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    Meu corpo gelou só de escutar aquela voz. Seu tom surpreso, mas misturado com temor, me deixou ainda mais aflita sobre a situação. Era alguém que não queria encontrar no momento. 

    Assim… como todas as pessoas que conhecia. 

    — Rafael — disse, suando frio —, que bom te ver por aqui. 

    Meu irmão. Aquele que foi taxado como empreendedor em potencial. E agora veja só! Trabalha na porcaria de um supermercado de esquina. O destino era irônico.

    Não disse pelo coração. É óbvio. Foi uma frase curta para não dar chance da conversa se prolongar. Nesse tipo de coisa eu era craque!

    Coloquei os produtos no balcão.

    — Hahaha… — Ele pegou cada produto em toques leves, passando pelo leitor de preço. — Que coincidência, eu diria. 

    Desviava o olhar. Ainda deveria ser difícil para ele, então nem poderia culpá-lo. 

    Era complicado. Nossa relação era muito complicada. Com toda a família, na verdade. Tinha perdido contato com todos eles há um ano quando decidiram cortar laços comigo. 

    Ugh… Quem diria que iria encontrá-lo aqui?

    — Como vai? — perguntei, tentando quebrar um possível silêncio de se formar.

    Rafael olhou de um lado para o outro, ainda tentando evitar que seus olhos encontrassem os meus. Ele tinha medo de uma conversa cara a cara, principalmente pelo fato de ser uma pessoa que ele ajudou a expulsar da família. 

    — Estou bem — respondeu frio. Aquilo era encenado, como se quisesse sair mais da conversa do que eu. — Sua mãe sente falta de você… — murmurou, mas alto o suficiente para escutar.

    Que novidade.

    Nossa, sério!? 

    Logo minha progenitora sente falta de mim? A mulher que demonstrou o quanto eu era um erro agora sente minha falta? Deveria ser uma piada. 

    Não, não. Era uma piada. Só podia ser.

    Mas era sem graça.

    — Fala pra ela que aprecio os sentimentos. — Peguei as sacolas. — Mas não dá pra tentar voltar atrás. 

    Pensei já ter superado tudo isso. Mas, pelo visto, ainda estava longe de esquecer esse meu passado. Ter visto aquela cara fria me mandando embora foi um dos maiores gatilhos para me moldar como sou hoje em dia. 

    Minha mão tremia e corria o risco de colapsar mais uma vez se continuasse nessa presença indesejada. 

    Entreguei o dinheiro, pagando por todas as minhas compras no supermercado. 

    Difícil. Uma palavra que descreveria toda a minha situação. Só era muito difícil, mesmo. 

    Andei sem olhar para trás. Queria esquecer esse rosto. Esquecer que encontrei com ele. 

    — Desculpa! — gritou Rafael, sua voz ecoando por todo o estabelecimento. — Será que você…

    — Não — respondi sem olhar para trás. — Não quero mais saber de vocês. Estou traçando meu próprio destino, longe das correntes que me colocaram.

    Aquilo não era birra.

    Havia limites, e estava respeitando-os. 

    “Regra número um: nunca mais se aproxime de um membro da família.” 

    E é isso que vou fazer. 

    Ugh… Minha tarde já estava sendo estragada. Como isso é possível? Minha cervejinha deve ter ficado com um gosto horrível só de ter encontrado com esse bostinha.


    Passei pelo vigia, indo em direção às escadas do prédio. 

    Ainda pensava em tudo o que tinha acontecido hoje. De alguma forma, o dia só se bagunçava ainda mais. 

    Tinha feito com Cecília… Ugh… Era vergonhoso! 

    Foi um erro.

    É, só pensar dessa forma que deixa de ser constrangedor…

    Foi um erro!

    Mas com minha ex!? Hahaha… Que loucura.

    — Ainda não vou esquecer o rosto daquele cara do arcade — resmunguei, apoiando-me no corrimão. — Vou andar com uma tesoura na minha bolsa só por precaução. Vai que eu encontro com ele por aí… Hehehe… Maldito.

