Marco fechava a mochila com dificuldade. Ou tentava. O fecho trançado das bolsas de Taeris seguia sendo um enigma para ele, uma frustração diária. Depois de lutar mais do que gostaria de admitir com as alças, ele desistiu por um momento e deixou a mochila de lado, soltando o ar devagar.

    O quarto era simples, quase idêntico ao que havia usado em Ayas-Kin. Cama estreita, mesa de madeira escurecida, um baú sem fechadura e prateleiras vazias. Nenhuma decoração, nenhum espelho, só o básico.

    Na escrivaninha, repousava uma caixa de madeira clara. Dentro, com encaixes feitos sob medida, estava o telescópio óptico que Kalamera construíra para ele: um instrumento de precisão, delicado demais para o campo de batalha, mas confiável como poucas coisas naquele mundo.

    Ao lado da caixa, num suporte de couro artesanal, a espada que Faey lhe dera e a elfa vinha fazendo a manutenção. Marco apoiou as mãos na mesa e olhou a caixa por um instante. Tudo carregava o mesmo traço: precisão.

    Pensou em como teria se virado sem ela. Provavelmente não teria nem metade dos resultados, nem metade das soluções. Kalamera não era apenas inteligente, era eficiente, rápida, incansável.

    Um achado, concluiu em silêncio. Num mundo medieval, ter quem acompanhasse suas ideias modernas fazia toda a diferença

    Por fim, no fundo do baú, estava a mala. De couro escuro, com reforços de ferro nos cantos. Dentro, cuidadosamente dobrado, estava o uniforme de astronauta com que ele havia chegado àquele mundo. A malha branca e laranja, resistente ao vácuo e à radiação.

    Lembrou-se do momento em que Lou-reen o abraçara, logo após ele cair sobre Clyve. Um abraço forte, inesperado. Forte o bastante para que ele ouvisse o uniforme estalar contra a pressão. Naquele instante, mesmo com os pulmões doloridos e o sangue ainda correndo acelerado, ele havia sentido… segurança.

    Marco passou os dedos pela costura do uniforme, sentindo a textura fria e resistente e sorriu.

     “Nostalgia detectada.”

    A voz de Nova ecoou em sua mente com suavidade.

    — Nova, será que um dia eu volto pro espaço? — perguntou em voz baixa. — Ou isso aqui já é meu novo planeta?

    “Probabilidade de retorno: abaixo de 3,2%. Posso mentir esse número para te confortar, se quiser.”

    Marco sorriu de canto, sem humor.

    — Não precisa. Só… continua comigo.

    “Sempre.”

    Ele não via Nova, nem precisava. A presença da IA era uma constante na sua mente, um lembrete sutil de quem ele já foi.

    Naquele quarto de pedra, com equipamentos forjados por elfos e roupas escolhidas por uma general de um império alienígena, só restavam duas coisas que o ligavam à Terra: aquela voz em sua cabeça… e o uniforme guardado na mala.

    Fechou a tampa com cuidado. O clique seco soou mais pesado do que deveria.

    Três batidas soaram na porta.

    — Marco? — era Lou-reen.

    Ele se virou.

    — Pode entrar.

    Lou-reen surgiu no vão da porta. O uniforme impecável de general moldava-se ao corpo com precisão, e a insígnia dourada brilhava sob a luz fraca do alojamento. Mas ela não precisava de símbolos, sua postura já dizia tudo.

    — Só queria ver se você tá bem. — disse ela, firme, mas com algo mais suave escondido no tom.

    Marco assentiu.

    — Estou inteiro. E com 70% de chance de conseguir fechar essa mochila sozinho, eventualmente.

    Ela ergueu uma sobrancelha, divertindo-se em silêncio, e fez um gesto com a cabeça.

    — Vem. Vamos andar um pouco.

    O ar estava fresco, e a cidade, mesmo às horas avançadas, parecia viva. Barracas já tomavam as praças, bandeiras tremulavam sob as luzes suspensas, e grupos animados andavam de um lado ao outro comentando sobre os torneios que estavam por vir.

    À medida que avançavam, Marco percebia o respeito ao redor. Soldados batiam continência assim que viam Lou-reen, alguns oficiais até recuavam instintivamente para abrir caminho. Ela apenas acenava ou devolvia um olhar, mantendo o equilíbrio entre comando e proximidade.

    — A cidade tá vibrando — Marco comentou, olhando ao redor.

    — É assim em toda Olimpíada — respondeu Lou-reen.

    Chegaram a uma das varandas elevadas, de onde se podia ver os telhados curvos da cidade, as torres das arenas e os pavilhões sendo finalizados. O vento ali em cima era mais frio. Marco encostou no parapeito de pedra ao lado dela.

    — Eu nunca disputei uma Olimpíada. — disse Lou-reen, com um leve sorriso no canto da boca. — No meu primeiro ano após a Academia, meu general não quis me inscrever, disse que eu era inexperiente.

    Ela cruzou os braços, olhando as arenas ao longe.

    — Lembro de ficar sentada nas arquibancadas com a minha divisão, todos de uniforme, tentando parecer importantes. E lembro de ver os nomes, os combates, os aplausos… e pensar: Se eu estivesse lá embaixo, ninguém me derrubava.

    Ela deu uma risada breve, um pouco irônica.

