Capítulo 115 - Maremoto da Moral
“Um maremoto pode se formar em silêncio, sem aviso, dentro de uma pessoa.”
Haruki Murakami, escritor japonês.
Livro: Depois do Anoitecer (2004).
Enquanto isso, no corredor de acesso…
Logo após a conversa com Waaifu Soul Onma mais cedo, Noah caminhava de volta, a fim de encontrar seus colegas de time.
Embora tivesse foco no olhar e certeza na atitude, questões internas tiravam parte da atenção.
A felina o desmantelou, lhe tirando uma zona de conforto de que cuidava a todo custo.
O diálogo que teve martelava sua mente, como um mantra insistente e inquieto.
“Não fique assustado, são só probabilidades. Elas me ajudam a entender as pessoas… e a lê-las também.”
— “Ela definitivamente… não é uma louca” — pensava, com o incômodo visível em sua testa franzida. — “E muito menos ignorante. Aquela moça falava como se tivesse segurança em tudo…”
Não só essa frase; todas elas impactaram Noah
Principalmente a última delas:
“Nos veremos no torneio, Noah Hibiki… Lá, não serei gentil… e tenho planos para você.”
Seus dentes ficaram expostos, ilustrando o pequeno abalo interno sofrido.
E ele se expandiu à medida que a frase ecoava:
“Tenho planos para você.”
O peso da frase só aumentava conforme Noah tentava traçar um significado, que nunca foi alcançado.
— “Por que ela disse isso? Qual seu objetivo e… que planos são esses?! Droga… Tudo isso está acontecendo em uma velocidade que eu não consigo codificar! Será que Lilac está passando por isso também?”
Todavia, os mares de revolta pareciam não cessar em sua vida: ele ouviu burburinhos, cujo teor era preconceituoso a ponto de mudar seu semblante.
Antes nervoso, agora sua curiosidade despertada lhe trouxe outro norte: a conversa entre dois dos participantes do torneio deixou isso mais claro.
Caminhando logo atrás deles, Noah os ouviu.
— O Pawa Geiza Omna vai participar do Tormenta… — falava um canino. — Ele está aqui!
— Sério?! — a surpresa de um texugo lutador veio. — Então o nível dessa competição está altíssimo!
— Nossas chances são poucas agora… Droga!
— Mas a Família Geiza não é invencível!
Os dois silenciaram, e Noah pôde vê-los ficarem mais tensos.
O sentimento era de total consternação, dado o detalhe a seguir:
— E ele voltou a humilhar outros lutadores. O Pawa agrediu o Serpryin, o monge do Templo Renmar da zona Norte.
— Mas… esse tempo não é o de intercâmbio com Big Sea?
Os olhos do albino vibraram, os ouvidos fixos nas palavras da conversa controversa.
— A Família Geiza, pelo que eu soube, quer ir além de Shang Mu. Dizem as más línguas que Pawa quer controlar mais doutrinas fora da cidade!
— Cara… Você já pensou se ele consegue? Putz, essa família até parece um culto… ou sei lá.
— Mas não somos ninguém para falar o que é certo ou errado. Você se lembra o que aconteceu com o último lutador que tentou lutar contra isso, não?
— Sim… e hoje ele limpa as escadarias do Templo Geiza até que lhe dêem perdão.
— Eles nunca o darão… por que a Família Geiza não gosta de perdedores!
A última fala entre os dois deixou evidente a política doutrinária e ditatorial da Família Geiza do ponto de vista dos lutadores de Avalice.
Entretanto, essa cultura, tratada com tanta naturalidade, deixou Noah sem chão.
— “O que?! Mas… do que estão falando?!”
Seu rosto esboçou um traço odioso, enquanto caminhava com pressa.
Fantasmas do passado voltaram a assombrar mais uma vez sua mente ferida.
— “Essa sensação… de como se alguém quisesse te dominar a palavra e te entregar o vazio…” — sentiu uma pontada no cérebro. — “Tudo isso me cansa… e incomoda!”
Aos poucos, sua velocidade de raciocínio se embaralhou com a emoção; sua razão estava em conflito, o que lhe fez reagir de acordo:
— “Waaifu Soul Onma… Pawa Geiza Omna… Esse monastério está em todos os lugares de Shang Mu!” — enfim, um fechamento. — “E se esses lutadores de agora a pouco estiverem falando a verdade, eles querem… ir além mar?!”
Cresceu em Noah uma vontade de encontrar um selamento de suas análises.
Concretizar seu plano de dominar o Triângulo de Kai era o objetivo maior, não havia dúvidas.
Mas algo acordou dentro de seu ser.
Algo oriundo e misterioso… como Mares de Revolta.
Seu trajeto até onde seus aliados continuou, nos corredores rubros da Arena Shang Mu, em simultâneo com os eventos.
O caminho até lá seria tortuoso.
E voltando à Zona da Família Geiza…
Como um turbilhão de energia negativa, o ambiente no espaço cativo da família mais doutrinária do Monastério Omna se mostrava ainda mais carregado.
