O trem imperial avançava pelos trilhos com precisão impecável, cortando as planícies douradas que agora se tingiam de sombras sob o céu crepuscular. O sol já havia mergulhado no horizonte, deixando para trás um rastro de tons alaranjados e roxos que se refletiam suavemente nas janelas do vagão.

    Marco observava a paisagem escurecer, perdido em pensamentos. À sua frente, Lou-reen estava sentada de braços cruzados, o olhar fixo no vazio, enquanto Venia revisava alguns documentos sob a luz trêmula das lanternas internas.

    — Finalmente Ga-el — comentou Lou-reen, quebrando o silêncio. Sua voz soou arrastada, um raro indício de cansaço. — Não sei se estou animada ou já exausta.

    — Você? Cansada? — Marco arqueou uma sobrancelha. — Achei que fosse impossível.

    Lou-reen soltou um suspiro curto, sem responder. A viagem de quatorze horas havia sido longa, tendo partido de Ayas-Kin antes do amanhecer, agora a exaustão cobrava seu preço.

    Kalamera ocupava a mesa lateral com um estojo aberto. Peças compridas e finas, aros, parafusos minúsculos. O metal fazia um “tic” abafado quando ela testava um encaixe, ouvido colado perto como quem caça um ritmo.

    — Como você tá indo? — Marco se inclinou.

    Ela parou a meio movimento, sem erguer os olhos.

    — Perfeitamente, até alguém falar comigo — falou, seca; depois soltou o ar, meio divertida. — Calma. Se eu errar um ajuste, isso aí perde a graça antes de começar.

    — Não quero que perca a graça — Marco recuou um passo. — Só preciso que funcione quando chegarmos.

    — Vai funcionar — ela girou um parafuso, ouviu o “tic” assentar. — Mas o teste de verdade é parado.

    Então, ao longe, Ga-el surgiu no horizonte, uma colossal silhueta negra contra o céu avermelhado.

    Mais do que uma cidade, Ga-el era um gigantesco castelo de rocha, um bastião impenetrável do império. Suas muralhas externas, com cem metros de altura, erguiam-se como um escudo intransponível, e sua torre mais alta dobrava essa altura, alcançando as estrelas. Mas, apesar da imponência militar, a fortaleza não era fria ou hostil. Seu interior era uma cidade bem planejada, com ruas largas, praças organizadas e edifícios que, mesmo dentro dos limites da estrutura de pedra, criavam um ambiente habitável e harmonioso.

    Mesmo à noite, tochas e lâmpadas de essência iluminavam as vias principais, lançando um brilho dourado sobre as construções e destacando a imponência do castelo.

    O trem mergulhou na escuridão do túnel subterrâneo que levava diretamente para dentro da fortaleza. Apenas o suave balanço do vagão e o som ritmado dos trilhos preenchiam o silêncio. Dentro de minutos, estariam no coração do império.

    — Vamos logo — disse Kalamera, guardando seu equipamento. — Tenho coisas para ver antes das Olimpíadas.

    Lou-reen desceu primeiro, com Venia logo atrás e Marco as seguindo. Kalamera deu um assovio baixo ao observar a cidade se estender diante deles.

    — Faz tempo que não venho para Ga-el — comentou ela. — Continua uma fortaleza imponente.

    Marco pôde ver por si mesmo a grandiosidade da fortaleza imperial. Da estação subterrânea, colunas maciças sustentavam a estrutura acima, e elevadores reforçados transportavam passageiros para a superfície. Ele sentiu o peso da capital, não apenas no sentido físico, mas também na história e no poder que ela representava.

    — E barulhenta — resmungou Lou-reen.

    Antes que pudessem avançar, uma figura imponente surgiu na plataforma. Hamita Granlyn estava de braços abertos, um sorriso largo e animado no rosto. Seus músculos marcavam a postura de uma guerreira experiente, e sua presença era inconfundível.

    — Lou-reen! — exclamou Hamita, atravessando a multidão sem hesitar.

    Lou-reen travou imediatamente, os ombros enrijecendo quando percebeu o que estava por vir. Antes que pudesse reagir, Hamita já a havia envolvido em um abraço esmagador, girando-a no ar como se pesasse menos que uma pena.

    — Ah, estava com saudades!

    — Hamita… largue-me. Agora. — Sua voz saiu firme, mas Hamita apenas riu antes de soltá-la.

    Marco trocou um olhar divertido com Kalamera, que já tentava conter o riso. Venia apenas ajeitou os óculos e desviou o olhar, como se fosse uma cena recorrente.

    — Você ficou mais forte, hein? — Hamita soltou Lou-reen e apertou seus ombros. — Percebi pelo seu porte! Temos que treinar juntas depois!

    — Eu… é… talvez. — Lou-reen pigarreou, tentando recuperar a compostura.

    — E esse aqui… — Hamita cruzou os braços, encarando Marco com um olhar avaliador. — Então você é o famoso Marco. Sabe, não pensei que o assassino de Clyve fosse tão… franzino. — Ela sorriu de canto, provocativa.

    Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, uma nova voz se fez presente. O tom vibrante e o sorriso caloroso denunciaram a presença de Luminor antes mesmo que ele se aproximasse. O general caminhava com passos largos, o semblante sempre descontraído, apesar do ambiente de tensão que pairava sobre a capital.

    — Bem-vindos a Ga-el. — Seus olhos pousaram em Marco e se iluminaram com algo que beirava a nostalgia. — E você… há quanto tempo.

    Marco arqueou uma sobrancelha, divertido. Luminor era um homem que conseguia tratar qualquer situação como se estivesse apenas reencontrando velhos conhecidos. Ele havia salvado a pele de Marco meses atrás, quando dois mercenários tentaram matá-lo em uma emboscada.

