Capítulo 30 - Sentido Oculto
Asha estendeu a mão para Derek. Seus olhos estavam serenos, mas havia uma urgência silenciosa em sua expressão.
— Você disse que vai morrer em breve — murmurou ela. — Mas antes disso… você precisa lembrar porque viveu.
Derek hesitou. Mas algo na voz dela o fez aceitar.
Ao tocar sua mão, o mundo ao redor se dissolveu. O campo, a árvore, o céu — tudo virou poeira de luz. E então, uma nova paisagem surgiu.
Era o passado.
Derek estava ali, mas não como antes. Seu corpo não tinha peso. Seus pés não tocavam o chão. Ele era como um fantasma — invisível, intocável. Ninguém o via. Ninguém o ouvia.
Asha caminhava ao seu lado, como uma guia silenciosa.
A primeira memória surgiu como uma pintura viva.
Era sua infância. Ele corria por um quintal ensolarado, os pés descalços, o riso solto. Sua mãe o chamava da varanda, com um sorriso que parecia conter o mundo inteiro. Derek parou, observando. Seus olhos se encheram de lágrimas.
— Você se lembra disso? — perguntou Asha, com voz suave.
Derek assentiu, sem conseguir falar.
— O que você sentia aqui?
— Segurança — respondeu ele, quase num sussurro. — Amor.
Asha sorriu.
— E isso… ainda existe dentro de você.
A cena se dissolveu. Outra tomou seu lugar.
Agora, Derek estava sentado em uma sala de aula, desenhando em um caderno. Ao lado dele, um amigo ria, apontando para o desenho torto. Eles riam juntos. Era uma amizade simples, mas verdadeira.
— Você se lembra do nome dele? — perguntou Asha.
— Caio — respondeu Derek, com um sorriso nostálgico.
— Ele te fez sentir que você não estava sozinho.
Derek olhou para si mesmo, naquela memória. Tão jovem. Tão cheio de possibilidades.
Mais cenas vieram.
Um abraço apertado após uma perda. Uma noite de chuva em que ele escreveu sua primeira música. O olhar de alguém que o amou de verdade, mesmo quando ele não se achava digno.
Cada memória era uma chama. E Derek, mesmo invisível, sentia o calor.
— Você viveu tantas coisas — disse Asha. — E mesmo nas dores, havia beleza. Havia sentido.
Derek não respondeu. Mas seus olhos diziam tudo.
A última memória surgiu.
Era recente. Derek estava sozinho, sentado em um quarto escuro. Chorava em silêncio. Mas então, pegou um papel e começou a escrever. Palavras confusas, mas sinceras. Era um desabafo. Um pedido de ajuda.
— Você não desistiu — disse Asha. — Mesmo quando achou que não havia mais saída.
Derek olhou para si mesmo naquela cena. E pela primeira vez, sentiu compaixão por aquele homem quebrado.
— Por que você escreveu aquilo? — perguntou Asha.
— Porque… eu queria ser ouvido — respondeu ele. — Queria que alguém me visse.
Asha se aproximou, tocou seu ombro.
— Eu vejo você, Derek. Sempre vi.
O mundo começou a se dissolver novamente. As memórias se apagavam, mas o sentimento permanecia.
De volta ao vazio, Derek estava diferente. Ainda ferido, ainda cansado — mas agora, com algo aceso dentro dele.
— Você ainda acha que vai morrer em breve? — perguntou Asha.
Derek respirou fundo, olhando para ela.
— Não sei. Mas não quero ir embora sem lutar.
Asha sorriu.
Ela se aproximou de Derek com um olhar firme, quase solene. Havia algo diferente nela — uma energia que oscilava entre serenidade e poder.
— Você precisa aprender a se defender — disse ela, com a voz baixa. — Não com força bruta. Não com velocidade. Mas com algo que ele não pode prever.
Derek a encarou, exausto.
— Eu já tentei. Ele é rápido demais. Meus olhos não conseguem acompanhar… Eles foram destruídos no processo.
Asha o interrompeu com um tom cortante, quase enigmático:
— Para enxergar através do seu inimigo… não é preciso ter olhos.
Derek franziu a testa, confuso.
Antes que pudesse perguntar, Asha desapareceu. E então, surgiu atrás dele, silenciosa como o vento, e cobriu seus olhos com as mãos.
— Eu não vejo nada — murmurou ele.
— Exatamente — disse ela. — Para alcançar o que vou te ensinar, os olhos não serão necessários. Você vai precisar de algo mais profundo. Seus outros sentidos. Sua paz interior.
Ela se afastou.