As palavras terríveis e carregadas de discriminação expuseram a Milla a um lado do mundo que ela jamais havia visto.
Ao ouvir, ela mal sabia como lidar — seus olhos determinados deram lugar a um mais vago, sem foco… e algo próximo de dor.
Logo após defender Kaura de ser atingida pela habilidade especial exagerada de Pawa, ela desfez seu escudo tão logo o conjurou, deixando claro seu baque.
As pernas, antes firmes, perdiam a rigidez enquanto dava passos laterais para trás… mostrando sinais claros de colapso.
As palavras tornaram a vir em sua mente.
“Criança maldita…”, era repetida várias vezes, a fazendo tremer.
A voz de Pawa era quase um mantra.
O pior estava por vir:
“Ser abominável!”
A repetição se manteve, mas a voz era outra: Milla tomou como imagem mental alguém ainda mais sórdido e cruel que Pawa.
Seu sofrimento interno a fez imaginar seu pior inimigo da vida retornar com todo seu ódio: era a voz de Brevon que a fazia sofrer ainda mais.
“Você… nem deveria existir!”
Sua mente estava tão impactada que lhe pregou peças, reescrevendo o que foi dito de verdade.
“Criança maldita, haha… Ninguém se importa com você!”
Brevon marcou o pior momento de Milla.
E Pawa trouxe isso de volta com toda força.
Ela foi ao chão, ainda olhando para o vazio… e procurando, sem sucesso, de um significado para o que estava sentindo.
Sem pensar nas consequências futuras — e tinha um ótimo motivo para agir — Santino correu para dentro da área da Família Geiza, indo em auxílio à pequena.
Ele teve todo o cuidado de se agachar, mostrando ter tato com situações como a que todos estavam envolvidos.
— Milla, você está bem? — ele afagou o alto da cabeça da menina.
— P-por que… ele disse isso… pra mim? — tremia, com as duas orelhas na frente do rosto.
— Calma! — a abraçou com zelo de um pai. — Está tudo bem… Eu estou aqui, e ele não vai te fazer nada!
O apoio de Santino foi necessário naquele instante.
Porém, ele não estava sozinho… e em um lugar hostil e perigoso.
Pawa, os olhando, mostrou mais de sua faceta mundana — um pária da pior espécie.
— Melodrama… É tudo que lhe resta, Santino Rock? — sua arrogância e prepotência se somaram. — Piedade… significa fraqueza! A síntese de um lutador é ser firme no objetivo… e ser empático é patético.
Ao ouvir isso, os olhos de Santino cresceram, assim como seu rosto se deformava — antes ele tinha fúria, agora era outro sentimento.
O canino estava odioso.
A mandíbula de Santino tremeu.
O ódio queimava-lhe por dentro, pedindo para sair.
Mas antes que cedesse, uma presença suave o atingiu: Kaura caminhou com graça, quase levitando, para frente, tocando seu ombro com uma das mãos.
Uma mensagem voou até seu ouvido canino:
— Deixe comigo…
Era a voz dela, que sequer se abaixou e falou alto.
Era mais uma de suas habilidades, que Santinho presumiu.
— “Voz Ecoada? Até isso ela controla?!”

A escamosa, olhando para Pawa, destilou mais de seu vasto repertório.
— Você não faz questão alguma de esconder sua podridão, Pawa Geiza Omna.
— Hm… e até você sabe mostrar o devido respeito a alguém superior.
— Não… — fechou os olhos, os abrindo lento. — Só estou lhe entregando a gentileza que você não conhece.
— Mulher insolente! — sua aura não se extinguiu. — Acha que suas palavras vagas e infames vão me atingir como antes? Se enganou se pensa que sou um qualquer…
Pawa expandiu ainda mais sua aura, impregnando quase todo espaço da Família Geiza — até seus demais membros receberam o poder como um tipo de relaxamento.
O lobo também sabia discutir.
— O controle mantém a ordem… e, como sempre, a natureza seleciona os fracos.
Mesmo com as amarras de seu poder fluindo pelo ambiente, Kaura não recuou.
Ela sabia que não era só Milla ou Santino.
— Qualquer um que se oponha a você e sua família é um lunático nível blasfemo, não é? — tomou o leque em mãos.
— Não sou um extremista, mulher ignorante! — ele olhou para o apetrecho luxuoso. — Qualquer zelo às artes marciais é um ato nobre. Atitudes como essa tem seu preço.
— E um deles é a subjugação e a extinção? — o fitou. — Acha isso nobre?
— Há nobreza na natureza, mulher… Os fenômenos nos mil anos de história das artes marciais em Avalice dizem por si só. Honradez se faz com a razão… nunca com a pútrida emoção, desnecessário dizer.
Kaura abriu seu leque, ostentando sua envergadura, tinha mais a dizer.
— Você tece uma malha cheia de pontas e não mantém a agulha fina o suficiente para manter liga. No fim, a malha esfarela… não se desfia, o que seria natural de um péssimo tecelão.