    — Luminor — Marco cumprimentou, sorrindo para ele.

    O general riu antes de virar-se para Lou-reen, um brilho travesso no olhar.

    — E você, minha cara, pronta para brilhar diante de todo o império?

    Lou-reen bufou e cruzou os braços, desconfiada.

    — Se por “brilhar” você quer dizer resolver problemas que nenhum de vocês quer lidar, então sim, estou pronta.

    O sorriso de Luminor se alargou, mas, antes que ele pudesse responder, Lou-reen assumiu um tom mais sério.

    — Agora me expliquem direito — ela disse, o olhar afiado recaindo sobre os generais. — Como diabos Hamita deixou um invasor fugir?

    O peso das palavras fez com que o ar ao redor parecesse ficar mais denso. Hamita Granlyn, a mulher conhecida por sua força esmagadora, permitira que um inimigo escapasse em plena Ga-el. Nunca na história da capital algo assim havia acontecido. Problemas ali geralmente envolviam jovens cadetes embriagados ou duelos não autorizados entre estudantes da Academia Militar. Mas um invasor derrotar guardas, lutar contra uma general e desaparecer sem deixar rastros? Isso era inédito.

    Luminor suspirou, erguendo as mãos como se não tivesse nada a ver com aquilo.

    — Bom, digamos que a “querida” Hamita exagerou na diversão e acabou perdendo o presente que tinham preparado para ela.

    — Eu estava me aquecendo! — Hamita protestou. Seu tom era de brincadeira, mas havia uma fagulha de irritação por trás de sua voz.

    Luminor soltou uma risada.

    — Claro, porque destruir metade do pátio do museu é só um aquecimento para você.

    Hamita rolou os olhos e olhou diretamente para Lou-reen.

    — A luta foi interessante. O invasor era habilidoso e usava essência de sombras de forma avançada, mas eu já estava prestes a esmagá-lo quando ele usou um truque covarde e desapareceu no meio dos soldados.

    — Tsc. Amadorismo. — Lou-reen balançou a cabeça. — Esse tipo de erro faz parecer que o império está ficando fraco.

    — Quero ver você fazer melhor — Hamita retrucou, cruzando os braços, um brilho desafiador nos olhos.

    — Eu faria. — Lou-reen deu de ombros.

    Luminor riu enquanto o grupo continuava a caminhada em direção ao quartel-general. As provocações continuaram, principalmente entre Hamita e Lou-reen, mas Marco manteve o olhar atento ao que acontecia ao redor.

    As ruas estavam decoradas com bandeiras representando todas as regiões do império, e um clima de festividade tomava conta da cidade. O cheiro de especiarias e carne assada se misturava ao ar fresco da noite, e crianças corriam entre os soldados, brincando de serem guerreiros lendários.

    Então, de repente, Hamita parou no meio da rua e sorriu.

    — Já que estamos falando de força… — Ela ergueu o punho cerrado, e com um estalo seco dos dedos, um pilar de rocha surgiu do chão, elevando-se como se a própria terra obedecesse à sua vontade. — Vamos ver se você ainda está em forma, Luminor.

    — Ah, então é isso? — Luminor arqueou uma sobrancelha e riu, já se aproximando com o manto esvoaçando atrás dele. — Vai se envergonhar em público de novo?

    — Só se você estiver pronto pra perder. De novo.

    Soldados, aprendizes, até oficiais começaram a se aproximar, formando um círculo de espectadores ansiosos. Um murmúrio animado percorreu o grupo.

    Os dois generais posicionaram seus cotovelos sobre a superfície de pedra, entrelaçando as mãos com firmeza. Uma leve onda de pressão mágica se espalhou do contato, e as bandeiras próximas tremularam com mais força, como se respondessem ao desafio.

    — Três segundos. Depois disso, você vai implorar. — disse Hamita com um sorriso selvagem.

    — Três segundos é o tempo que você demora pra perceber que perdeu. — respondeu Luminor, o sorriso calmo nos lábios contrastando com a tensão nos braços.

    E então começou.

    O ar vibrou.

    — Você tremeu. — Hamita rosnou, os dentes cerrados.

    — Só de tédio. — Luminor rebateu.

    O pilar começou a ranger sob a força combinada dos dois. Pequenas rachaduras surgiram na base, e alguns soldados deram um passo atrás. O chão ao redor tremeu levemente, e uma fissura percorreu a rua, fazendo copos e pratos nas barracas próximas vibrarem.

    — Talvez devêssemos… parar? — sugeriu Lou-reen, embora sem muita convicção. Era divertido assistir.

    Foi quando uma voz fria e autoritária cortou o ar como uma lâmina.

    — Que espetáculo patético é esse?

    Todos se viraram, e a multidão se abriu com rapidez.

    Aamerta Londolfo, a general de Eley-Vine, surgiu entre os soldados. Os olhos observavam a cena com um misto de desprezo e tédio.

    — Vocês são generais do Império, não gladiadores de rua. — Sua voz soou como o estalo de um galho seco.

    Hamita e Luminor pararam de imediato. O braço ainda firme entre os dois, mas ambos relaxaram os músculos com expressões que misturavam constrangimento e frustração.

    — Ela começou. — Luminor apontou com o queixo.

    — Você aceitou. — Hamita retrucou.

    — Os dois são ridículos. — disse Lou-reen, cruzando os braços e bufando.

    Aamerta suspirou, já virando as costas.

    Os generais se entreolharam em silêncio por um instante… e então soltaram uma risada abafada, meio cúmplices, meio envergonhados.

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