Capítulo 0164: Arrependimento
Siegfried acordou em sua cela.
As correntes que usava haviam sido substituídas por novas, mais grossas e pesadas; e tinham-no mudado para outra câmara… Não. Era a mesma. Isso ou o homem-crocodilo que ficava na cela em frente a sua também havia sido movido para outra igualmente em frente à nova — o que era bem pouco provável.
Mas não lembrava das marcas de garras nas paredes. Elas sempre estiveram ali?
Sua memória tornou-se cada vez mais fragilizada desde que descobriu o destino de Ethel. Apagões e desmaios iam e vinham sem aviso — algo que pareceu agradar bastante a Eroth, que passou a visitá-lo com ainda mais frequência; de duas em duas horas.
De fato, estava tão empolgada que passou a lhe servir carne e vinho nas refeições, afinal…
— Meninos comportados merecem uma recompensa.
Tão pouco fez questão de esconder o que havia feito com Ethel.
— Sinto muito, teria te contado antes, mas, pra ser sincera, não sabia o nome dela. Embora deva admitir que tive minhas suspeitas. A garota fedia a magia divina. E quando você disse que estava atrás de uma sacerdotisa… Bem, não é como se tivéssemos muitas delas andando por aqui, sabe. Mas você me garantiu que não se importava com ela, então julguei que não fosse do seu interesse. Vejo que estava errada, não é mesmo?
— …
— Devia ser mais sincero em como se sente, sabia?
— Me solta e eu te mostro como me sinto.
— Talvez mais tarde. Enfim. Alguns moradores a encontraram no pântano, enquanto fugia de dois bandidos… Ou eram escravagistas?! Não lembro ao certo, mas não importa. Trouxeram os três até meu marido para julgamento. Deve ter visto seus corpos empalados na entrada do vilarejo quando chegou. A pobrezinha estava tão assustada. Me disse que havia se perdido de… Bem, suponho que tenha sido de você. Eles sequestraram ela e deviam estar levando a coitada pra alguma casa de leilões na marca de Helder quando conseguiu escapar. Por sorte, o destino a trouxe até mim.
— E você a matou!
— Bem, eu nunca disse que era pra sorte dela.
Eroth sorriu e Siegfried tentou se libertar de suas correntes para atacá-la, mas foi em vão. A elfa se entreteve por um momento com sua raiva e então prosseguiu, como se nada tivesse acontecido:
— Sei que parece cruel, mas acredite em mim, a sua amiga serviu a um bem maior. Não faz ideia de quanto tempo passei tentando criar vida. Mais tempo do que pode imaginar, isso eu garanto. Fiz de homens, monstros. Dei origem a espécies que antes existiam apenas em livros e contos. Mas a verdadeira vida… Era de se esperar que fosse mais fácil, tendo em vista a facilidade com que as crianças são feitas.
— Você é maluca!
— Eu sou uma deusa. Ou o mais perto de uma que você jamais chegará. Seja como for, graças ao sacrifício da sua amiga, eu descobri o que me faltava: centelha divina. Posso juntar as partes e bombear o sangue, mas, para viver, você precisa de algo mais. Uma alma. E aparentemente não uma alma qualquer, mas uma pura. Limpa. Agora que penso nisso, talvez seja essa a razão para os mortos-vivos serem… Bem… O que são. A magia negra é apenas uma corrupção da magia divina, afinal de contas. Ela suja tudo o que toca.
Não achava que fosse possível, mas de alguma forma o seu cativeiro tornou-se ainda pior depois disso. Agora, sempre que Blossom lhe trazia as refeições, tudo em que podia pensar era Ethel e no que deve ter enfrentado ali… Sozinha.
Mas não precisava imaginar muito, bastava abrir bem os ouvidos e escutar Mimosa para saber. A partir do sexto dia, quando Eroth reduziu as suas visitas à cela dela, a garota passou a chorar dia e noite.
“Eu nunca devia ter trazido ela aqui.”
Mesmo depois que a baronesa Kroft ordenou que lhe fossem servidas refeições melhores, Blossom continuou trazendo as sobras do que quer que os nobres comessem. Certa noite, conseguiu trazer um pombo recheado inteiro e ainda quente. Seria essa a sua ideia de uma oferta de paz ou apenas não entendia que ele não queria vê-la?
— Cuidado — disse Blossom, ajoelhada de frente para ele, enquanto segurava o pombo assado. O rosto vazio de emoções, como de costume. — Tá quente.
Levou quase dez segundos até ela perceber que Siegfried não abriria a boca, então disse ‘ah’ para lhe mostrar como se faz e insistiu um pouco mais.
— O que você tá fazendo?
— É algo que eu vi a lady Eva fazer. Quando o lorde Benn não quer comer, ela faz ‘ahhh’ e ele come.
— Isso é uma piada?
— Eu só quero ajudar.
— Parece que eu quero a sua ajuda!?
— …
— Se eu soubesse o que você era quando te vi… Você não passa de uma escrava. Menos que isso até. Você não é nada! Só uma boneca macabra.
Depois disso, Blossom se levantou e foi embora. Mas não foi o suficiente para mantê-la longe. Dia após dia, a garota voltou.
A princípio, pensou que Eroth tivesse lhe enviado a garota-cadáver para espioná-lo; e talvez tivesse de fato feito isso, mas Blossom estava mais perto de uma garotinha solitária do que de uma espiã.
Estava viva a menos de uma semana quando ele a encontrou no pântano e, embora soubesse tudo o que as garotas usadas para fazê-la sabiam, era inocente quanto ao mundo. Gostava de falar sobre os vários sabores de torta e tipos de vestidos, mas foi só depois dela demonstrar interesse por Elyon que o rapaz entendeu…
Suas memórias, gostos e sonhos não eram nada senão remendos das garotas mortas.
O que sabia também era pouco estável. Às vezes podia recitar preces complexas de cabeça, apenas para perguntar logo em seguida o que era uma igreja. Certa vez, a sua mente deu um branco enquanto lhe descrevia um vestido qualquer que nunca usou e tentou beijá-lo depois de confundi-lo com algum garoto.
No fim, entendeu que Blossom era só uma garota triste. Siegfried e Mimosa faziam-na se lembrar de coisas mais felizes do que os experimentos de Eroth.
Embora ela não precisasse dormir, vez ou outra a pegava descansando por dez ou quinze minutos. Foi como descobriu que também tinha pesadelos. Memórias do que as garotas passaram nas mãos de Eroth antes dela ‘nascer’, a julgar pelos gritos e nomes que dizia durante o ‘sono’.
Antes que Siegfried se desse conta, passou a ter pena dela. Simpatia até.
— Me desculpa.
Blossom estava lhe ajudando a comer um pouco de geleia de cereja quando o ouviu e parou para escutá-lo. Como sempre, não demonstrou sequer um fiapo de emoção.
— Eu não devia ter te chamado de… Bem, você sabe.
— Tudo bem.
— Você não liga?
Ela parou um momento e começou a encarar a caneca de geleia na sua mão, como se estivesse pensando. Depois de um momento, tocou o peito com a mão direita e disse:
— Eu não sei. Foi estranho. Como se… Doesse. Não sei explicar. E agora… Ainda dói. Eu acho… Hum. Não tenho certeza. Mas não estou ferida, então acho que tudo bem.

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