Capítulo 79 - A Menina Na Estrada
Anayê chafurdou na lama sombria de suas memórias, um misto de ódio e tristeza transbordava em seu peito, fervilhando com a possibilidade da violência. Ela nunca tinha imaginado que aqueles sentimentos tão profundamente guardados voltariam à tona de maneira voraz.
Seus dentes se fecharam em rosnado animalesco e seus olhos se encheram de brutalidade, assustando até mesmo o magg em sua frente, que segurou mais firme seu machado.
A cena da menina correndo pelos prados se misturou às suas próprias recordações, se misturando e embaralhando sua noção de realidade. Só conseguia ver sua vila queimando, sua mãe perecendo nas mãos da aberração pálida e sua captura pelas mãos dos maggs.
— Vocês… — ela murmurou, quase um grunhido. — Vocês vão morrer.
No mesmo instante, invocou a adaga que surgiu em sua mão direita com a lâmina reluzindo um brilho azulado.
Um magg à sua esquerda avançou com um ataque vertical, mas ele era tão lento e previsível que Anayê nem precisou de esforço para esquivar, e revidou com dois golpes. A adaga entrou primeiro na parte lateral do abdômen e o ferro sequer conseguiu fazer resistência. Em seguida, foi levado ao pescoço e abriu um buraco de onde jorrou um guincho de sangue verde.
O magg deu dois passos e caiu morto, sem grito e sem escândalo.
Seus companheiros arregalaram os olhos, pois tudo tinha acontecido muito rápido na concepção deles.
— Qualquer aberração que atravessar meu caminho vai morrer!
E ela avançou novamente.
O magg com o machado lançou um ataque vertical enquanto o outro corria para recolher sua arma do chão.
Anayê abaixou e cortou o joelho do inimigo que se desequilibrou com o peso de seu ataque e de seu golpe, mas antes de deixá-lo cair, a ceifadora se levantou e desferiu um corte no antebraço da criatura que desmembrou sua mão. E, logo em seguida, a adaga atravessou a garganta do magg, finalizando a vida em seu corpo.
A lâmina estava manchada de verde quando ela se virou para o último rival. O magg segurava o machado com as mãos trêmulas e o rosto vidrado numa expressão de horror.
— Você… é uma ceifadora? — ele balbuciou.
Anayê não respondeu, mas quando ela moveu as pernas para andar, o inimigo arremessou seu machado em sua direção, um ataque evitado por um simples mover da adaga. Porém, para sua surpresa, a criatura saiu correndo pelos prados com passos desajeitados.
— Você acha que pode escapar de mim?! — ela gritou.
O magg continuou avançando como se um bando de coiotes estivesse em seu encalço e só baqueou quando sentiu algo atingindo suas costas. Após um grunhido de dor, sentiu outra vez a lâmina gelada atravessando sua armadura e furando sua costela. Suas forças o deixaram imediatamente e um tropicão levou-o ao chão.
Tentou usar um dos braços como um impulsionador para se arrastar até perceber as botas de sua rival bem à sua frente.
Anayê pisou na cabeça da criatura e a esfregou no chão. O magg suplicou por debaixo da terra enquanto suas mãos e pernas tentavam em vão forçar uma fuga.
Depois a ceifadora se abaixou e agarrou a cabeça dele com uma das mãos. Os hematomas e cortes no rosto da criatura fizeram uma espécie de satisfação emergir em seu peito.
— O que vocês estavam fazendo aqui? — ela perguntou.
— A garotinha… ela escapou. Farejamos para encontrá-la.
— Destruíram a vila dela?
O magg ficou em silêncio, mas era uma resposta suficiente.
— Tem mais de vocês por perto?
Tomado pela certeza de seu fim, a criatura abriu um sorriso com dentes grandes e imperfeitos e falou:
— Tantos que nem você com essa adaga pode combater. Vá até o nosso acampamento e morra, ceifadora!
O magg cuspiu no rosto dela e foi finalizado com vários golpes de adaga na cara.
Anayê se ergueu com a roupa cheia de pigmentos verdes, mas com a sensação de recompensa tal qual não experimentara nem no Ribeiral.
Então seus pensamentos se voltaram para a menina que havia sumido durante a chegada dos maggs e tão logo observou seu redor encontrou a garota escondida atrás de um grande carvalho destacado na região.
— Não tenha medo — ela disse se aproximando bem devagar. — Não vou machucar você. Os maggs não podem mais te capturar.
Aos poucos, um passo de cada vez, a menina surgiu, levemente assustada.
— Vou te levar para um lugar seguro, está bem?
Anayê se ajoelhou em frente da criança e pousou uma mão no ombro dela. E então as lágrimas apareceram no rosto da pobre garotinha como uma válvula de escape depois de todos os horrores.
***
Anayê levou a menina para as Colinas Verdes. Para as crianças foi uma novidade ter uma nova adicionada ao grupo. Para Finney foi a providência dos Três que colocou a ceifadora no momento certo na estrada. Para o mestre foi um sentimento dúbio. Ele ficou extasiado com o livramento da menina pelas mãos de sua aluna, mas preocupado pelo modo com o qual a ceifadora reagira à situação, e o que ela faria a seguir com a informação de outros maggs espalhados na região.
Anayê não estava perturbada com a maneira que eliminara as aberrações e revelara ao mestre o sentimento satisfatório perpetuado em seu peito. Por outro lado, suas maiores preocupações se voltavam para a criança que não emitia uma palavra.
Ela havia comido, tomado banho, trocado de roupa e até tinha dado risada de uma piada de Nally, mas não respondera nenhuma pergunta e parecia extremamente incomodada quando falavam de sua família e dos maggs.
A ceifadora não fizera questão de questionar a respeito de um acampamento de maggs, porém, sua intuição afirmava que a garota tinha fugido de lá.
— Dificilmente ela saberá onde fica — Finney dissera. — Deve ter escapado para qualquer lugar.
Nos dois dias seguintes, as tentativas continuaram a falhar e a produzir momentos desconfortáveis com a criança. A menina se recusava a dormir em outro quarto senão com a ceifadora como se os maggs fossem aparecer a qualquer momento. Foram noites em que Anayê acordou com a menina chorando ou gritando após inúmeros pesadelos.
O mestre e Anayê trocaram vários olhares durante as tentativas, pois o velho desconfiava de todos os pensamentos da aluna e sabia ser a criança o único impedimento para a concretização dos planos dela.
No fim do dia, Anayê se sentou ao lado da menina no alto da colina enquanto ela observava o sol ser engolido pelo horizonte.
— No vilarejo onde eu morava antes de ser capturada pelos maggs, a gente costumava fazer um colar de pétalas e flores para os estrangeiros como sinal de boa fé e esperança — a ceifadora contou.
Então, mostrou um colar colorido composto de várias flores.
— E este é para você.
A menina ergueu as sobrancelhas e aceitou o presente colocado em volta de seu pescoço. Observou rosa por rosa, pétala por pétala, em silêncio e com curiosidade infantil.
— Miriã.
O semblante de Anayê se transformou em surpresa.
— Meu nome é Miriã.
A ceifadora abriu o seu melhor sorriso.
— Muito prazer, Miriã. À propósito, é um belo nome.
— Muito prazer, Anayê. E à propósito, obrigada por salvar minha vida.

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