As mãos de um rapaz trabalhavam diligentemente em um pedaço de pele, raspando o excesso de gordura e carne ainda grudados nela.

    Ocasionalmente, ele as mergulhava em um balde cheio d’água, limpando-as de resíduos. E mesmo que o inverno deixasse a água congelante, ele nem parecia se importar.

    — Tive muita sorte ao encontrar aquele urso. — Ao invés disso, sorria para si mesmo — Pelo o que pude ver, ele era um adulto, então isso me rendeu muito material! Hahahaha!

    Sempre que uma peça era limpa, ele a jogava de lado, pegando outra que ainda estava suja. Assim, o tempo passou sem que o rapaz percebesse, saindo de uma manhã cinzenta para um lindo céu azul.

    Em certo momento, o sol alcançou o ponto mais alto no céu, derrubando raios quentes pela cidade congelada. E com eles, uma mulher surgiu na porta de seu local de trabalho.

    Os longos fios negros de seus cabelos desciam como uma cachoeira, adornando seu busto de maneira espetacular, com sua pele pálida e molhada brilhando sob a luz do sol.

    Com seus olhos cinzentos e opacos no rapaz, a mulher inclinou sua cabeça, uma feição inexpressiva sobre seu rosto. Sem ser convidada, entrou dentro do recinto, observando seu interior com calma.

    Pedaços de peles de animais estavam reunidos em várias pilhas pelo lugar, como se tivessem sido recém coletadas.

    As paredes levemente descascadas revelavam a idade da casa, com seu chão ladrilhado por pedras bem polidas. Diversos equipamentos e ferramentas, como estiletes, facas e réguas, estavam guardados pelas paredes.

    “Faz bastante tempo desde a última vez que vim na oficina dele. Não parece ter mudado muito, apesar disso”, ela pensou.

    Ao se aproximar pelas costas do rapaz, observou seu trabalho por cima dos ombros dele. Com curiosidade, perguntou calmamente: — O que você está fazendo, Arthur?

    — AHH! — assustado, Arthur pulou de seu banco, caindo no chão e derrubando a pele em que trabalhava. Mas ao olhar para a mulher, o susto foi substituído pela confusão. — Mestra, por que você está aqui?

    — Você não apareceu no treino de hoje, então vim aqui perguntar o porquê. Mas o que era isso que você estava fazendo? — A mulher apontou para a pele que ele havia derrubado.

    Ainda mais confuso por não ter sentido o tempo passar, olhou para fora de sua oficina, apenas para ser saudado por poderosos raios de sol.

    “Nossa, eu devo ter me focado muito”, pensou ele.

    Quando voltou sua atenção a Aurora para respondê-la, parou antes mesmo de começar a falar. Seus olhos fixaram-se nas roupas dela, molhadas — provavelmente com suor —, deixando sua camisa branca quase toda transparente.

    — Se-senhorita A-Aurora, suas roupas… — Envergonhado, virou sua cabeça tão rápido que quase quebrou o pescoço.

    — O que foi, elas estão rasgadas? — A mulher olhou para sua camisa, mas então voltou seu olhar para ele mais uma vez.

    — Não, m-mas… — Não conseguindo falar pela vergonha, ele fechou a boca. Então, para lidar com a situação, correu até sua capa jogada sobre uma mesa, a jogando para Aurora.

    — Por que você está me dando a sua capa, Arthur? — Mesmo confusa, aceitou-a devido ao frio.

    “Por que essa mulher tem que ser tão desprendida da realidade? Ainda mais com 30 anos de idade! Como é possível alguém ser assim?”, pensou Arthur, indignado.

    — Mas então, o que era isso? — ela perguntou enquanto apontava para a pele no chão, mantendo seu rosto neutro. 

    Vendo a curiosidade da mulher, ele logo respondeu: — Ah, sim! Hoje mais cedo, eu estava caçando na floresta e tive a sorte de encontrar um urso super grande! Então eu estava limpando a pele para transformar em couro e completar as encomendas.

    Indo até ela, ele agarrou seu pulso e a puxou para perto do objeto caído. Mas de repente, parou e colocou sua mão livre no queixo.

    — Inclusive, tenho uma entrega para fazer na guilda… Senhorita Aurora, você pode esperar um momento? Já volto! — Assim, Arthur partiu para os fundos da oficina, se desvencilhando de sua mestra.

    Aurora, agora sozinha em meio aos montes de pele, olhou em volta. Se agachando perto da pele que Arthur havia derrubado, ela estendeu seu dedo para a tocar.

    “Como será a textura disso?”, pensou ela.

    Mas então…

    — E não toque em nada, senhorita Aurora! Você vai ficar fedendo!

    A mão dela parou imediatamente, a poucos centímetros de encostar no monte. Ela logo a recolheu, franzindo sua testa.

    “Eu não quero ficar fedendo…”

    ×××

    “Eu havia me esquecido completamente desse pedido… espero que ela não fique brava…”, pensou Arthur enquanto andava por um corredor estreito.

