viu só? — disse, puxando o capuz para cobrir os chifres. — Foi por isso que eu queria evitar confusão.
Mas Hazan abaixou o capuz de volta.
— Ei! — A garota reclamou, mas o olhar do lutador não pairava sobre ela.
Hazan encarava a multidão. Olhares de preconceito e nojo a seguiam pelas ruas, como sempre… mas, diante da postura dele, foram recuando, um por um.
Caminharam assim por longos minutos.
Lunna percebeu que era a primeira vez que andava em público sem sentir aqueles olhos de julgamento cravados nela.
Quando encarou Hazan, notou seu rosto tremendo.
— N-não s-se preocupa… — disse ele, falando pelo canto da boca. — Eu consigo manter essa cara o dia inteiro.
— Ah, é? — Ela soltou uma risada travessa. — Então eu vou me aproveitar disso!
As ruas de Ariasken estavam abarrotadas, cheias de cores e barulhos de feira.
Lunna andava de braços cruzados, tentando disfarçar a empolgação, mas era impossível.
A cada barraca, a cada fachada chamativa, os olhos brilhavam como os de uma criança que acabou de descobrir que o mundo é maior do que imaginava.
— Então… a gente podia, sabe… dar só uma olhadinha ali — disse, apontando para uma loja de roupas, mas sem se aproximar.
Hazan bufou, mantendo o rosto na mesma expressão carrancuda desde a confusão mais cedo. — Vamos logo.
Ela sorriu e puxou ele pelo braço. — Hazan, você é o melhor!
A loja era pequena, abarrotada de tecidos coloridos.
Lunna correu para experimentar um chapéu enorme, de abas largas, que quase cobria os olhos dela. — E aí, como ficou?
Hazan a encarou sério, os braços cruzados. — Tá cobrindo os chifres. Eles são bonitos.
Ela arregalou os olhos, cobrindo o rosto com o chapéu. — Eu n-não vou levar, então…
Sem perceber, a expressão do Hazan abriu caminho para os dois por cada esquina.
Os vendedores mal ousavam pechinchar com ele.
Lunna pulou de uma barraca de comida para outra.
Bolinhos fritos, espetinhos de carne, frutas caramelizadas… tudo entrava na lista. Hazan só sacava moedas e suspirava.
— Você tem noção de quanto já comeu? — perguntou, entregando mais uma moeda ao vendedor.
— Tenho. Mas não vou falar em voz alta porque soa meio vergonhoso — rebateu, lambendo os dedos.
Entre uma mordida e outra, acabaram numa pequena praça onde artistas de rua encenavam uma peça improvisada.
O público estava amontoado em bancos de madeira e nas pedras do chão, rindo de cada tropeço e exagero dos atores.
No centro, um rapaz magro, com uma espada de madeira quase maior que ele, subia numa caixa e inflava o peito.
— União ou morte! — berrou, erguendo a arma como se fosse um estandarte. O gesto foi tão desajeitado que quase acertou o companheiro ao lado, que caiu fingindo desmaio.
A multidão explodiu em gargalhadas.
Lunna gargalhava alto, batendo palmas, lágrimas nos olhos de tanto rir.
Algumas pessoas se irritavam com as risadas exageradas da garota, mas sequer ousavam reclamar ao observar Hazan ao lado dela, que mantinha a mesma expressão irritada.
Já era noite quando deixaram o local, as luzes dos lampiões iluminando as ruas estreitas.
O céu estava limpo, cravejado de estrelas. Lunna parou no meio do caminho, ainda rindo de si mesma, e olhou para Hazan.
— Tá, agora me fala. Por que você ainda tá com essa cara de irritado?
Hazan respirou fundo. — A-acho q-que meu rosto congelou assim.
Ela encarou sério por um segundo e, de repente, desabou em uma risada escandalosa, dobrando o corpo para frente.
A gargalhada ecoou pela rua, misturada ao som distante das festas.
Lunna respirou fundo, limpando a lágrima do canto do olho.
— Obrigada, Hazan… É a primeira vez que me sinto assim… Caminhar pelas ruas sem ser notada, evitar contato, fingir que não existia, isso sempre foi um hábito, sabe? Mas hoje… hoje eu me senti livre. Por sua causa.
Hazan encostou a mão no ombro dela, um sorriso de canto presente. Em seus olhos, havia um apreço genuíno. Algo que encantou a garota.
— Você pode ser livre, mesmo se eu não estiver aqui. Erga a cabeça e lute. Ninguém vai fazer isso por você.
Ela respirou fundo, como se guardasse cada palavra.
Mas você fez…
Um silêncio breve se instalou, até que Lunna sorriu de novo.
Não o riso explosivo de antes, mas algo mais suave, sincero, enquanto seu rosto era iluminado pela luz quente do lampião.
Seria tão legal se você fosse meu irmão de verdade… espera, irmão?
— Ai, droga! A competição das Jovens Estrelas! A gente esqueceu!
Ela agarrou o braço de Hazan, puxando-o às pressas. Ainda com a cara fechada, foi arrastado rua abaixo sob as três luas no céu.
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