Capítulo 055 — Uma competição de forja.
O calor fazia o ar vibrar.
No centro do Distrito da Forja, a arena circular fumegava com dezenas de fornalhas acesas. O desafio era direto: forjar uma lâmina curta usando apenas o kit-padrão, que consistia em uma barra de aço, carvão de alta pureza em uma pilha selada, óleo de resfriamento e uma pedra de afiar. Nada além disso.
O trabalho terminava quando a pilha de carvão designada se esgotasse; fiscais caminhavam entre as bancadas para conferir selos, peso e desperdício. Só técnica, suor e talento.
Ao redor, mestres ferreiros e jovens aprendizes assistiam da arquibancada, observando com olhos atentos.
A sineta soou, e os competidores correram para suas bancadas.
Kalamera Wynrae se destacava, não por arrogância, mas por ritmo. Os quatro braços se moviam com precisão, moldando o aço como se ele já tivesse aceitado o destino de virar lâmina. Enquanto outros ainda atiçavam a brasa, ela já batia com consistência. Cada golpe, um passo à frente.
— Isso aqui virou piada? — rosnou uma voz mais alta, no meio do barulho.
Nareth Dovar, braços cobertos de fuligem, largou o martelo por um instante e olhou em direção à bancada vizinha. O suor escorria pela testa. Ele apontou o queixo na direção de Kalamera.
— Quatro braços? Isso é uma competição de forja ou de mutação?
Alguns competidores se entreolharam. Um deles soltou um riso breve, outro assentiu com o queixo. A tensão começou a se espalhar no calor.
— Que tipo de mérito tem alguém que vem pronto de fábrica? — continuou Nareth, alto o bastante pra ecoar até a arquibancada. — Isso aqui é sobre técnica, não sobre vantagem mecânica.
Kalamera não reagiu, não respondeu, apenas virou a lâmina, mergulhando-a no óleo com precisão. A fumaça subiu com cheiro de resina e metal queimado.
Do alto da tribuna, Mestre Gorthen Valdik se levantou.
— Nareth — chamou, voz firme. — Tem algo a declarar oficialmente?
Nareth não recuou, olhou direto pro jurado.
— Com todo respeito, mestre. Isso não é equilíbrio, é apelação.
Gorthen bufou, cruzando os braços.
— Então forje seus próprios braços.
O silêncio caiu, até o fogo pareceu hesitar por um segundo.
Gorthen apontou para um aprendiz na arquibancada que observava com um braço mecânico preso ao ombro.
— Ferramentas movidas por essência são parte da tradição da engenharia. Se você não sabe criar as suas, o problema é seu, não dela.
A plateia explodiu em murmúrios, alguns em riso. Nareth cerrou os dentes, pegou o martelo e voltou ao trabalho sem mais uma palavra.
Kalamera seguiu sem olhar pra ele.
No fim, Kalamera entregou sua adaga: uma lâmina perfeitamente equilibrada, com fio mortal e cabo simples, porém funcional. A afiação era tão precisa que um juiz cortou um fio de linho no ar com um golpe leve.
Outros competidores também brilharam. Uma lâmina resistiu a três golpes contra madeira sem lascar, outra tinha equilíbrio quase perfeito.
Mas nenhuma cortava como a de Kalamera.
— Técnica limpa, sem excessos — disse um dos jurados.
— Controle absoluto da temperatura — comentou outro.
— E afiação de mestre — completou Gorthen.
Vencedora da Prova de Lâminas Curtas: Kalamera Wynrae.
Dessa vez, a multidão aplaudiu de pé. E, mesmo entre os rivais, houve respeito, ainda que relutante.
Ao longe, Nareth deixava sua lâmina sobre a mesa, o maxilar travado. Havia sido o único que não havia aplaudido.
Um homem de postura rígida se aproximou e parou ao lado de Nareth. Vestia o uniforme azul-escuro do Império; lhe disse algo em voz baixa. Nareth respondeu com um aceno quase imperceptível e o homem voltou por onde tinha vindo.
Antes que Nareth pudesse sair, um dos competidores o interceptou no caminho. Era um rapaz mais jovem, ainda suando, com marcas de fuligem no rosto. Trazia a própria adaga na mão e um sorriso hesitante no rosto.
— Ei, Nareth… sua forja foi boa, cara. Quase te colocaram no top três, ouvi um dos jurados comentando. Se quiser passar na oficina mais tarde, vamos revisar os projetos juntos.
Nareth parou por meio segundo. Virou o rosto apenas o suficiente para encarar o rapaz de lado. Nenhuma expressão.
Depois, seguiu andando.
O competidor ficou parado no meio da arena, o sorriso desmanchando aos poucos. Baixou a cabeça e voltou pro fundo, constrangido.
Kalamera, ainda ao lado da tribuna, viu tudo. Não ouviu as palavras, mas viu o gesto.
***
A música preenchia o salão com um ritmo cerimonial. Oficialmente, era uma confraternização, o fim do primeiro dia das Olimpíadas. Vitórias para celebrar, alianças para reforçar, mas pra Marco, parecia mais um congresso com bebida.