Sua metáfora direta alcançou Pawa, que só a observou.
A reptiliana rosa não fez mais rodeios.
— Você se vê como um nobre, com intenções de preservar a história das artes marciais… mas destila seu preconceito sobre ela — apontou para Milla. — Destratou uma pobre criança cheia de potencial que você renega.
A pequena ainda era confortada por Santino, com ambos distantes.
Foi a partir daí que Pawa escalou, e muito, sua discriminação.
— Essa aberração… — seu rosto esboçou repulsa aparente. — Essa criança carrega um poder impuro, algo abominável que sequer deveria existir em Avalice!
Ele realçou ainda mais a sua total falta de empatia.
Kaura se mostrou incomodada — ela chegou a fechar seu leque.
O ruído após o movimento agiu como um protesto quase silencioso.
— A que se refere, seu tolo? Seu desamor já passou dos limites!
— Ser fraco não é um crime… mas quem o é que pague pelas consequências. Minha família não tolera lutadores que se rebaixam por serem assim, mas…
Ele voltou a olhar para Milla, demonstrando total repulsa, virando o rosto.
— Essa criança traz em suas entranhas um poder maldito, que denigre as leis das artes marciais… e toda sua história! — sua aura ficou mais intensa. — Ela é uma alquimista!
Pawa não parou, argumentando de acordo com sua doutrina.
— Alguém com tal marca merece não só o anonimato, mas também o total distanciamento das demais doutrinas! Mesmo os mais fracos lutam por si e crescem pelo que são. Continuam inúteis, mas sua existência se faz valer como exemplo ingrato.
E não parou:
— Mas um alquimista é um ser que já nasce com poder sem controle, sem lapidação, sem harmonia, sem pureza!
Seu preconceito não tinha limites.
— Essa aberração não merece sequer estar neste planeta! Leve-a daqui… e anule sua presença onde quer que ela esteja!
Pawa expôs tudo que representava ser um membro da Família Geiza.
Os demais membros voltaram a prestar continência, batendo o punho no peito à altura do coração, em um ritual de plena comunhão doutrinária.
Mesmo nesse cenário absurdo, Kaura não recuou e manteve seu semblante compenetrado.
Seu olhar mostrava essa quietude, mas ela voltou à Milla logo a seguir.
Vê-la nos braços de Santino, vulnerável e abalada pelas palavras, nutriu sua revolta, mas não a externou: manteve a calma.
— Você se preocupa com as artes marciais… mas ignora o artista — seu leque retornou à exposição. — Ao invés de acolher uma dádiva, a ignora e a insulta com dizeres escusos.
— Me poupe de suas ideias mundanas, mulher rasa! — apontou seu punho para Kaura. — Faça isso você: a tire daqui, a enfie dentro de seu templo e nunca mais a deixe sair!
Por sorte, a conversa ocorria longe dos ouvidos de Milla, por mais que dotasse de uma habilidade de audição exemplar.
O motivo: ela estava com fechamento emocional, uma reação que ocorreu logo após um colapso seguido de trauma.
Mas ela ouvia Santino.
O canino não arredou um segundo sequer, parecendo saber da importância do ato.
— Você não fez nada errado… e não tem que abaixar a cabeça, garotinha!
— Mas… ele falou que… — cessou suas palavras.
— Não! — acariciou o alto da cabeça da pequena. — Ele é só um idiota que não tem noção das coisas. E você é incrível, ouviu?
O tom do que ela ouviu na última frase foi especial.
O timbre de Santino desencadeou uma reação imediata no subconsciente de Milla — uma outra pessoa veio à sua mente.
Algo foi ouvido, lá dentro, que acalmou seu coração.
“Você é a mais corajosa de todos!”
Por várias vezes isso ecoou em sua mente, lhe trazendo conforto e quietude.
Santino construiu um cenário todo acolhedor e respeitoso que a fez relevar um lado inimaginável no aguerrido canino: capacidade de ser espirituoso e afável.
Ele sempre se mostrou um lutador com fúria no olhar e força nos punhos — seu porte físico avantajado já dava essa impressão.
Ele era alguém além de músculos e brutalidade, como demonstrou no comportamento empático com Milla.
Kaura entendeu isso, leitura que realizou ao dar o primeiro passo, anteviu para manter o sentimento paterno do canino.
Ela agiu no melhor momento.
Kaura tinha ciência da situação.
— “Esse indivíduo chamado Santino agiu bem, e eu estou isolando os dois polos…” — analisava, olhos fixos no lobo.
Ela reavaliou bem seu oponente:
— “Pawa é um fundamentalista extremo. Não vai recuar, nem mesmo mudar de ideia… Ele tem ódio genuíno dos dotes da pequenina.”
Seu olhar compenetrado no lobo avermelhado era como uma dicotomia: ele fez o mesmo.
A compreensão era algo inatingível — Pawa não voltaria atrás.
O maremoto apenas começou.

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