Capítulo 839: Retorno (1/4)

Drrrrrrrrrrr…!!

Antes que o colapso começasse novamente, acordei Ainar, que estava estirada no chão de braços e pernas abertos.

— Ainar.

— …Bjorn?

— Pare de dormir e levante-se. Temos trabalho a fazer.

— Uuugh, não sei o que é, mas me deixa dormir só mais um pouquinho…

— Eu disse pra levantar logo.

— …Ah, tá bom! Eu vou levantar, então para de me cutucar! F-Faz cócega, caramba!

Mesmo se espreguiçando e resmungando, bastou eu cutucar seu lado com o dedo indicador para ela se assustar e levantar num pulo. Tsc, se tivesse levantado logo, nem precisaria disso.

— Haaaah… Então o que é agora? Há pouco você disse pra eu descansar tranquila…

— A situação mudou.

Ao ouvir isso, Ainar começou a girar a cabeça de um lado para o outro, olhando ao redor como se um monstro tivesse aparecido. Depois franziu o cenho.

— O que exatamente mudou?

Em vez de responder, dei de ombros e tirei um objeto. Ainar arregalou os olhos de surpresa.

— Opa! Ei, isso é…!!

— Oh? Você sabe o que é?

— Não? Só quis fingir que sabia!

Faz sentido. Quando consegui esse item, Ainar nem fazia parte do time ainda.

— Então, o que é essa coisa? Se me acordou do meu sono por causa dela, não deve ser algo comum!

A fala, cheia de uma autoconfiança irritante, me deu vontade de retrucar, mas discutir agora só prolongaria a conversa à toa. Resolvi explicar calmamente.

— Isso é um item chamado Desejo Restrito.

— Oh, entendi.

Ainar assentiu e estendeu a mão, mas eu rapidamente a afastei.

— …Não ia me dar isso?

— Vou, mas escuta a explicação primeiro.

Se eu entregasse antes e ela quebrasse o item na hora, a culpa seria minha, não dela. Convenhamos, Ainar tem tanto cuidado quanto uma criança, e todo mundo sabe que não se deve colocar algo frágil como vidro nas mãos de uma criança.

— Quando quebrar isso, você será levada para um espaço especial. Lá, poderá escolher uma essência de nível 4 ou inferior, e ela será trocada aleatoriamente por outra de mesmo nível…

Expliquei o básico e então disse a ela para escolher a Essência de Semura. Afinal, era a mais vantajosa. O nível era o máximo, quarto, e o Corte Repetido já não fazia mais sentido para Ainar agora que ela era uma guerreira de lança. Em outras palavras, o risco desse ‘reroll’ era praticamente nulo.

— O quê? Quer que eu jogue fora a Essência de Semura?!

Por alguma razão Ainar gritou horrorizada.

— Aquela essência foi um presente de Kiduba! Você sabe disso!

Ah, verdade… Pensando bem, Corte Repetido era a essência deixada como herança por seu mestre Kiduba, o ancião, através de um ritual de sucessão espiritual. Naturalmente, para alguém sentimental como Ainar, minha sugestão não soava nada agradável.

— Mas quando você trocou sua arma principal por uma lança, eu disse que teria que apagar aquela essência, e você concordou, não foi?

— …N-Não lembro disso!

Tsc. Está na cara que lembrou agora, mas ainda quer insistir. Pelo visto, apesar de ter concordado de cabeça fria na época, agora não quer mais apagar a Essência de Semura. Tudo bem. Não é como se fosse a primeira vez que eu precisasse convencer uma bárbara teimosa.

— Essa essência é praticamente a alma de Kiduba! E você quer que eu jogue fora a alma dele? Eu nunca…!

— Quando eu disse pra jogar fora? Eu disse pra trocar.

— …Hã?

— Só vai mudar a habilidade que ele deixou. Pense bem! Se o poder que ele te deu se tornar ainda mais forte, não acha que a alma dele ficaria feliz também?

— Hmmm… mas mesmo assim…

— Ainar, o Kiduba que você conheceu era o tipo de guerreiro mesquinho que ficaria ofendido só porque a forma mudou um pouco?

— Não!! De jeito nenhum!!! Kiduba era um guerreiro dos mais ousados e grandiosos!

— Ótimo. Então pode fazer o que eu disse.

— Entendido! Farei como você mandar, Bjorn!