Ele circulou entre os grupos, copo na mão, escutando frases curtas, risadas medidas, elogios que soavam como relatórios. Encontrou Lou-reen exatamente onde esperava: de pé, sozinha, ao lado de uma das colunas, observando tudo com olhos calmos.
Se aproximou.
— Sabia que você ia estar nesse canto.
— E você demorou.
Marco parou ao lado dela, deu um gole na bebida.
— Isso aqui é o máximo que vocês conseguem chamar de festa?
Lou-reen olhou pra ele, sem entender o tom.
— É uma confraternização oficial. O que esperava?
— Gente rindo de verdade, música com ritmo, alguém tirando a camisa depois de dois copos.
Ela franziu ligeiramente a testa.
— Isso seria… inadequado.
— Isso seria humano. — Marco sorriu. — No meu mundo, quando tem festa, alguém sempre aparece com um instrumento improvisado, alguém canta mal. Tem dança ruim, piada sem graça e alguém que dorme embaixo da mesa. E é ótimo.
Lou-reen acompanhava, tentando imaginar a cena.
— Caótico.
— Autêntico.
— Perigoso.
— Memorável.
Ela o encarou por um segundo.
— Você sente falta?
Marco não respondeu de imediato.
— Sinto falta de parecer que as pessoas estão ali porque querem. Aqui… parece que todo mundo veio porque alguém mandou.
Lou-reen olhou em volta. Pensou um pouco, depois respondeu:
— Vieram porque foram mandados. Mas isso não significa que não queiram estar aqui.
— Não?
— Aqui, estar presente já é uma forma de respeito. Mesmo sem risadas altas ou música estranha.
Marco sorriu, olhando pra ela.
— Um dia você vai conhecer uma festa de verdade. E aí vai entender.
— E se eu não gostar?
— A gente te arruma uma mesa pra ficar embaixo.
Lou-reen não respondeu, mas, dessa vez, deu um pequeno sinal de sorriso.
— Marco, o astronauta — disse uma voz firme e grave, bem educada, mas carregada de propósito.
Ele se virou. Um homem alto, de postura militar e cabelo grisalho milimetricamente alinhado, vestia o uniforme de gala azul-escuro. Às suas costas estavam dois outros oficiais, gêmeos, rosto semelhante, arrogância refletida em espelho.
O homem parou diante deles. Endireitou a postura, levou o punho ao peito e fez uma continência precisa em direção a Lou-reen.
— General Egalyn.
Lou-reen retribuiu com um leve aceno de cabeça, formal.
Só então o homem se virou para Marco.
— Coronel Sylvaro von Smet. — O tom continuava impecável. — E estes são meus filhos: Dephredo e Phaedra. E meu secretário pessoal, Diosi Heiric.
Marco assentiu, medindo o tom.
— É uma satisfação, senhor.
Sylvaro sorriu com uma leveza cortante.
— Disseram que estão pagando uma pequena fortuna pela sua cabeça. E o dobro se vier com o cetro flutuante incluso.
— Espero que quem pegar me entregue inteiro. Pelo menos pela ciência.
Sylvaro manteve o sorriso.
— Felizmente, estou aqui só pra confraternizar — disse o coronel. — Aproveitar a noite, sabe como é. Nunca se sabe quando nossos inimigos vão dar as caras.
Sem esperar resposta, virou-se para Lou-reen, com mais um leve aceno de cabeça.
— General. Sua presença é uma garantia de ordem. É sempre bom vê-la.
— Coronel — respondeu Lou-reen, com um leve aceno de cabeça.
Sylvaro se afastou, indo em direção à roda onde Luminor contava mais uma história absurda.
Os gêmeos ficaram.
Phaedra girou o copo entre os dedos. Dephredo o ajustou na mão como se estivesse prestes a brindar.
— Ainda respirando, astronauta? — disse Dephredo.
— Impressionante, depois daquela partida — completou Phaedra. — Achei que você fosse sumir como um cometa passageiro.
Marco arqueou uma sobrancelha, sem responder.
— Continue assim — disse Dephredo. — Quase estamos nos acostumando a não gostar de você de verdade.
— Isso exige esforço — disse Phaedra, virando o rosto com um leve sorriso.
Então ambos se afastaram, sumindo entre outros oficiais.
Marco soltou o ar devagar.
— Sabe… eu achava que sobreviver a uma reentrada atmosférica era exaustivo.
Marco ainda estava falando quando percebeu uma mão surgindo do lado, empurrando um pedaço de papel contra o peito dele.
Luminor passava junto de Sylvaro, lado a lado, conversando em tom baixo, postura de oficiais, mas com aquele jeito solto de quem sabe exatamente o jogo que tá jogando. Luminor nem parou. Só olhou de canto, piscou rápido e soltou, quase sem mover os lábios:
— Se essa aqui tá chata… — deu um leve tapinha no papel — tenta essa.
E seguiu andando, elegante, tranquilo, como se nada tivesse acontecido. Sylvaro nem olhou pra trás, ou fingiu que não percebeu.
Marco abriu o papel. Um endereço, escrito às pressas, fora dos muros.
Lou-reen cruzou os braços, já lendo a situação inteira.
— Isso tem cara de problema.
Marco dobrou o papel, enfiou no bolso e sorriu.
— Tem cara de diversão.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.