No amanhecer do dia seguinte, Fernanda já tinha uma lista de tarefas a cumprir. Forçou-se a levantar na madrugada fria. O corpo relutava, pedindo mais alguns minutos de descanso, mas a mente insistia em lembrá-la de que não havia tempo a perder.

    Ainda deitada, encarava o teto, mergulhada em lembranças que surgiam como ondas repentinas, trazendo imagens que se misturavam ao presente. De repente, lágrimas discretas escorreram de seus olhos, deslizando pela lateral do rosto até o travesseiro. Ao perceber, levou ambas as mãos ao rosto e o esfregou, como se quisesse apagar os vestígios da emoção.

    Com um gesto lento, sentou-se na beira da cama e permaneceu ali por alguns instantes, imóvel, ouvindo apenas o som da respiração tranquila de sua parceira, Marina. Ela dormia profundamente, tão entregue ao sono que chegava a babar.

    Fernanda sorriu com ternura e acariciou suavemente o rosto da parceira. Em seguida, levantou-se, pegou a calcinha que estava caída no chão e a vestiu, saindo do quarto com o tronco ainda exposto.

    No banheiro, diante do espelho, encarou a própria imagem: expressão séria, olhos cansados. 

    — Foco. Você precisa de foco hoje — murmurou.

    Jogou água no rosto e ligou o chuveiro. Minutos depois, já estava pronta para sair.

    Deu um beijo leve em Marina e fechou a porta do quarto com cuidado. Antes de sair de casa, segurou a maçaneta da porta da frente, respirou fundo, fechou os olhos por um instante e saiu. 

    Lá fora, a madrugada estava coberta por uma fina neblina, e o vento gelado cortava a pele. As ruas estavam quase desertas, exceto por guardas em patrulha e alguns trabalhadores noturnos.

    Enquanto caminhava, recebia acenos respeitosos daqueles que, mesmo exaustos, reconheciam o valor das oportunidades que ela lhes proporcionava. Fernanda respondia com sorrisos e gestos de gratidão. Eram momentos como esse que a motivavam a seguir em frente, lutando pelo bem de todos na cidade.

    Seguindo sua caderneta de tarefas, a primeira visita seria à ala médica, administrada por Beatriz. O hospital não era grande: vinte salas ao todo, incluindo cirurgia, medicação, descanso e quartos de pacientes — cada um com capacidade para seis pessoas. A iluminação era mínima, para não sobrecarregar os geradores. Os corredores, sombrios, estavam cheios de doentes agasalhados, aguardando atendimento. O ambiente carregava um ar pesado, quase fúnebre.

    Na recepção, uma enfermeira conduziu Fernanda até o quarto onde Beatriz estava. 

    — Só um instante, vou avisar que a senhora chegou — disse, já com a mão na maçaneta.

    Fernanda a interrompeu com delicadeza: 

    — Não, tudo bem. Vou esperar aqui. O bem-estar dos pacientes vem primeiro. Além disso, cheguei antes da hora marcada.

    A enfermeira concordou e se afastou. Fernanda permaneceu sozinha no corredor sombrio, ouvindo tosses e gemidos de dor ao longe. Encostou-se na parede, esfregando os braços para se aquecer.

    As luzes piscavam sobre sua cabeça, e o brilho intermitente fazia seus olhos arderem. Para escapar da dor, abaixou o olhar. O cansaço a envolveu lentamente, e, sem perceber, deixou-se levar pelos próprios pensamentos.

    Flashes de um homem surgiram em sua mente: ao seu lado em um cinema, em um parque com sua filha ainda pequena, e um beijo apaixonado sob as estrelas. As lembranças marejaram seus olhos.

    O ranger da porta a trouxe de volta. Rapidamente limpou as lágrimas.

    — Tentem descansar um pouco. Volto em algumas horas — disse Beatriz, despedindo-se dos pacientes. Ao sair, surpreendeu-se ao ver Fernanda. — Oh! Você me assustou. Pensei que viria mais tarde.

    Fernanda ia responder, mas Beatriz a cortou: 

    — Antes de conversarmos, preciso ao menos tomar café. Estou aqui desde ontem.

    Fernanda suspirou e concordou.

     — Está bem.

    Na sala de Beatriz, havia papéis de exames e livros de biologia espalhados pela mesa. Ela os guardou apressadamente em uma gaveta desorganizada e preparou chá para ambas. 

    — Eu serviria café, mas os cafeeiros não têm produzido grãos ultimamente.

    Fernanda sorriu, aceitando a bebida. 

    — Não, está ótimo assim. Mais importante que isso é sobre—

    — Aceita leite? — interrompeu Beatriz, erguendo uma jarra.

    Fernanda apenas a encarou. 

    — Sem leite, então — disse Beatriz, sentando-se e saboreando sua xícara. Suspirou satisfeita. — Adoro isso.

    Beatriz sorriu, relaxada com a bebida entre as mãos. Seus olhos se voltaram para Fernanda, que a encarava em silêncio, o olhar profundo e firme.

    — Está bem, líder e amiga. O café da manhã pode esperar um pouco mais.

    Beatriz começou seu relatório. Explicou a falta de medicamentos, que desapareciam rápido mesmo com doses reduzidas. Mais pessoas adoeciam a cada dia, e alguns chegavam a ser recusados por falta de tratamento.

    — Isso me dói profundamente — disse, com pesar. — Ver crianças esperando ajuda me faz perder noites de sono. No quarto em que estava, há duas delas… infelizmente não vão sobreviver. Estão com uma variante agressiva da pneumonia bacteriana. O pior é ter que sorrir e dar falsas esperanças.

    Beatriz prosseguiu, relatando falhas em equipamentos. Uma idosa havia perdido a vida quando o monitor multiparamétrico parou de funcionar. 

    — Eu estava fora, tentando criar remédios com ervas locais. Quando voltei, ela já não respirava. Pedi que Pedro consertasse as máquinas, mas… se eu tivesse chegado antes, talvez… — sua voz se quebrou, e lágrimas escorreram.

    Fernanda se aproximou e a confortou. Beatriz encerrou o relatório falando da água contaminada. Amostras revelaram bactérias perigosas — E. coli, Salmonella e Clostridium.

    — Minha hipótese é que os mortos-vivos tenham alcançado a nascente — concluiu.

    Fernanda suspirou e se levantou. 

    — Certo. Vou repassar as informações e enviar uma equipe de batedores.

    Ao ver Beatriz abatida, colocou a mão em seu ombro: 

    — Sei que isso é difícil. O fardo que você carrega é enorme. Imagino que o que me contou seja apenas uma parte do que enfrenta. Quero agradecer, de coração, por todo o seu esforço.

    Beatriz se emocionou. Sabia que Fernanda carregava um peso ainda maior, mas permanecia firme, sustentando a moral da cidade. 

    — Se quer me agradecer, cuide de si. Não gosto de ver minha amiga colocando a própria saúde em risco.

    Fernanda, surpresa com a preocupação, sorriu serenamente e assentiu em silêncio. Já com a mão na maçaneta, ouviu a voz de Beatriz chamando-a:

    — Da próxima vez, não venha apenas pelo trabalho. Quero que conversemos como amigas.

    Fernanda não se virou, mas deixou escapar um sorriso leve.

    — Talvez eu venha — respondeu, antes de seguir seu caminho.

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