Assim, depois de concluída a sessão de convencimento, dei mais algumas instruções e finalmente entreguei o Desejo Restrito a Ainar. Como ela era especialista em agir por impulso, repeti minhas advertências várias vezes antes de deixá-la usar o item.

— Entendido? Ainar, se estiver segurando a lança, escolha ela primeiro. Se não, escolha o que parecer o mais preparado pra lutar.

— Oh! Entendido!

Sem volta agora. Ainar quebrou o Desejo Restrito.

Crac!

“…Por que estou com um pressentimento ruim?”

Fwoosh…!

As chamas que se ergueram iluminaram a câmara de pedra.

— Oh!

Os olhos de Ainar Fenelin começaram a brilhar ao observar o local ao redor. Até há pouco, ela ainda estava dominada pela culpa de ter apagado a Essência de Kiduba; mas agora, o fascínio pelo misterioso espaço a envolvia.

— Então aquele é o portão de pedra de que o Bjorn falou!

Ainar examinou atentamente os portões dispostos em volta. Claro, havia curiosidade, mas também prudência, se escolhesse errado por distração, Bjorn certamente lhe daria uma bronca daquelas.

— …Este é o Bertas!

Ela reconheceu o primeiro portão assim que o viu, afinal, fora ela mesma quem derrotara aquele monstro e obtivera sua essência. Embora não servisse mais de muita ajuda, ainda era uma essência impressionante, capaz de fazer asas surgirem.

— Ainda bem que é de quinto nível…

Se fosse de quarto nível, Bjorn provavelmente teria mandado ela se livrar dele, pensou Ainar, suspirando de alívio enquanto se voltava para o segundo portão. Também reconheceu esse de imediato.

— Lorde de Lava.

Era uma essência que havia conseguido explorando o labirinto sozinha, depois que o clã Maça Narak se dissolveu com o desaparecimento de Bjorn. A habilidade Calor Residual, contida nela, podia se conectar com Controle da Selvageria e Cicatrizes Explosivas, o que ajudara bastante a fazê-la ser reconhecida como uma entre os Sete Poderosos.

— Essa também é de quarto nível…

Ainar lambeu os lábios, com uma pontinha de arrependimento. Embora tivesse aceitado a lógica de Bjorn após longa insistência, ainda se sentia tentada.

— Não podia escolher essa aqui, não?

Mas sabia que Bjorn ficaria furioso. Lembrava vagamente de ele dizer que seria melhor apagar Corte Repetido do que esta. Aparentemente, Calor Residual teria boas sinergias futuras caso a nova habilidade resultante do reroll fosse de tipo ígneo. Sim, era por isso.

Shff.

Ao ver o terceiro portão, a expressão de Ainar se entristeceu.

— Essa deve ser… Semura.

O monstro de quarto nível, Semura. Ela nunca o havia enfrentado, mas lembrava de tê-lo visto em um livro na biblioteca, quando acompanhara Bjorn. As descrições batiam exatamente com o que ele dissera.

Shff…

Ainar examinou os portões restantes. Havia apenas dois, e ambos mostravam criaturas que ela jamais vira.

— Ugh… mais horrendas do que imaginei.

Pareciam massas amorfas, como se várias criaturas tivessem sido derretidas e fundidas em uma só. Claro, ela sabia o que aquilo representava.

— São os donos das essências que obtive no Primeiro Subsolo…

As essências personalizadas que ela havia sintetizado lá. Bjorn havia pedido especificamente que confirmasse se haveria portões correspondentes a elas e que lhe contasse depois.

Tap.

Desviando o olhar das figuras deformadas, Ainar parou diante do portão de Semura. Mas não conseguiu estender a mão de imediato.

— …

Se escolhesse aquele, a habilidade Corte Repetido herdada de Kiduba desapareceria. Só de pensar nisso, um aperto lhe subiu ao peito. Havia muitas memórias ligadas àquela essência.

Sua primeira luta real usando Corte Repetido. A sensação de triunfo ao derrotar Berthas e conseguir combinar a técnica com Cicatrizes Explosivas. Sentira, então, que havia dado um passo em direção a se tornar uma grande guerreira. E, nas noites em que se sentia desanimada, imaginava derrotando o antigo chefe tribal com aquele golpe, e assim recuperava a determinação.

— Estranho… sinto que vou chorar…

Claro que as lágrimas não chegaram a cair. Era só um sentimento vago, como dissera. Mas o incômodo de apagar aquela essência era real. Talvez fosse por isso que…

Shff…

Seu olhar começou a se desviar para outros portões.

“Berthas.”

