Índice de Capítulo

    Anayê achou que após sua primeira missão os dias ficariam mais agitados com casos surgindo um depois do outro. Só de pensar nisso, seu coração ficava mais animado. A investigação, o perigo, a batalha, a resolução e a gratidão das pessoas, nada saia da sua mente. Ela queria ajudar e derrotar mais monstros.

    Porém, os dias posteriores à festa da liberdade se mostraram muito diferentes de seus pensamentos.

    Uma semana se passou sem nenhuma novidade. Ela acordava cedo e fazia seus exercícios e treinamentos. Depois ajudava Finney, fosse cozinhando ou limpando. À tarde, se juntava às crianças para aprender um pouco mais sobre cultura e leitura com o mestre. A maioria delas quase conseguia escrever tudo, exceto algumas palavras mais difíceis. Anayê havia aprendido a ler e escrever com seus pais, mas foi estranho voltar a praticar após tantos anos longe dos pincéis.

    Naquela semana, ela também fez uma coisa inédita: pintou um quadro. E só confirmou o quanto gostava de arte. Seu quadro não ficou tão bom, mas valeu a experiência. Nally, por outro lado, parecia dominar as cores e tintas como controlava seu próprio corpo.

    Duas semanas depois se assemelhavam à uma eternidade na cabeça dela. Mesmo as atividades corriqueiras não completavam a sua ânsia por emoção. Seus treinos matinais começaram a ficar sem sentido ou deveras entediantes. Tentou inventar novos tipos de treinamentos, no entanto, até isso não durava muito tempo. Logo ela estava dominando as técnicas. Apenas praticar a pintura a sossegava. Naqueles dias, Nally e ela pintaram um quadro a quatro mãos, o que tomou bastante sua mente e seu tempo.

    Na terceira semana, o mestre pediu que ela fosse até a cidade para comprar alguns suprimentos. Foi quase como se ele tivesse oferecido um punhado de ouro. Ela partiu cedo na cela de Juno, a sua égua. Fez uma parada na estalagem que ficava na bifurcação das estradas para Zovig e Brakivad, mesmo local onde bandidos fugiram de Boyak.

    Sempre havia sujeitos estranhos no local, afinal era um ponto de passagem de muitas pessoas. Contudo, seus olhos estavam enxergando grupos demais no dia – ou seria sua impressão? Ela ficou um bom tempo na estalagem, mas nada aconteceu. Concluiu que as pessoas eram estranhas ou ela estava ansiosa demais por emoção.

    Na cidade neutra agiu de forma semelhante. Dessa vez, Skell estava mais vazia e quase não restara resquícios da festa da liberdade. Anayê conversou com várias pessoas e vendedores, perguntando se não precisavam de ajuda para derrotar aberrações. A maioria ficou surpresa pela pergunta, eles acreditavam que monstros eram mera superstição de mercenários. O restante afundava em uma espiral de conspiração e espiritualidade maluca que não fazia nenhum sentido. Como certa mulher crente de que o rato em sua casa era uma aberração. Anayê se sentiu um pouco ridícula quando matou o animal.

    Ela retornou para as Colinas Verdes com um sentimento confuso dentro de si. Frustração. Mas era só porque ela queria ação? Havia ficado tão refém assim da emoção? 

    Ora, pare de ser ansiosa, você só lutou uma vez pra valer, não pode estar tão desesperada por uma batalha, se censurou.

    Quando chegou nas Colinas, tentou se conformar com a monotonia. Ajudou na casa, cortou lenha, treinou, pintou e reaprendeu a escrever. Brincou das crianças e contou pela milésima vez para Nally como enfrentou a aberração do Ribeiral.

    Porém, no dia em que completou dois meses desde sua formação como ceifadora foi o pior. Sim, o mestre, Finney e as crianças fizeram um belo bolo para comemorar, e Nally deu um quadro de presente para ela – uma representação de sua batalha no Ribeiral.

    Anayê usou toda a cordialidade aprendida naqueles últimos dias, procurando não demonstrar sua insatisfação. Mas veio assim mesmo, e, como ela havia acorrentado esse sentimento, ele voltou mais forte.

    No fim da tarde, ela estava sentada sozinha no local onde enxergara a ponte até a ilha flutuante. Ali em cima, o mundo parecia um completo e sinistro silêncio.