    Continuei pelas escadas.

    Meu apartamento estava próximo. Ficava apenas no segundo andar, sabe? É pertinho.

    Só que… a preguiça tinha me dominado. E dominado de um jeito!

    Claro que… não era só a preguiça, obviamente. Tinha um sentimento que crescia sem parar. 

    Era uma angústia. Um sentimento amargo sobre o futuro que era alimentado por paranóias.

    O medo pelo que poderia estar no fim da escadaria. O temor pelo amanhã que preenchia meu peito.

    Evitar o passado sempre foi meu objetivo. Mas… por algum motivo, queria voltar para ele.

    Queria sentir o aroma da casa de minha avó mais uma vez.

    — Scarlett?

    Uma voz rouca, marcada pela idade.

    Esses dias estava escutando meu nome várias vezes. 

    — Ah… Oi — respondi, olhando para o final da escadaria. A silhueta de uma senhorinha marcada pelo sol.

    Talvez…

    Talvez eu quisesse que fosse minha avó. Mas era bom ser realista sobre isso tudo.

    Não poderia ser ela.

    A cada degrau que subia, mais a silhueta se desfazia.

    — O que a senhora está fazendo aqui? — perguntei, colocando meus pés no segundo andar. — Algum problema com os gatos, Maria? 

    Ela parecia cansada. Talvez o problema nas suas costas tenha piorado? 

    Não…

    Não é isso.

    — Estava dando um passeio pelo quarteirão — respondeu, suas roupas suadas evidenciando a fala. — Foi um bom treino. A idade pode ter chegado, mas eu não vou parar de correr, querida. 

    Hahaha!

    Acabei rindo um pouco pela quebra de expectativa. Pensei que a mesma tivesse sido roubada ou algo do tipo. Agradeço por estar errada!

    — A senhora é uma corredora em tanto, né? — Coloquei as sacolas no chão, estalando os dedos. — Talvez um dia possamos correr juntas.

    Antes que pudesse pegar as sacolas mais uma vez, Maria pegou metade delas.

    — Com certeza, querida. Mas cuidado para não ficar pra trás, hein? — Ela abriu um sorriso cínico. — Você está levando isso para o seu apartamento, certo?

    — Ah… Pode deixar que eu faço isso, senhora.

    — Não, não. Eu tô velha, mas eu posso ajudar uma jovenzinha como você. 

    — Certeza?

    — Você não me parece nada bem, Scarlett. A sua expressão está horrível, garota! Queria pelo menos poder te ajudar um pouco — respondeu. — Se pudesse, gostaria de escutar sua história.

    Ah…

    Era uma ajuda.

    Uma ajuda sincera vinda de minha vizinha. Como poderia reagir a essa situação? Estava imóvel, sem saber o que fazer.

    Não entendia muito o que deveria fazer.

    Peguei o restante das sacolas, segurando o choro aos poucos. 

    Ela andou sem falar mais nada até a porta do meu apartamento. Confesso que me senti meio mal por deixar uma senhorinha dessas me ajudar, mas ela havia insistido…

    Lembrava um pouco da minha avó. É uma coincidência estranha? Sim, é. Mas lembrava.

    Esse seu jeito…

    Ah…

    Sentia falta. Muita falta mesmo.

    Ela deixou as sacolas na porta do meu apartamento, e logo larguei minha parte ali também.

    — Muito obrigada — disse, abrindo um sorriso.

    — Não agradeça ainda! — falou, abanando o rosto com a mão. — Tem uma coisa que não faço há anos e fiquei com vontade de fazê-la agora.

    Franzi a testa, tentando entender do que se tratava.

    — Quero cozinhar para alguém. Permitiria essa velha senhora fazer isso para você, Scarlett? Pode não ser muito, levando em conta o quanto me ajudou, mas é dessa forma que posso retribuir no momento.

    É o quê?


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