Não, esse não, as asas são muito legais pra jogar fora.

“Lorde de Lava.”

Também não, Bjorn disse pra não apagar essa. Mas então…

Uma faísca lhe cruzou a mente.

— Aqueles monstros horrendos…

Ele nunca disse explicitamente para não escolher esses. Só pedira pra observar e relatar. Não tinha proibido de escolher, certo?

— Oh?

Com esse pensamento, o peso da decisão começou a pender para o outro lado. Claro, sabia que seria repreendida se o fizesse. Mas e daí?

— No fim das contas… é só ser repreendida, não é?

Pensando bem, ela já estava acostumada a isso!

Tap.

Como se estivesse enfeitiçada, Ainar se aproximou dos portões que mostravam as criaturas fundidas. Um impulso forte a conduzia, a sensação de que algo muito bom a esperava, algo melhor do que apagar a essência de Semura.

Shff.

Ela examinou os dois portões grotescos alternadamente. Então…

— Este está segurando uma lança, então melhor não escolher ele.

E, por fim, estendeu a mão.

Sssrrrk.

O portão deslizou para o lado, revelando um corredor além. Dando passos firmes, Ainar o atravessou e, do outro lado, surgiu uma nova câmara, idêntica à anterior.

Fwoosh!

Chamas se ergueram, iluminando o ambiente. Com os olhos brilhando de expectativa, Ainar rapidamente examinou os três portões de pedra que haviam aparecido.

— Oh! Uma lança!

Felizmente, entre os portões, havia um que mostrava um monstro empunhando uma lança. O problema era que ela nunca tinha visto aquela criatura na vida e nem sabia o nome.

— Mas parece bem forte, não?!!

Com um esforço quase sobre-humano, Ainar conteve o impulso de pular imediatamente no portão. De repente, as palavras de Bjorn ecoaram em sua mente: primeiro conferir todos os portões. Certo, então…

— …Oh?

Ao se acalmar e observar novamente, percebeu que os dois outros portões mostravam monstros familiares.

— Este é Bartanus… e aquele é Ferreiro Infernal!

E ela até sabia o nível deles. Uma guerreira comum talvez não soubesse, mas Ainar era uma guerreira sábia, capaz de ler e escrever o suficiente para reconhecer os nomes.

— Oooh! Terceiro Nível…!!

Seja qual for, essências de nível três já eram incrivelmente raras e poderosas. O entusiasmo a dominou, ainda assim, duas dúvidas começaram a se formar em sua cabeça.

— Hã? Mas Bjorn disse que…

Só era possível até o quarto nível. Então por que, de repente, haviam aparecido essências de nível três? E mais do que isso…

— A cor… é… arco-íris…?

A joia incrustada naquele portão reluzia com um brilho multicolorido. Claro, ela não fazia ideia do porquê.

— Bjorn disse que, se for arco-íris, é uma Essência de Guardião…

É improvável que apareça, mas é bom saber caso aconteça, ele tinha dito. E agora… o que estava acontecendo, afinal?

— Be…

Ainar não pensou muito. Qualquer que fosse a razão, aquilo era bom demais para reclamar!

— Behel–LAAAH!

Erguendo os braços e soltando um grito de júbilo, como se estivesse recebendo a bênção dos ancestrais, Ainar, por um momento, sentiu-se a pessoa mais sortuda do mundo. Mas logo uma dúvida existencial surgiu.

— E-Então… qual eu escolho?

Instantes atrás, ela estava decidida a escolher o monstro da lança, mas agora, ao perceber o que os outros portões representavam, começou a hesitar. Afinal, ela ainda não possuía nenhuma Essência de Guardião. E agora que era uma dos Sete Poderosos e até ganhara o título de Lança Divina, não deveria ter ao menos uma? O pensamento rodava em sua mente sem parar.

Mas…

— M-Mas ele disse pra escolher o que tivesse uma lança…

Como uma guerreira sábia, Ainar mais uma vez reuniu toda sua força de vontade para conter o desejo fervente que subia dentro dela. Então…

Tap, tap.

Parou diante do portão que mostrava o monstro empunhando uma lança. Respirou fundo, controlando o coração acelerado, aproveitando por um instante aquela experiência mística.

— Pensar que o Bjorn já conhecia um lugar tão misterioso naquela época…

Ela mordeu o lábio, murmurando com a voz embargada.

— Bjorn é mesmo…

Seus olhos, antes cheios de emoção, tornaram-se frios e intensos.