Derek permaneceu imóvel, com os olhos fechados. O mundo era escuridão.
De repente, um impacto brutal. Asha surgiu por trás e o acertou com um taco de baseball na cabeça. Derek tombou na grama, atordoado.
— Mas que diabos foi isso?! — gritou, irritado, esfregando a cabeça.
Asha forçou um sorriso confiante, apertando os punhos.
— Treinamento. Agora vamos continuar.
Naquele instante, Derek viu nela algo familiar. A postura, o olhar, o jeito de provocar. Era idêntico a Stefany. Sua espinha tremeu com a lembrança dos treinos que ela o fazia passar.
Mesmo tremendo, ele se levantou com um sorriso nostálgico.
— Vamos de novo — disse, confiante.
E assim, o treinamento começou.
Asha o atacava de todos os ângulos. Derek caía, tropeçava, rolava pela grama em quedas cada vez mais desastrosas. Mas não desistia.
Após inúmeras falhas, algo mudou.
Em um breve instante, Derek visualizou Asha em sua mente, empunhando o bastão. Por instinto, ergueu o braço para bloquear.
Asha sorriu, surpresa. E com mais força, o acertou, lançando-o longe. Derek rolou pela grama alta e bateu contra a árvore da colina.
Gemendo de dor, ele esfregou a cabeça.
Asha se aproximou devagar, o bastão apoiado no ombro.
— E aí? Você sentiu, não sentiu?
Derek olhou para a própria mão, ainda confuso.
— O que foi isso?
Ela sorriu.
— Isso é o que eu almejava para você. Um novo sentido. Nascido da junção da sua audição, do seu olfato… e da sua paz interior. Eu chamo de projeção mental.
— Um novo sentido…? Projeção mental… — murmurou Derek, ainda tentando entender.
— Isso vai te ajudar a continuar a batalha — disse ela.
Derek sorriu, empolgado, e gritou:
— Então continua me treinando!
Mas Asha apenas sorriu serenamente.
— Não.
Derek ficou confuso.
Antes que pudesse perguntar, ela apontou para cima. A retroprojeção de seu corpo estava voltando à velocidade normal. A criatura se aproximava novamente, feroz.
Ao olhar para baixo, Derek percebeu que Asha havia sumido. Restava apenas sua voz, ecoando ao redor.
— Vá. Derrote a criatura.
— Não me deixa! — gritou ele.
A voz dela veio como um sussurro levado pelo vento:
— Não me ouviu antes? Eu sou você. E você sou eu. Nunca o deixarei sozinho.
Um clarão o envolveu.
E Derek voltou à realidade.
A criatura avançava, com garras prontas para rasgar sua garganta. Ele não enxergava nada. Mas no último instante, movido por puro instinto, girou a faca e acertou o inimigo — arrancando-lhe um dos olhos.
A criatura recuou.
Mesmo cercado pelos mortos, Derek conseguia vê-la perfeitamente em sua mente.
Derek sorriu em pensamento.
“Agora vamos dançar no mesmo ritmo, amigo.”
Derek avançava com mais precisão. A projeção mental que Asha havia despertado nele começava a surtir efeito. Ele não via com os olhos — via com o instinto. Com a memória do som, do cheiro, do movimento.
A criatura se movia com ferocidade, mas Derek já não era o mesmo. Seus golpes não eram mais cegos. Ele desviava, contra-atacava, sentia o fluxo da batalha.
Ainda assim, não era perfeito.
Alguns golpes ainda o acertavam. Ele não conseguia prever tudo. E com os mortos-vivos se aproximando, o caos ao redor o distraía. Um segundo de hesitação foi suficiente.
A criatura o atingiu com força, lançando-o contra a porta de uma loja abandonada.
O impacto fez a madeira ranger e o pequeno sino pendurado na entrada tilintar, quebrando o silêncio com um som agudo e nostálgico.
Derek caiu dentro do estabelecimento.
O ar ali era diferente. Não havia cheiro de podridão, apenas poeira — como se ninguém tivesse cruzado aquela porta por anos.
Ele se levantou devagar, tateando o ambiente. Sabia onde estava, mais ou menos. Reconhecia os prédios da rua e se lembrou de ter visto uma loja com um sino em cima da porta, mas ainda assim, nunca havia entrado naquela loja. O interior era um mistério.
Tentou tocar objetos ao redor, buscando pistas. Mas era inútil. Não sentia nada. Nenhuma textura, nenhuma temperatura.
“Corpo de merda”, pensou, irritado.
O sino da porta tocou novamente.
A criatura havia entrado.