    Após deixar Aurora sozinha na oficina, ele foi até os fundos, onde guardava as encomendas concluídas.

    Com a chegada do inverno, o frio congelante que pairava pela região o ano inteiro se intensificou ainda mais, aumentando a demanda por roupas grossas.

    “Claro, é muito bom para os meus bolsos, mas minhas mãos sempre ficam doendo depois de trabalhar com couro…”, enquanto pensava sobre, ele chegou até uma porta.

    Sem perder tempo, abriu-a rapidamente para entrar no cômodo. Mas assim que passou pela porta, uma luz forte atingiu seus olhos.

    “Urgh! Maldita janela!”, pensou com raiva, esfregando seus olhos doloridos.

    Depois de alguns instantes, ele os abriu novamente. E um amontoado de caixas e objetos diversos o saudou. Como não era muito grande o seu “armazém”, a maior parte dos objetos estavam jogados em pilhas.

    Arthur foi em direção a um canto do quarto, onde muitas encomendas estavam guardadas. 

    Pegando a que estava no topo, abriu-a e observou seu conteúdo. Para seu alívio, era a encomenda da guilda. Por pouco, ele havia se livrado de procurar em todas as caixas.

    Fechando a encomenda com cuidado, ele a colocou embaixo do braço e se virou para sair da sala.

    No entanto, seus passos pararam quando ele avistou um porta-retrato numa estante, iluminado diretamente pelo sol.

    Arthur observou a imagem de três crianças sorrindo para a foto — dois meninos e uma menina —, com uma das crianças sendo parecida com ele. 

    Sem que o rapaz percebesse, um sorriso fraco roubou seus lábios, tímido demais para revelar sua felicidade.

    — Então, era aqui que você estava… — sua voz saiu como um sussurro fraco, sua mão pairando sobre a antiga foto.

    “Tenho que tirar você daqui mais tarde…”, pensou enquanto tocava, delicadamente, o objeto de apreço.

    Após alguns instantes em silêncio, voltou a realidade, soltando o porta-retrato com cautela. Um pequeno baque soou quando ele pousou sobre a estante.

    — Sinto muito, mas tenho que ir. — Indo até a porta, olhou brevemente para trás, mas logo passou por ela.

    Pouco tempo depois, estava de volta na oficina. Para sua surpresa, Aurora se encontrava na porta, olhando para o céu claro. 

    Aparentemente, sua mestra havia seguido seu conselho de não tocar nas peles. 

    — Senhorita Aurora, vamos — parando ao lado dela, Arthur a chamou com calma.

    A mulher de cabelos negros abaixou seu olhar, se voltando para o rapaz a sua frente. E com um simples aceno de cabeça, ela começou a seguir ele conforme saiam do local.

    — Inclusive, você pode lançar uma magia de limpeza? Eu também não quero ficar fedendo, haha — disse Arthur.

    ×××

    Não muito tempo depois, Arthur e Aurora chegaram a um antigo prédio. Com suas velhas madeiras escuras, emitia imponência aos visitantes.

    Ao se aproximarem da porta, algo pode ser ouvido — murmúrios ditos em voz baixa. Arthur estranhou a falta de gritos esperados naquele lugar geralmente caótico.

    Quando abriu a porta, suas preocupações se intensificaram. Em um canto da guilda, pessoas se reuniam.

    “O mural de notícias?”

    Por ser uma cidade pequena, a guilda era a principal fonte de notícias do mundo exterior. Por isso, não era estranho reuniões ao redor do mural. Contudo, essa situação pareceu diferente aos olhos de Arthur.

    Os rostos daqueles no meio da multidão eram sombrios, escondidos por posturas curvadas pela apreensão.

    “Algo aconteceu, mas o quê?”, pensou com receio.

    Mas tomando partido para averiguar, Aurora interrompeu seus pensamentos, indo diretamente até as pessoas. 

    — Vá, eu vou dar uma olhada nisso — sem nem virar para trás, ela disse.

    E sem espaço para respostas, ela sumiu no meio do povo. Confuso, e agora sozinho, Arthur decidiu deixar aquilo de lado, focando apenas na entrega do pedido.

    Ao se virar para o lado oposto ao mural, andou em direção a um pequeno balcão resguardado em uma das paredes, enquanto olhava ao redor.

    O interior do edifício da guilda era rústico, iluminado por lâmpadas a óleo. Mas o chão foi se desgastando com o tempo, e as paredes apresentavam rachaduras.

    Era como se o lugar pudesse desmoronar ao mais leve dos toques.

    Perdido em seus pensamentos, Arthur finalmente chegou até o balcão, que continha uma placa escrita ”recepção”. Nele, uma mulher dormia sentada em uma cadeira.

    Vendo isso, soltou uma pequena risada enquanto pensava: “Nossa, parece realmente confortável, não?”