    — Aposto que todo cadete pensa isso. Mas no meu caso… bom, eu já era diferente. Já era destacada desde o colégio militar em Aertha. Sempre à frente, sempre disputando contra os melhores. Eu e Clyve competíamos desde os doze anos.

    Ela olhou para as tochas espalhadas pela praça abaixo, o reflexo dourado nos olhos.

    — Então quando eu vi os soldados lá embaixo naquela arena, me exibindo… eu só pensava: Se me deixassem entrar, eu varria metade deles sem suar.

    Marco ergueu uma sobrancelha, sorrindo de leve.

    — Modesta, hein?

    Lou-reen deu de ombros.

    — Eu só sabia o que era capaz de fazer.

    — Isso antes de você virar uma general que faz até o vento bater continência — disse Marco.

    Ela riu pelo nariz.

    Marco ficou em silêncio por alguns segundos, absorvendo tudo o que ela havia dito. O vento soprou mais forte, balançando discretamente a ponta do manto de Lou-reen. Ele olhou a cidade viva abaixo deles, mas sua mente estava em outra época, tentando montar a imagem da jovem que ela havia sido.

    — Você falou do Clyve… — começou, com naturalidade. — Vocês dois eram tão próximos assim?

    Lou-reen soltou o ar devagar, como se aquela pergunta fosse esperada, mas ainda difícil de responder.

    — Crescemos juntos em Aethra, desde o colégio militar. A gente se provocava o tempo todo. Ele queria me vencer em tudo, combate, estratégia, até nos testes de condicionamento físico. Mas nunca conseguiu. — Ela fez uma pausa breve, sem orgulho no tom, apenas constatação. — Isso só piorava a obsessão dele. Quando entramos juntos na Academia aqui em Ga-el, ele já não queria mais disputar, ele queria… ultrapassar, me superar de qualquer jeito.

    Marco a observava em silêncio. Era a primeira vez que ela falava sobre o passado com tanto detalhe.

    — Ele era bom. Muito bom. Inteligente, rápido, ousado. Mas… tinha algo torto. Como se lutar fosse a única coisa que o fazia sentir algo. E quando a Academia terminou, ele simplesmente sumiu. Recusou todas as propostas, os postos, tudo. Ninguém entendeu. Só mais tarde vieram os relatórios de Malrath. Os conflitos, os massacres e o nome dele no meio de tudo.

    Ela desviou o olhar por um instante.

    — Não me surpreendeu, só me entristeceu. Aquele garoto podia ter sido um dos maiores heróis de Taeris. Ele escolheu outro caminho.

    Marco baixou o olhar por um instante, absorvendo tudo em silêncio. Depois ergueu os olhos de novo.

    — E a Venia? Ela também veio de Aertha com vocês?

    Lou-reen assentiu, o olhar perdido por um momento nas luzes da cidade.

    — Sim. Desde os primeiros anos. Mas ela era diferente de mim e do Clyve. Bem mais quieta. Frágil, até. Sem talento pra combate. Clyve vivia pegando no pé dela… provocava, fazia piadas, testava os limites dela.

    — E você? — Marco perguntou. — Ficava do lado dela?

    — Sempre — disse Lou-reen, com um leve sorriso. — Ele exagerava, e eu botava ordem. Era uma dinâmica meio estranha… mas funcionava.

    Ela respirou fundo antes de continuar:

    — Venia nunca foi boa com armas, mas era inteligente. Observadora. E, de alguma forma, aguentava tudo calada. Mesmo depois que Clyve foi embora e tudo mudou… ela ficou.

    — Leal. — Marco comentou.

    Lou-reen assentiu.

    — Quando me tornei tenente a escolhi como minha secretária. Muita gente achou estranho. Mas eu sabia do que ela era capaz, mesmo que mais ninguém visse.

    Marco encarou o chão por um momento, depois a olhou de novo, com admiração discreta nos olhos.

    — Então você já liderava antes mesmo de usarem essa palavra com você.

    Lou-reen deu um pequeno sorriso, cruzando os braços.

    — Talvez. Ou talvez só soubesse quando alguém merecia ter alguém do lado.

    A conversa cessou por alguns segundos. O vento continuava soprando, e as luzes da cidade seguiam tremulando lá embaixo, como se Ga-el respirasse em ritmo próprio.

    Marco encostou os cotovelos no parapeito, pensativo.

    Lou-reen também se apoiou, os olhos fixos no céu. Estava limpo, cheio de estrelas.

    — Engraçado — ele disse. — Você vive aqui, mas tá olhando pra cima.

    — E você veio do espaço e tá olhando pra baixo — ela respondeu, sem tirar os olhos do céu.

    Os olhares se cruzaram.

    Sem dizer nada, Lou-reen encostou a cabeça no ombro dele.

    Marco ajeitou a postura devagar e apoiou a testa no topo da cabeça dela, como se aquele espaço já estivesse reservado.

    Ficaram assim por alguns segundos. O suficiente pra esquecer do resto.

    Nenhum dos dois se mexeu.

    — Devia dormir — ela disse, ainda ali.

    — Você também.

    — General dorme por último e acorda primeiro.

    Mais um tempo, então ela se afastou, devagar.

    — Vamos. Te levo até o alojamento.

    — Não precisa.

    — Eu quero.

    Desceram as escadas em silêncio, no mesmo passo.

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