Derek se apressou para se levantar, mas não teve tempo. Ela avançou com brutalidade e o empurrou com força, fazendo-o rolar pelo chão em meio à poeira.
Enquanto caía, ouviu o som metálico de sua faca se arrastando pelo piso.
Era um som cortante, desesperador.
Derek esticou o braço, tentando alcançá-la, mas a criatura já se aproximava novamente.
Ele sentiu o cheiro podre da criatura bem debaixo de seu nariz.
O treinamento com Asha ecoava em sua mente. Ele precisava se concentrar. Precisava sentir. Precisava dançar no mesmo ritmo.
Mesmo sem enxergar, mesmo sem tato, ele ainda tinha algo: vontade.
A criatura não hesitou.
Avançou com fúria, suas garras rasgando a carne de Derek sem piedade. O sangue jorrava, espalhando-se pelo chão.
Cada golpe era um lembrete cruel de que ele ainda estava vulnerável — mesmo com sua projeção mental, mesmo com o treinamento.
Derek tentava ignorar o som de sua carne sendo rasgada e mantinha sua concentração. A imagem da criatura se formava em sua mente, mas sem sua faca, ele sabia que não teria chance.
Foi então que um pensamento cortou o caos como uma lâmina:
“Estamos sozinhos.”
A frase ecoou em sua mente com uma clareza quase sobrenatural.
Derek esgueirou o braço pelo corpo descendo até a calça, com a esperança de conseguir agarrar a arma.
Mesmo sem ter certeza se estava agarrando a arma, ele puxou o braço. Foi no puxar que ele sentiu o cheiro amargo da pólvora.
Sacar e atirar enquanto era atacado seria um desafio. Mas ele não tinha escolha.
Usando a perna como alavanca, Derek chutou a perna da criatura com força. O golpe foi preciso. A criatura perdeu o equilíbrio e caiu com um baque seco.
No instante da queda, Derek girou o corpo, ergueu o revólver e mirou.
O tempo pareceu desacelerar.
A criatura se contorcia no chão, tentando se levantar. Mas Derek já havia alinhado a mira com a cabeça dela.
Sem hesitar, ele puxou o gatilho.
O som do disparo não ficou contido entre as paredes da loja. Ecoou pela rua infestada de mortos-vivos, atravessando todo o som dos mortos. Em um dos prédios próximos, dois homens observavam o cenário com atenção.
— Você ouviu isso? — perguntou um deles, ajustando os binóculos.
— Ouvi. Continue observando. Se houver sobreviventes, precisamos encontrá-los — respondeu o outro, com o rifle apoiado na janela.
Dentro da loja, Derek se deitou de costas, o braço ainda estendido e o revólver fumegando. O coração batia como um tambor descompassado.
“Puta que pariu… essa foi por pouco”, pensou, ofegante.
Mas não havia tempo para descanso.
O cheiro começou a se intensificar. Ele sabia o que isso significava — os mortos-vivos seriam atraídos. E se o odor chegasse até eles, seria o fim.
Sem hesitar, Derek se arrastou até o corpo da criatura caída. Guiou o rosto até a fonte do cheiro, ignorando qualquer nojo ou hesitação. Abocanhou com brutalidade, rasgando a carne e expondo o crânio.
Seus olhos começaram a se regenerar, a visão ao redor voltava em flashes. O braço, antes imóvel, recuperava o movimento. As feridas se fechavam lentamente.
“Isso aí, porra!”
Enquanto mastigava, um cheiro forte tomou conta de suas narinas. Mas não era o odor comum da carne morta — vinha do cérebro. De uma parte específica.
Era como se aquela região estivesse carregada com algo diferente. Algo mais denso. Mais vivo.
Derek parou por um instante, os olhos fixos naquela parte. Agarrou a parte com os dedos e a separou do resto do cérebro. Era minúsculo, mas exalava um forte cheiro. Curioso do que essa parte poderia ser, a mordeu.
O corpo de Derek começou a se curar mais rápido do que antes.
Seus ossos, antes rígidos, tornaram-se mais flexíveis, como se tivessem sido lubrificados por dentro, e seus braços se fortaleceram com a regeneração acelerada de músculos e pele.
Ele se surpreendeu.
Não esperava que uma parte específica do cérebro tivesse o mesmo efeito do que consumir o órgão inteiro. Era como se aquele fragmento se concentrasse em algo essencial. Algo que o corpo reconhecia como fonte pura de restauração.
Derek permaneceu imóvel por um instante, sentindo o calor da cura se espalhar.
Ele olhou para suas mãos, agora firmes, e sentiu o peso da descoberta.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.