    A mulher caída sobre a cadeira mostrava uma expressão de inquietação, mesmo que dormisse. Comparando com os rostos das pessoas de antes, Arthur se sentiu levemente desconfortável.

    — Lya, acorde… Vamos, está na hora de trabalhar. — Colocando sua mão no ombro da mulher, ele a balançou cuidadosamente.

    Conforme a balançava, os fios ruivos do cabelo dela caiam sobre seu rosto como cortinas. Mesmo que não fossem tão longos quanto os de Aurora, ainda eram compridos o suficiente para escondê-lo.

    Depois de alguns instantes, onde ele se mostrou insistente em balançá-la, a mulher finalmente acordou.

    Com relutância, suas pálpebras cansadas se abriram, revelando o mar cristalino de suas íris.

    Ela o olhou como se fosse um estranho, ainda com sono, sem entender a situação. Então, como um interruptor sendo ligado, ela se surpreendeu ao reconhecê-lo.

    — Arthur!? Perdão, eu acabei dormindo um pouco, hehe — com uma expressão envergonhada, ela disse, coçando sua nuca.

    — Está tudo bem, você parecia cansada. — Arthur balançou sua cabeça com um sorriso no rosto.

    Ao ouvir ele, o rosto da mulher floresceu em um lindo sorriso, mas logo murchou, sua expressão se tornando de culpa enquanto desviava o olhar.

    Estando um pouco confuso, a expressão de Arthur congelou com a reação estranha dela. Algo estava errado, e ele sentia isso.

    Desde o momento em que entrou, percebeu que um ar de apreensão parecia estar instaurado na guilda. Não, mesmo antes de entrar, ele já sentia uma má premonição.

    Lya, como se para provar os pensamentos dele, perguntou em voz baixa: — Você… você já viu o mural de notícias, Arthur?

    Surpreso, ele negou: — Não tive a chance. Por quê?

    — N-nada, deixa isso para lá! Não é algo tão importante… — Rapidamente, ela ergueu suas mãos, as sacudindo em frente ao rosto dele. Ao perceber a caixa nos braços de Arthur, ela perguntou, mudando de assunto: — Então, o que é isso aí?

    Percebendo imediatamente a tentativa dela, ele decidiu deixar o assunto de lado. 

    — Não se lembra? Esse é o seu pedido.

    — Sério!? Achei que fosse demorar mais alguns dias. Me mostra, quero ver ele agora!

    Rindo da reação animada da ruiva, Arthur esqueceu momentaneamente da inquietude anterior. Entregando a caixa, ela logo a abriu.

    Lá dentro, um casaco de pele cinzento estava dobrado. O pegando rapidamente, Lya jogou sua jaqueta de recepcionista para o lado.

    — Nossa, é tão confortável! Obrigada, Arthur! Eu adorei — disse animadamente, abraçando o casaco em seu corpo. — Então, como eu fiquei?

    Lya posou na frente de Arthur, com uma mão no quadril e outra na cabeça. Vendo isso, ele caiu na gargalhada.

    — Não ria! — ela gritou, ameaçando jogar uma caneta em sua direção.

    — Sinto muito, Lya. Mas você está linda, não se preocupe. 

    Ao ouvir a resposta dele, o rosto de Lya se avermelhou imediatamente. Então, virando-se de lado, ela disse em voz baixa: — Bom, é claro que sim…

    Assim, ambos passaram os próximos minutos conversando distraidamente. Mas isso não durou muito. Como se para o lembrar de algo, uma voz fria chamou por ele: — Arthur…

    Ao se virar, ele notou Aurora parada ao seu lado. Contudo, em sua expressão naturalmente vazia, uma seriedade incomum surgiu.

    — O que houve? — ele perguntou temendo a resposta. Mas ela não veio em palavras.

    Sem dizer nada, Aurora estendeu sua mão para Arthur. Nela, havia um papel. 

    Entendendo a mensagem, ele o pegou, uma sensação vertiginosa tomando seu peito. Ver a reação de Aurora fez com que ele se preocupasse com o conteúdo. 

    Conforme começou a ler as notícias, seu coração caiu. Inúmeros relatos de atentados a vida, incêndios em massa e sequestros. No papel, algumas imagens estavam anexadas.

    Elas eram repulsivas.

    Casas derrubadas na lama, queimando, enquanto pessoas corriam desesperadamente, tentando ajudar os poucos sobreviventes.

    Enquanto Arthur lia a notícia, memórias que esquecera a muito tempo começaram a voltar como uma barragem quebrada. Memórias da noite em que perdeu seu lar.

    Sua respiração se tornou ofegante conforme as lembranças dos gritos de sua família e amigos ecoavam em seus ouvidos. Desespero o consumia.

    Sem que percebesse, suas mãos exerceram força excedente sobre o papel, o amassando. No entanto, um nome ainda era legível na superfície…

    O Mosteiro de Deus.

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