    — O que está perturbando você?

    Ela tomou um susto com a pergunta do mestre e depois sorriu.

    — Ainda não consigo disfarçar bem.

    — Fez um bom trabalho, mas é quase impossível enganar esse velho aqui.

    Ele estava usando um chapéu de palha e trazia seu cajado debaixo do braço.

    Anayê ponderou por um instante. Não queria parecer ingrata ou desesperada.

    — Desembucha — ele se sentou no chão ao lado dela.

    — Estou me sentindo… bem, como posso dizer? Inútil.

    — E por que estaria se sentindo assim?

    Anayê esfregou uma mão na outra.

    — Me tornei ceifadora por um motivo, enfrentar aberrações e ajudar pessoas.

    — E você está ajudando muito. Todo dia, Finney fica imensamente grata.

    — Não é desse tipo de ajuda que estou falando.

    Ela se arrependeu de ter respondido daquela maneira, mas o mestre emendou:

    — E o que você está pensando em fazer?

    A ceifadora entrelaçou os dedos em frente a boca para pensar.

    — Quanto tempo vai levar para falar? Vamos, desembucha — o mestre a cutucou com o cotovelo.

    — Eu amo esse lugar e amo as pessoas, mas sinto que estou desperdiçando meu tempo. É como uma inquietação, entende?

    — Te entendo bem, mas me permita dizer como alguém mais velho que já passou por isso. Você ainda não está preparada para o mundo lá fora, e nem para as aberrações. Ribeiral foi fácil perto das monstruosidades de verdade.

    — Eu não tenho medo — ela se defendeu.

    — Ah! Esse é um dos problemas.

    — Fui forjada para ser uma ceifadora e enfrentar os perigos. Não quero ficar presa como uma covarde.

    — Isso não é covardia, é cautela.

    Anayê bufou, inconformada.

    — Sei que você se espelha muito no cabeça-oca do Boyak, mas não herde a teimosia dele, está bem? Acredite, a missão vai aparecer se você tiver paciência.

    — Se eu for sempre esperar pelos monstros fáceis, isso vai durar meses.

    — Por enquanto, é assim que vai ser — ele disse de modo mais autoritário. — Você é uma ceifadora inexperiente, e tomou várias decisões imprudentes na sua última missão.

    — …

    — Você precisa ser mais inteligente. Não te treinei para morrer de forma patética para uma aberração. Se depender de mim, jamais acontecerá.

    Ela franziu o cenho.

    O velho se levantou com um pouco de dificuldade e ficou um tempo parado.

    — Você não tem a minha bênção para atuar como ceifadora de maneira autônoma.

    A ceifadora permaneceu calada.

    Então o mestre saiu caminhando e a deixou sozinha.

    Muito depois de o sol desaparecer no horizonte, Anayê ainda permanecia no alto da colina, submersa em um turbilhão de pensamentos. A presença calma da senhora Finney, que se sentou ao seu lado, foi o que a despertou daquele devaneio.

    — Ele só quer te proteger — ela disse tocando a mão da ceifadora. — Os alunos são a coisa mais preciosa para ele, por isso, não deseja vê-los perecer numa batalha contra uma aberração. Ainda mais a caçula.

    Anayê soltou um longo suspiro.

    — Sabe quem foi o primeiro aprendiz do mestre? — Finney perguntou.

    — Não.

    — Ele não fala muito dela. A pequena Ananda — a voz dela ficou nostálgica. — Foi a primeira adolescente que ele libertou de um bando de piratas. Ananda demonstrou uma aptidão incrível para ser ceifadora e o mestre não hesitou em guiá-la para esse caminho. E ela se tornou uma das mais admiráveis e poderosas pessoas treinadas por ele. Obviamente, também se tornou uma ameaça para nossos inimigos que prepararam uma armadilha, pois sabiam que ela faria de tudo para proteger seus amados. — Finney fitou Anayê. — Ananda lutou bravamente e derrotou uma dúzia de aberrações sozinha, tudo para proteger uma pessoa… seu mestre.

    Finney sorriu e apertou as mãos de Anayê com carinho.

    — Desde então ele nunca mais quis outra Ananda.

    Anayê não precisou dizer nada, e nem a senhora Finney. As duas se levantaram e foram jantar.

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